Portugal terá seis atletas nos Jogos Olímpicos da Juventude de Inverno que decorrem no início de 2024, uma presença recorde que junta dois caminhos paralelos no trabalho de colocar o país no mapa dos desportos de inverno. Quatro dos representantes nacionais vão da Madeira e da Marinha Grande a patinar no gelo até à Coreia do Sul, os outros dois têm França como ponto de partida e competem no esqui alpino.

Ilha da Madeira e desportos de inverno é uma combinação improvável. Mas aconteceu, resultado de um projeto que, três anos depois do arranque, já permitiu a Portugal preencher a quota máxima de atletas na disciplina de patinagem de velocidade no gelo para a competição organizada pelo Comité Olímpico Internacional, que integra atletas entre os 15 e os 18 anos.

Os quatro portugueses que vão estar em Gangwon nos Jogos da Juventude, que decorrem entre 19 de janeiro e 1 de fevereiro, começaram por praticar a mais tradicional patinagem sobre rodas, como explica Pedro Flávio, presidente da Federação de Desportos de Inverno de Portugal (FDI): «Estes atletas têm um know-how da patinagem de velocidade em rodas, que é de outra federação, mas havendo uma relação próxima entre as duas modalidades começámos a desenvolver este trabalho, através da Federação internacional que representa esta modalidade, que tem um programa específico para apoiar países numa fase embrionária do desenvolvimento das modalidades.»

«Este trabalho colheu agora estes frutos», prossegue, acrescentando que «os resultados têm vindo a melhorar anualmente» e se refletem nesta qualificação para os Jogos da Juventude: «Cada país só pode levar quatro atletas, dois femininos e dois masculinos, e nós entre 22 países presentes nesta modalidade somos um dos 12 que cumpriram a quota.»

Jéssica Rodrigues, Francisca Henriques, Martim Vieira e Manuel Piteira são os jovens que irão representar o país. E há mais atletas no programa com potencial mas que não têm idade para participar nos Jogos da Juventude. «Um dos atletas que conseguiu também excelentes resultados para contribuir para esta quota, o Afonso Silva, não vai a esta competição por dois meses de diferença da idade», diz o dirigente.

São atletas muito jovens e «com muito potencial», diz o responsável federativo, para já sem fixar metas competitivas. «O importante é termos chegado aqui, triplicando os atletas qualificados em relação à última edição. Depende muito das condições e queremos estar ao melhor nível possível, mas estamos a fazer o nosso caminho», afirma, apontando no entanto as duas atletas da patinagem como aquelas que terão «mais possibilidades de conseguirem resultados mais relevantes para o país, porque têm já resultados com algum destaque».

O trabalho da Federação de Desportos de Inverno com a patinagem aponta ao futuro e para já tem como meta os próximos Jogos Olímpicos, daqui por dois anos: «O objetivo máximo é a qualificação de pelo menos um atleta para os Jogos Olímpicos de Inverno de 2026.»

Treinar e competir no estrangeiro, sem poder organizar um campeonato nacional

A logística da preparação é muito complexa. Não há pista de dimensões olímpicas em Portugal, pelo que tantos os estágios como a competição acontecem fora de portas. «Temos vindo a fazer um trabalho fora do país, principalmente na Holanda, numa pista que tem excelentes condições», diz Pedro Flávio. Isso inclui as competições nacionais, com a particularidade de não ser possível realizar um campeonato nacional. «Fazemos duas competições a que chamamos Taça de Portugal, porque não podemos fazer campeonatos nacionais fora do país, de acordo com o regime jurídico das federações», explica o dirigente, acrescentando que a Federação está a procurar «junto da tutela alterar estas condições, porque seria fundamental fazer estas competições de modalidades fora do país».

O programa inclui três estágios anuais, com a duração de duas semanas cada um, que correspondem a três níveis de performance - iniciação, «com os atletas que estão a fazer a transição das rodas para o gelo», um nível intermédio e outro de elite. Os dois últimos coincidem com as competições nacionais.

Além da patinagem no gelo, Portugal estará na Coreia do Sul com dois atletas na modalidade de esqui alpino. Nahia Vieira da Fonte e Emeric Guerillot nasceram em França e são lusodescendentes. Esse tem sido até aqui o principal perfil dos atletas que representam Portugal nos desportos de inverno. Num país sem condições naturais para potenciar a prática massiva destas modalidades, mas com uma muito significativa diáspora em países com essa tradição, essa é uma via que a Federação continua a explorar.

Também há equipas de curling a competir com a bandeira de Portugal

Por vezes são os próprios atletas que praticam desportos de inverno a procurar a Federação, que depois os integra nas suas equipas. Mas o organismo também promove essa ligação. «Estamos constantemente a trabalhar na identificação de atletas junto das comunidades portuguesas em países onde estes desportos de neve têm grande tradição», diz Pedro Flávio: «Fazemos eventos de identificação de atletas, fazemos casas abertas de hóquei no gelo, de curling, no Canadá. Isso é fundamental, porque temos as comunidades portuguesas a viver em locais muito próximos da neve e do gelo e emigrantes que estão em academias ou a praticar estas modalidades, o que também nos facilita um bocadinho o trabalho.»

Portugal tem portanto, para quem não saiba, praticantes de curling. «Há várias equipas de curling. Masculina, feminina, de duplas mistas e no próximo ano uma equipa feminina, também com atletas identificados fora do país. No caso do curling praticamente todos os atletas residem no Canadá e são atletas que identificámos neste trabalho com as comunidades. Ainda agora houve uma Taça de Portugal de curling no Canadá. Também temos participado em muitos eventos internacionais, como campeonatos europeus.»

Um projeto especial no bobsleigh, de olho nos Jogos Olímpicos de 2026

Há mais. Também está em curso um projeto de participação portuguesa noutra disciplina bem competitiva, o bobsleigh, que tem como horizonte os Jogos Olímpicos de Inverno de 2026. Tem como principal rosto o também lusodescendente Raphael Ribeiro e envolve uma parceria com várias entidades.

Desde logo no que diz respeito à dupla de atletas, como conta Pedro Flávio. «O Raphael, que é piloto de bobsleigh, vive em França e é luso-sérvio. Mas precisava de um empurrador, alguém com características especiais para ajudar a empurrar no trenó. Nós contactámos a Federação Portuguesa de Atletismo, conseguimos identificar um conjunto de atletas e temos o Abdel (Larrinaga), que é um atleta do Barreiro, com um perfil físico que se enquadrava neste projeto. Já participaram em três etapas da Taça da Europa e o projeto visa também conseguir uma qualificação para os Jogos de 2026.»

Esse projeto envolve também uma parceria com a Universidade da Beira Interior para a construção de um trenó. «O Raphel é engenheiro mecânico. Estava a trabalhar neste projeto e pusemo-lo em contacto com a universidade», conta o presidente federativo: «O objetivo é construir um trenó em Portugal para os Jogos Olímpicos que juntará a tecnologia e o saber da universidade. Depois envolverá empresas para a construção deste trenó em Portugal.»

É um trabalho que entra num mundo complexo: «Envolve aerodinâmica e nesta modalidade muitas vezes os veículos são rodeados de secretismo absoluto, com túneis de vento e o espaço onde são construídos vedado», conta Pedro Flávio, concluindo: «Estamos a tentar construir um veículo para que o projeto vá mais além e leve também o nome e o know how de Portugal, quer em termos científicos quer de execução, o que daria com certeza algum destaque a Portugal.»

Também há atletas com origens em Portugal a praticar desportos de inverno e alguns deles chegaram à elite, como nota Pedro Flávio. Mas a evolução acaba por implicar sair do país. «Não deixamos de fazer esse trabalho também no nosso país, com atletas de modalidades que têm condições para se desenvolver em Portugal, como o esqui alpino. São atletas que vêm dos clubes, que trabalham em Portugal. Mas quando chegam a um nível mais elevado acabam por ter de apostar fora do país. O Ricardo Brancal, que foi aos Jogos de Pequim e que começou nas academias da Federação, foi para Itália para poder treinar diariamente. O Manuel Ramos, que está a tentar a qualificação para os próximos Jogos Olímpicos, também treina fora do país, está numa academia de Espanha.»

Existem nesta altura cerca de 500 atletas federados e fazer crescer a base de recrutamento é um dos desafios, diz Pedro Flávio: «É um trabalho que temos vindo a fazer. Como Federação de Desportos de Inverno no nosso país, estamos sempre a tentar remar contra a maré e a conseguir mais atletas, maior representatividade, para conseguirmos melhores resultados.»

As receitas do jogo online que fizeram toda a diferença

A Federação, que foi fundada em 1992 e inicialmente abarcava apenas os desportos de neve mas junta hoje 11 modalidades, tem atualmente outra capacidade financeira para trabalhar, porque passou a beneficiar de verbas provenientes do jogo online. É um financiamento atribuído a Federações que integram modalidades habitualmente alvo de apostas. No caso dos desportos de inverno, dizem respeito sobretudo ao hóquei no gelo e no ano passado a FDI foi a quinta federação nacional que maior verba recebeu por essa via, 1.243 milhões de euros. Faz toda a diferença, como reconhece Pedro Flávio.

«Em 2019 passámos a ter também verba do jogo online e foi essa alteração que permitiu que pudéssemos fazer um investimento maior, mais fundamentado e a pensar mais no futuro. É o que tem valido à federação», diz o dirigente, lembrando que pela via dos contratos-programa do IPDJ a verba que cabe aos desportos de inverno é «muito limitada»: «Não podemos ter comparação de dimensão com modalidades que têm um desenvolvimento muito grande em Portugal, com milhares e milhares de praticantes.»

«Não quer dizer que em Portugal não haja milhares de pessoas a fazer desportos de inverno, que há. Há milhares e milhares de pessoas que anualmente vão para Andorra, para a Sierra Nevada ou para os Alpes suíços. Mas é numa lógica de férias», prossegue.

O desafio é, com esta maior capacidade financeira, potenciar o crescimento da participação e da competitividade, conclui: «Com este investimento há mais atletas e os resultados começam a aparecer. É esse o nosso objetivo.»

Uma pista de dimensões olímpicas na Grande Lisboa

O trabalho passa também por infra-estruturas e em particular pelo projeto de construção de uma pista com dimensões olímpicas. «Neste momento temos uma pista localizada nas Penhas da Saúde, mas que tem metade do tamanho das dimensões. No fundo, serve para as nossas academias, para atividades com crianças, para fazer o campeonato nacional de patinagem artística que não nas condições ideais. Mas hóquei no gelo e patinagem short track precisa mesmo de uma pista com dimensões olímpicas para que as modalidades possam dar o salto», diz Pedro Flávio.

A pista a construir, acrescenta, deverá ficar localizada na Grande Lisboa. «Não temos o local fechado. Estamos a trabalhar nos projetos com um gabinete de arquitetura de Lisboa e com um gabinete para as infraestruturas da Suécia e estamos a trabalhar para encontrar o local adequado para construir a pista, que fará toda diferença no desenvolvimento das modalidades de gelo», nota o responsável federativo. Essa estrutura ainda não cobrirá, no entanto, todo o espetro competitivo: «Nesta pista, com dimensões olímpicas de 70x30 metros, pode-se praticar short track na patinagem de velocidade, paralelamente às outras modalidades: patinagem artística, hóquei no gelo e curling. Para essas dá. É uma pista de 60x30 metros, de dimensões olímpicas. Mas não tem dimensão para long track, onde as pistas têm 400 metros. Existem muito poucas e só algumas delas são cobertas.»

Desportivamente, os Jogos Olímpicos são o grande marco. E Portugal está a trabalhar com esse horizonte, não apenas com o objetivo de levar a Itália em 2026 mais atletas, mas também mais disciplinas: «Nos últimos tivemos três atletas de duas modalidades. O objetivo mais importante era conseguir levar mais modalidades. Se conseguirmos estar presentes com esqui alpino, esqui de fundo e patinagem de velocidade seria fantástico.»

Pedro Flávio acredita que num horizonte não tão distante Portugal pode aspirar a lugares de destaque nos Jogos de inverno, como presenças em finais. «Acho que é possível. O caminho que estamos a fazer na patinagem de velocidade, por exemplo, daqui a alguns anos pode vir a ter retorno nesse aspeto. É difícil, é um caminho longo, estamos a falar de países que têm dezenas de anos de tradição nestas modalidades, mas não é impossível. Vejo com esperança que Portugal, com a evolução que tem tido, possa no futuro vir a ter alguns resultados internacionais de destaque.»