DESTINO 80's é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias dessa década marcante do futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis . DESTINO: 80's.

VÍTOR PANEIRA: Famalicão (1986/87), Vizela (1987/88), Benfica (1988-1995), V. Guimarães (1995-99) e Académica (1999-2001)

Há coincidências engraçadas. Por exemplo esta: a rubrica Destinos chegou à edição 50 na semana em que Vítor Paneira cumpre meio século de vida.

Ora isto obriga a juntar, naturalmente, os dois cinquentenários.

Esta conversa aconteceu por isso na terça-feira: precisamente o dia em que o antigo extremo direito fazia anos. Paneira interrompeu a celebração de uma data especial para falar com o Maisfutebol e revisitar histórias curiosas.

Antes de mais é necessário dizer aos leitores mais jovens que Vítor Paneira marcou uma época. Num Benfica que se enchia de craques - Bento, Diamantino, Nené, Carlos Manuel, Shéu, Valdo, Ricardo Gomes, Rui Águas, Chalana, Thern, Magnusson -, o número sete não falhava um jogo: encostado à direita inventava golos e encantava os miúdos.

Por isso há hoje uma geração de trintões que tem em Paneira o ídolo.

O antigo jogador, curiosamente, sabe disso.

«Vou com alguma frequência a Lisboa e nos últimos tempos encontro muitos adeptos que me dizem realmente que era o ídolo deles», conta. «Dizem-me que em miúdos queriam ser o Paneira e que os amigos os tratavam por Paneira.»

A partir daqui a conversa desembrulha-se à volta dos episódios engraçados de uma carreira que não começou como todas as outras costumam começar.

«Nunca tive escola, como se diz. Comecei a jogar futebol apenas aos 16 anos, no Riopele, já como juvenil. No ano a seguir passei para o Famalicão, enquanto júnior, e uma época depois subi aos seniores. Antes jogava na rua e jogava futebol de salão. Era isso que me divertia e que gostava de fazer», conta.

«A partir do Riopele achei que devia levar isto a sério e que podia fazer uma carreira no futebol.»

Após dois anos no Famalicão, surgiu a hipótese de dar um salto para o Vizela, da II Divisão. Foi nesse intervalo que apareceu o Benfica, através de Peres Bandeira.

«Nem pensei duas vezes, disse logo que ia para o Benfica. Então assinei com a condição de ficar no Vizela: foi a contrapartida que o clube quis para me deixar assinar pelo Benfica. Fiquei um ano por empréstimo.»

A direção encarnada tinha descoberto o miúdo de 20 anos numa captação da Federação para a seleção de esperanças, que procurava jogadores para o Torneio de Toulon, e só precisou de o ver um ano na segunda divisão para o fazer viajar para Lisboa.

«Quando cheguei à Luz, o Benfica tinha no plantel 40 ou 50 jogadores profissionais. Era normal, acontecia todos os anos. Depois, ainda antes da pré-época, eram cedidos a outros clubes vinte e tal jogadores. Eu pensei que ia ser um desses emprestados. O Toni acabou por não deixar e fez pressão para que eu ficasse no plantel», recorda.

«Dois meses depois era titular do Benfica e três meses depois estava na seleção nacional.»

O início, porém, não foi fácil: sobretudo fora das quatro linhas.

«No início eu estava super inibido e não sabia, por exemplo, onde me sentar nas refeições à mesa. Aquilo eram mesas de quatro pessoas e havia sempre aqueles jogadores que estavam no clube já doze, dez, oito anos, que ficavam sempre na mesma mesa», diz.

«Então quando saía alguém de uma mesa, era substituído por um novo colega. Felizmente entrei na mesa do Manuel Bento, do Shéu e do Veloso. Foi a minha mesa durante sete anos, depois fui recolhendo outros novos, como o Paulo Sousa, o João Pinto e outros.»

«E caí naquela mesa porquê? O Veloso e o Manuel Bento gostavam de beber um copinho, naquela altura era permitido beber um copo de vinho ao jantar. Eles pensavam que eu não bebia, porque era mais novo, e chamaram-me para a mesa deles para ficarem com o meu copo», sorri ainda hoje. «Mas eu também bebia e eles ficaram um bocado chateados na altura. ‘Nós a pensar que este gajo não bebia e afinal ele bebe’».

Dentro de campo as coisas eram mais simples, Vítor Paneira não demorou muito tempo a agarrar um lugar no onze, mas o início também não foi propriamente desembaraçado.

«Eu fiz os primeiros jogos com o Espinho e o V. Guimarães no banco, mas entrei em Montpellier, para a Taça UEFA. Joguei vinte minutos e fiz uma assistência. Depois fomos a Portimão e o Toni meteu-me de início: para grande surpresa minha fui titular», recorda.

«Ele achava que ainda não estava preparado para jogar perante oitenta ou noventa mil, na Luz, e meteu-me num jogo fora. O Toni tinha muito essa preocupação: havia jogadores que ficavam muito inibidos quando jogavam na Luz e ele tinha a preocupação de os proteger para a carreira deles no Benfica não ficar comprometida.»

«Depois desse jogo em Portimão, tivemos um jogo em casa com o Penafiel e no dia do jogo o Abel Campos, que era o extremo direito, ficou com febre. Então o Toni perguntou-me se estava em condições de jogar. Eu disse que sim e joguei. A partir daí fui sempre titular até à minha saída do Benfica.»

«Se tremi? Não, tremi foi no jogo anterior, em Portimão. Estava na palestra muito tranquilo, a pensar que ia para o banco, de repente o Toni dá o onze e eu ia ser titular. O impacto foi muito grande. Foi terrível, foi calafrios até à hora de começar a correr...»

Ora calafrios como esses, confessa, só sentiu quatro anos mais tarde: em 1992.

«Aconteceu num estágio de pré-época na Suécia. Nós tínhamos aquela brincadeira de apalpar os colegas. Então um dia eu estava no buffet e vejo o que me pareceu um colega, dois lugares à frente e de costas para mim. Passei por ele e apalpei-o», recorda.

«Azar do caraças, era o Ivic. Dei um grande apertão no rabo do Ivic.»

Tomislav Ivic era o treinador e tinha chegado ao Benfica duas semanas antes.

«Ele começou a rir-se, mas eu fiquei muito envergonhado. ‘Mister, desculpe', e tal, ele respondia ‘no problema, no problema’. Mas estava a sala toda às gargalhadas e eu encavacado como o caraças. Imagine a sala toda a rir... Nem sabia onde me meter.»

Outra história que o faz rir aconteceu dois anos antes, em 1990: mas na altura Vítor Paneira não achou graça nenhuma. O que é normal, ninguém gosta de ir para a prisão: nem sequer no Monopólio...

«Tinha que me apresentar na tropa até à uma da manhã, de domingo para segunda-feira, e apresentei-me às dez horas de segunda-feira. O comandante disse que me ia castigar com uns fins-de-semana, nada de especial. Mas o meu advogado, que era o Dr. João Rodrigues, que foi vice-presidente da FPF, não aceitou», refere.

«Fui para tribunal militar, fui julgado como desertor e apanhei quatro meses de prisão. Depois foi reduzido para metade por bom comportamento e acabei por cumprir 37 dias na Casa de Reclusão do Porto. Não falhei o campeonato porque foi nas férias. Mas passei as férias desse ano na prisão. Se foi difícil? Não, foi tranquilo, passou-se bem, as pessoas trataram-me muito bem. Foi só chato porque não tive férias...»

«Depois ainda tive de fazer a recruta e cumprir a tropa toda direitinha. Deixavam-me sair mais cedo para ir treinar, ao fim de semana ia jogar e fui cumprindo assim o serviço militar sem prejudicar a minha carreira.»

Vítor Paneira nunca deixou por isso de ser titular no Benfica, construindo uma história de sete anos na Luz. Fez mais de duzentos jogos, foi campeão três vezes, ganhou uma Taça de Portugal e jogou uma final da Taça dos Campeões Europeus.

Quando tinha 29 anos, e estava portanto ainda em plenas capacidades físicas, foi muito surpreendentemente dispensado por Artur Jorge: foi o início do descalabro encarnado.

«Quando saí do Benfica recebi propostas do Sporting e do FC Porto, chegou a haver conversações, mas depois optei por não ir para nenhum deles. A minha saída do Benfica foi complicada, tenho um grande amor ao clube, aquilo mexeu muito comigo, por isso preferi voltar para casa», refere.

«Estava a acabar de construir a minha casa e quis voltar para perto da família. Assinei pelo V. Guimarães e foram quatro anos fantásticos. Fomos nas quatro épocas à UEFA, fui duas vezes eleito o melhor jogador do campeonato e fui convocado para o Euro 1996. Financeiramente perdi, claro, mas compensou porque me senti realizado no Vitória.»

No V. Guimarães viveu também algumas histórias que não consegue esquecer.

«Uma vez íamos jogar a Parma, os responsáveis foram a Itália escolher o hotel, marcaram um hotel porreirinho, tudo impecável. No dia em que chegámos era uma confusão que não se conseguia entrar no hall. Era só Ferraris, fotógrafos, jornalistas, tudo muito pipi.»

«Nós a pensar: ‘bem, isto para nos receber não é de certeza’. Conclusão: estava a ser eleita no hotel a Miss Itália. Era uma confusão impressionante, tanta gente que não conseguíamos entrar. Não se furava. O Pimenta Machado queria bater no diretor que marcou o hotel...»

Depois tudo se resolveu. O V. Guimarães perdeu 1-2 em Itália, mas ganhou em casa 2-0, com um golo de Vítor Paneira, e eliminou o Parma.

Foi a estreia do Buffon nas provas internacionais e, curiosamente, Vítor Paneira foi o primeiro jogador a fazer-lhe um golo nas competições europeias. «Foi uma passagem engraçada da minha carreira.»

Uns anos mais tarde, de resto, deixou doze mil adeptos à espera dele.

«Tinha tudo acertado para renovar com o V. Guimarães e de manhã o Pedro Xavier chama-me e diz que não vai ser possível cumprir o acordado. Que não iam poder pagar, porque os impostos eram muito altos e enfim. Eu respondo que sim senhor, fico no clube até dia 31 e depois vou-me embora», sublinha.

«Entretanto eu era o capitão de equipa e à noite há a apresentação aos sócios. Estavam 12 ou 13 mil vitorianos, chamam os jogadores um a um e eu sou o último: ‘e agora o nosso capitão, Vítor Paneira’. Eu nada, não subia. Eles chamavam e eu nada, não me mexia.»

«Dizia que não tinha contrato e que não subia. Geraram-se ali dez minutos muito complicados, até que o irmão de Pimenta Machado vem ter comigo e diz que assume a responsabilidade por tudo o que tinha sido acordado. E eu: ‘sim senhor, assim está bem’. Lá subi ao palco. Até hoje o Pimenta Machado ainda não me perdoa...»

No V. Guimarães, curiosamente, Vítor Paneira acaba por receber um sentimentozinho de justiça quando ajuda a despedir Artur Jorge: o treinador que ainda hoje não entende por que o dispensou do clube que mais lhe encheu o coração.

Aconteceu no verão em que deixou a Luz: uns meses depois, na terceira jornada do campeonato, o V. Guimarães vai à Luz arrancar um empate (1-1) que determina o despedimento do treinador do Benfica.

«É curioso porque o V. Guimarães, comigo na equipa, despediu o Artur Jorge à terceira jornada e depois ainda despediu o Manuel José e Paulo Autuori», conta.

«É muito curioso. Mas o despedimento do Artur Jorge foi giro porque não fui bem recebido na Luz, fui apupado, e passado 75 minutos saí debaixo de um grande aplauso.»

Vinte anos depois desse dia, curiosamente, já ninguém duvida da paixão de Vítor Paneira pelo Benfica: nem da paixão dos benfiquistas por Vítor Paneira.

Parabéns, craque.

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