Foi desta forma que o New York Cosmos confirmou ao mundo do futebol o adeus anunciado de Raúl Gonzalez no próximo mês de novembro. Aos 38 anos, o futebolista espanhol gozou os últimos meses de uma pré-reforma dourada, no segundo escalão norte-americano, proporcionando à sua família, entre um golo e outro, uma vida pacata e descontraída em Nova Iorque. Embora a despedida só este domingo tenha acontecido, há muito que os desempenhos de Raúl tinham deixado de ser relevantes para a sua lenda. Mais precisamente desde 2012, quando fechou o capítulo na Bundesliga e rumou ao Al-Sadd, do Catar, para converter em dólares o prestígio construído ao longo de 18 temporadas de altíssimo nível.



Há duas maneiras de falar sobre Raúl Gonzalez, e a mais fácil passa pelos números: seis títulos de campeão espanhol, três Champions e duas taças Intercontinentais, em 16 temporadas no Real Madrid. A isto há que juntar os 323 golos em 741 jogos com a camisola blanca, que faziam dele o melhor goleador da história do clube, até um extraterrestre chamado Cristiano Ronaldo passar por lá. Há ainda os 102 jogos e 44 golos pela seleção espanhola, e os 71 golos na Liga dos Campeões – terceiro melhor marcador de sempre, apenas atrás de Cristiano Ronaldo e Messi.

Mas, como em todos os raros jogadores capazes de marcar uma época – e Raúl, indiscutivelmente, marcou a sua – os números são tradução insuficiente para enquadrar o talento do goleador que voltou a pôr o Real no topo do mundo - e, por uma unha negra, já não foi a tempo de fazer o mesmo com a seleção espanhola.

Dormir antes da estreia

No princípio era o sono. Pelo menos a julgar pela história contada por Jorge Valdano, o técnico que o lançou na primeira equipa do Real Madrid, em outubro de 1994, com apenas 17 anos. O jogo era em Saragoça, e Raúl, chamado pela primeira vez, iria ocupar a vaga do lendário Butragueño, que estava lesionado. Na primeira conversa, Valdano tentou sondar as inseguranças do jovem. Não as encontrou: «Se quer ganhar o jogo, ponha-me a titular», disse o miúdo com uma certeza desarmante.

Valdano ainda tinha dúvidas acerca da maturidade do jovem canterano, mas perdeu-as durante a viagem para o estádio, quando o procurou no autocarro para lhe dar as últimas indicações: «Ele dormia profundamente. E quem é capaz de dormir profundamente a poucos minutos da estreia pelo Real Madrid, é alguém que não duvida de nada», explicou mais tarde o argentino.

Nessa tarde, Raúl deu nas vistas pela enorme qualidade do seu jogo, mas também por falhar dois golos fáceis, um deles depois de driblar o guarda-redes. Valdano, no banco, espantou-se com a frieza daquele miúdo magrinho com cara de poucos amigos: «Nem um abanar de cabeça, nem um lamento. Os erros não o afetavam minimamente. Qualquer outro jogador teria a explosão adiada após um percalço assim, mas ele não. Vim a saber depois que quando chegou a casa desabafou com a família: com os golos que falhei hoje, aquele cagão não se vai atrever a pôr-me no próximo jogo. O cagão era eu, que o tinha ido buscar com 17 anos», contou mais tarde, entre risos, ao jornal ABC.

Os frutos da autoconfiança chegaram logo na semana seguinte: Raúl foi novamente titular, em pleno Bernabéu, num dérbi contra o Atlético, o seu clube do coração, em cujos escalões de formação tinha começado a carreira. Em apenas 60 minutos destruiu os «colchoneros», conquistando um penálti, assistindo o parceiro de ataque, Zamorano, para o 2-0, e marcando ele próprio o terceiro golo antes de rumar ao banco, recebendo a primeira de muitas ovações de pé.



A lenda do novo dono da camisola 7, que herdou de Butragueño e deixou depois com Cristiano Ronaldo, nasceu nessa noite de estreia e viria a prosseguir durante 16 anos. Com muitos técnicos (Capello, Heynckes, Hiddink, Del Bosque, entre outros), muitos parceiros de ataque (Zamorano, Mijatovic, Suker, Anelka, Figo, Ronaldo, Zidane, Morientes e Cristiano Ronaldo) e, claro, muitos títulos – especialmente as três Ligas dos Campeões, conquistadas em 1998, 2000 e 2002.

Depois, como é frequente acontecer com os nomes que se confundem com os clubes que representam, Raúl começou a ter anticorpos no Real Madrid, sendo encaminhado para a porta de saída em 2010, ainda antes da chegada de José Mourinho. A passagem de dois anos, pelo Schalke, permitiu-lhe prolongar o rasto goleador na Liga dos Campeões e enriquecer o palmarés com uma Taça da Alemanha, provando – a si mesmo, antes de todos os outros – que era capaz de impor-se fora do conforto do lar.

A mágoa «roja»

Por esse altura, já a seleção espanhola era a maior potência mundial. Um estatuto para o qual Raúl tentou contribuir, sem sucesso, entre 1996 e 2006, ao longo de três fases finais de Campeonatos do Mundo e duas de Europeus. Foi nesse ano, após mais um Mundial em que a Espanha voltou a ficar aquém das promessas, que o selecionador Luis Aragonés decidiu virar uma página sobre o que considerava ser a influência excessiva de Raúl sobre o crescimento dos jovens.

A sua exclusão das convocatórias de «la roja» incendiou debates durante dois anos, mas Aragonés não cedeu às críticas, nem mesmo face ao excecional rendimento de Raúl na temporada 2007/08. A vitória da Espanha nesse Campeonato da Europa, com Fernando Torres como referência de ataque, e a marcar o golo da vitória na final com a Alemanha, deu razão a Aragonés e condenou Raúl – sem dúvida o melhor jogador espanhol da sua geração – a viver de fora o período dourado da seleção, campeã mundial em 2010 e bicampeã europeia em 2012.



Mas nem essa mágoa pode, porém, retirar Raúl do pedestal dos sobredotados. E talvez não haja melhor prova do que este elogio do seu rival, amigo e ex-companheiro de seleção, Pep Guardiola, em 2012, quando o Barcelona já tinha escrito algumas das páginas mais brilhantes da história recente do futebol e a geração de Xavi e Iniesta acumulava conquistas sobre conquistas.