DESTINO 90's é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias dessa década marcante do futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis . DESTINO: 90's.

PETER RUFAI: Farense (1994 a 1997) e Gil Vicente (1999/2000)

Nos dias de hoje, parece uma história impossível. A Nigéria é uma das grandes surpresas do Mundial dos Estados Unidos, em 1994, e, no final, o seu guarda-redes titular é contratado…pelo Farense.

Falamos de Peter Rufai, claro está. Um dos mais mediáticos guarda-redes africanos de sempre, titular da seleção da Nigéria em dois Mundiais, e um dos obreiros da melhor temporada de sempre do Farense na Liga. Em 1994/95, os homens de Paco Fortes terminaram o campeonato num sensacional quinto lugar e apuraram-se para a Taça UEFA.

Um feito que marcou a carreira de Rufai, que chegou a Faro já com 31 anos mas capaz ainda de duas temporadas e meia de grande nível, que lhe valeram uma passagem para Espanha, onde representou Hércules e Deportivo. Em 1999 voltou a Portugal, mas não ao Algarve. Foi para Barcelos, para o Gil Vicente. Curiosidade extra: a equipa, então, de Álvaro Magalhães consegue também a sua melhor classificação de sempre. Quinto lugar, que só não valeu apuramento europeu devido ao baixo ranking de Portugal, na altura. Coincidência?

É verdade que, em Barcelos, Rufai não teve o mesmo destaque do Farense. Estava quase com 40 anos e foi, essencialmente, suplente. Fez um jogo na Liga e um jogo na Taça. E, por isso, é do Farense que se fala, sobretudo, quando o tema é Rufai.

Ora, o Maisfutebol conversou com um simpatiquíssimo Peter Rufai que contornou, várias vezes, os problemas de rede na chamada telefónica para a Nigéria. «Aqui é um problema enorme», desabafa. « Só atendi porque vi que era um número de Portugal. Muitas vezes nem vale a pena tentar», acrescenta.

Falou-se em inglês. O português está esquecido. Só a língua, não o país, garante Rufai.

«Adoro Portugal. Vou aí no próximo mês», conta. O motivo é o início de conversa. Afinal, o que faz por estes dias?

«Continuo ligado ao futebol. Criei um programa que estou a aplicar há alguns anos na Nigéria. Chama-se Dodo Mayana Soccerthon. Basicamente pegamos em miúdos entre os 15 e os 20 anos, treinámo-los nos nossos campos e com os nossos treinadores de desenvolvimento e depois colocámo-los em clubes da Nigéria, de África e até da Europa. A Nigéria é um país grande e este é um projeto que está espalhado», explica.

E Rufai envolve-se pessoalmente. Não é uma pessoa de gabinetes, prefere o cheiro da relva. «Depois de deixar de jogar percebi que não queria deixar o futebol. Passei a dedicar a minha vida aos jovens. Tirei o curso de treinador no Reino Unido e fiz formação para trabalhar com jovens na Bélgica. A isso juntei a minha educação e a experiência. Trabalhamos com padrões europeus. Há muito talento na Nigéria»
, frisa.

Basta lembrar as gerações de 94 e 98 para perceber que Rufai não fala à toa. A viagem a Portugal está, então, relacionada com o seu projeto. «Vou ver se posso ajudar alguns clubes com os meus jogadores», atira entre risos.

Os números de Peter Rufai em Portugal

1994/95: Farense (26 jogos)
1995/96: Farense (25 jogos)
1996/97: Farense (13 jogos)
1999/00: Gil Vicente (2 jogos)

«Sabe por que gostei de Portugal? Pelas pessoas»

Mas vamos ao passado. Afinal, é esse o principal motivo para o telefonema. Rufai chegou, então, ao Algarve no verão de 1994. Ainda todos tinham bem presente a caminhada da Nigéria no Mundial.

«Surgiu a hipótese de ir para o Farense através do empresário Luís Ribeiro. Foi uma boa experiência. Mais, foi uma ótima experiência. Adorei Faro, adorei o Algarve. Foi uma fase muito boa da minha vida», descreve.

Estava sem clube. A última experiência tinha sido no Beveren, na Bélgica, onde também tinha representado o Lokeren, além dos holandeses do Go Ahead Eagles. Em Faro, aos 31 anos, ganhou uma nova vida no futebol.


O Farense de Rufai em 1994/95

«Sabe por que gostei? Pelas pessoas. Foram todas muito boas para mim. Tratavam-me tão bem que ainda hoje digo que sou um filho de Portugal, também. Os meus colegas no campo, os meus treinadores... Paco Fortes, Joaquim Sequeira, o doutor, como se chamava…., Fernando Belo. O presidente era médico no Algarve [ndr. Gomes Ferreira]. Conhecia toda a gente e era muito bom no clube também», atira.

O nigeriano tem de cabeça vários nomes do seu Farense. Tantos que até nos custa apontar durante a conversa. Alguns caíram entre o emaranhado de sons em que se transformou, muitas vezes, a chamada. «A rede aqui é miserável, desculpe», insistia.

E, depois, ganhava novo fôlego. Agora os jogadores. «Ui, tantos. Tantos. Miguel Serôdio, Djukic, Hassan, Hajry…Era maravilhoso», atira.

«Aquele Farense tinha muitos pontos fortes. O treinador era muito bom. Isso fazia a diferença. Tínhamos adeptos fantásticos também. O estádio estava sempre cheio. Até nos treinos estava sempre muita gente. Depois os jogadores conheciam-se bem. Havia muita união»
, destaca.

Rufai não teme as palavras: «O Farense vai estar sempre no meu coração».


Rufai ao serviço de um super-Farense

«Como lhe disse, vou a Portugal no mês que vem. Vou tentar rever algumas pessoas. Se vou só ao Algarve? Não, vou a mais lugares. Vou falar com alguns clubes. Muita gente não se lembra mas eu também joguei em Barcelos. Já agora, como está o Gil Vicente?», questiona.

Explicamos que, tal como o Farense, está na II Liga, agora em posição de subida. E lembramos o trajeto na Taça de Portugal. «Meias-finais? Isso é ótimo! Ótimo!», atira. Dizemos o nome do adversário e vem uma gargalhada: «Com o FC Porto? Ah ah ah ah. Que grande jogo! Olhe, como está o treinador…Magalhães? Disse bem?»

Quase perfeito. Por uns tempos a entrevista muda de figurino e invertem-se os papéis. Depois volta-se ao plano inicial. Até porque chegou a altura de falar dos Mundiais.

O génio de Baggio num duelo que não sai da cabeça de Rufai

Peter Rufai foi o guarda-redes titular daquela que é, quase unanimemente considerada, a melhor geração do futebol nigeriano. Em 1994 o país estreou-se no Mundial e mostrou ao mundo craques como Amunike, Yekini, Amokachi, Okocha, Finidi ou Oliseh. Quatro anos depois, em França, juntou-lhes outros como Kanu, Babayaro ou West. Enfim.

«Os Mundiais foram experiências maravilhosas. É o ponto mais alto de qualquer carreira, o sonho de todos os jogadores», sublinha Rufai. «Acho que a Nigéria poderia ter feito ainda melhor, sinceramente. Tínhamos equipa para mais», acrescenta.

«Em 1994 aquele jogo com a Itália [oitavos de final]…não me sai da cabeça, sabe? Estávamos a ganhar 1-0 a três minutos do fim, eles empataram e depois perdemos no prolongamento, com um penálti. O Baggio era um génio. Se tivéssemos ganhado aquele jogo íamos, no mínimo, às meias finais. Porquê? Lembra-se quem chegou lá? A Bulgária, a quem nós ganhamos 3-0 logo no primeiro jogo!»
, recorda.



Em 98 o destino nigeriano foi idêntico. Entrada triunfal e descalabro nos oitavos de final.

«Mas aí já foi diferente. Começamos muito bem, ganhamos à Espanha, mas havia muitas lesões. Mas, claro, era um Mundial e todos queriam jogar, então houve muita gente a jogar nos limites. Não olharam a meios para jogar num Mundial. Com a Dinamarca foi muito mau e viemos para casa», lamenta.


A Nigéria de Rufai no Mundial 94

Poderia ter ido para o Sporting, mas Farense pediu-lhe para ficar

Mesmo para um guarda-redes, Peter Rufai veio já tarde para Portugal. Tinha 31 anos, como se disse. Ainda assim, as exibições com a camisola do Farense e ainda o Mundial bem fresco da memória, fizeram com que algumas equipas o abordassem para mudar de ares.

Passados todos estes anos, conta tudo: «Quando estava no Farense tive contactos com três clubes: Boavista, Sporting e Lyon. Nenhum avançou.»

«O que falhou? Olhe no caso do Sporting lembro-me bem, foi mesmo o Farense que me pediu para ficar e eu aceitei. Foi no final da época em que nos apurámos para a Taça UEFA. Não queriam que eu saísse e eu pensei que jogar a Taça UEFA ia ser muito bom e como gostava muito da minha vida no Algarve escolhi ficar. Se saísse não era bom para o clube. Preferiram deixar sair outros jogadores e eu fiquei», explica.

«Nunca quis ser rei. Só queria ser futebolista»

Outra particularidade que corria de boca em boca sempre que se falava de Peter Rufai era o sangue real que lhe corria nas veias. Era filho do Rei de Idimu, uma região próxima da capital do país, que vivia em regime tribal, sob os comandos reais.

Quando se apaixonou pelo futebol e percebeu que tinha talento para as balizas, Rufai sabia que, mais tarde ou mais cedo, chegaria o momento de tomar uma decisão. Aconteceu quando estava no Deportivo, depois da passagem pelo Farense e antes do ingresso no Gil Vicente. O pai faleceu e Rufai teve mesmo de se deslocar ao seu país para as diligências necessárias para a sucessão. Ia com ideias definidas, mesmo estando em final de carreira, e não as mudou: abdicou do trono.

«Nunca quis ser Rei. Se aceitasse não poderia ser futebolista. Eu sei que ia ter uma vida boa, porque seu sei como viviam os meus pais. Mas aquilo não era para mim. Não me fazia feliz. Eu queria era o futebol»
, explica.

Mesmo em final de carreira. Quando foi chamado a suceder ao pai tinha 35 anos e poucos mais lhe restariam como profissional. Mas nem isso o fez mudar de ideias.

«Queria a relva, queria a rua, queria estar com os amigos, queria ensinar crianças a jogar futebol. Isso era que me dava alegria. Ser Rei não me dava essa alegria. Por isso abdiquei de tudo. Sabia que para jogar futebol tinha de abdicar de tudo. Há regras para o Rei e eu tinha de obedecer, claro. Por isso, não foi difícil dizer que não», garante, em conclusão.



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