Domingo à tarde é uma rubrica do Maisfutebol que olha para o futebol português para lá da Liga e das primeiras páginas. Do Campeonato de Portugal aos Distritais, da Taça de Portugal aos campeonatos regionais, histórias de vida e de futebol.

Dedicação: “desprendimento de si próprio em favor de outrem”.

É desta forma que o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa define o ato de alguém que se entrega de corpo e alma a uma causa. E isso tem tudo a ver com o que Pedro Moreira tem vindo a fazer com o Beira-Mar.

A cumprir a nona temporada consecutiva no clube aveirense, o capitão da equipa que disputa atualmente o campeonato de acesso ao nacional, tornou-se, no passado domingo, no jogador com mais jogos disputados com a camisola dos «aurinegros», ultrapassando outro nome incontornável da história do clube: António Sousa.

Mas se aquele 235 representa cada vez que Pedro Moreira subiu ao relvado com o símbolo do Beira-Mar ao peito, esse número conta apenas uma ínfima parte da relação que o jogador tem com o clube. No número 235 lê-se a longevidade, mas está-se muito distante de entender a dedicação que existe em 235 capítulos de uma história que nem sempre foi feliz, mas que nunca se quebrou. Apesar dos episódios mais cinzentos vividos pelo histórico clube de Aveiro.

(Foto cedida pelo Beira-Mar: no primeiro treino após o recorde, os companheiros ofereceram um bolo ao capitão)

Esta é uma relação que começou em 2009, quando Leonardo Jardim recrutou Pedro Moreira ao Penafiel, num ano que terminou com subida do Beira-Mar ao campeonato principal. E foi um elo que se manteve nos anos em que os beiramarenses andaram pela Liga, prolongou-se quando voltaram a descer à II Liga e que se fortaleceu quando o clube... se afundou nos distritais.

Quando quase todos abandonaram um barco que parecia não ter salvação, o capitão ficou, não para contar as vítimas, mas para tentar salvá-lo. Mesmo que em prejuízo próprio.

O sonho ainda por cumprir

Andamos cerca de dois anos e meio para a frente em relação ao momento em que o Beira-Mar bateu no fundo. Hoje, Pedro Moreira volta a sorrir, desta vez com um feito pessoal, que faz com que o seu nome passe a estar escrito em letras ainda mais douradas na história da instituição que completou 96 anos no primeiro dia de 2018.

Com o clube longe dos tempos do profissionalismo, em que cada marco importante é relembrado, foi o próprio Pedro Moreira que começou a pensar que se calhar já não lhe faltaria muito para fazer história pelo Beira-Mar. E por isso começou a fazer contas.

«Nunca tinha pensado nisso, até ao final da época passada. Aí é que comecei a pesquisar e percebi que o jogador com mais jogos era o António Sousa, e que eu o poderia apanhar este ano», relata ao Maisfutebol, assumindo que «a cada jogo que me aproximava da marca, a expectativa aumentava.»

Ainda assim, o jogador não partilhou muito o facto histórico que estava prestes a escrever e só no final da partida de domingo, diante do Avanca, é que comunicou aos seus companheiros o que acabava de conseguir.

«No final do jogo, pedi a palavra para falar ao grupo e foi muito engraçado ver as caras deles quando eu pedi para falar. Acho que pensaram que eu ia anunciar o adeus ao futebol», relata, sorridente, confirmando que o objetivo era outro. «O que fiz foi agradecer-lhes por me terem ajudado a chegar a esta marca histórica, que é um orgulho enorme para mim, e que não seria possível sem a ajuda deles», diz.

Ora, apesar da longevidade da ligação ao clube, há objetivos que Pedro Moreira ainda pretende alcançar, o mais importante de todos, está na sua mente desde a descida do Beira-Mar ao «inferno» do distrital.

«Tenho a ambição de, quando acabar a carreira de jogador, deixar o Beira-Mar nos campeonatos profissionais», assegura o atleta de 34 anos que, contudo, assume que ter a convicção de que isso irá acontecer mais tarde ou mais cedo. «Perceber que o clube está muito mais estável e a crescer deixa-me muito mais tranquilo e com a certeza de que vai chegar lá.»

Apesar de para esta época o investimento do clube ter sido elevado, com o objetivo assumido de subir, as coisas não estão a correr da forma como todos os beiramarenses desejavam. Mas nada que desmotive o líder do balneário.

«Temos menos sete pontos do que o Lourosa [1.º classificado], e menos dois do que o S. J. Ver, que segue no segundo lugar, por isso, sabemos que a margem de erro é curta, uma vez que só sobe uma equipa”, admite o jogador, que garante, porém, que a ideia passa apenas por «ir somando pontos para encurtar as distâncias e ainda chegar lá a cima», aponta.

(foto cedida pelo jogador)

«Aquele apoio da primeira época no Distrital... nunca tinha sentido»

Mas antes de olhar para o futuro, convém voltar a fita atrás. É preciso perceber como é que o «namoro» de Pedro Moreira se «foi desenrolando até se transformar num casamento com o clube.»

«Isto foi acontecendo ano após ano, e quando se deu a queda nos distritais, eu tinha propostas do Campeonato Portugal, mas nada que me chamasse a atenção. E aquele era um momento em que o clube precisava de todos», recorda Pedro Moreira.

A decisão de permanecer no clube onde era jogador profissional, teve um efeito imediato: a ida para o desemprego. Foi nessa situação que se viu durante largos meses, até surgir uma oportunidade.

E foi por isso que a conversa com o Maisfutebol foi mantida numa oficina de pintura e chaparia de carros. É dali que, desde há cerca de um ano, Pedro Moreira tira o seu sustento, que lhe permite, depois, ter cabeça para continuar a entrar dentro do campo.

«A forma como isto surgiu é curiosa. Foi através de uma pessoa que conheci porque era pai de um jogador dos infantis do Beira-Mar. Como fiz o estágio de treinador no clube, fui contactando com algumas pessoas, e este, tornou-se um amigo, que mesmo assim demorou muito tempo para me convidar para vir trabalhar com ele porque... tinha vergonha de me perguntar», declara, entre sorrisos. «Como eu tinha sido jogador profissional, ele achava que eu não quereria vir para um trabalho assim», justifica.

Mas voltando ao futebol, e ao tal momento negro do Beira-Mar, houve um sinal nessa queda no distrital que passou a guiar o clube: o apoio dos adeptos. Algo que Pedro Moreira garante que nunca vivera antes.

«A envolvência que houve das pessoas na primeira época no distrital, a jogarmos no [estádio] Mário Duarte, é algo que nunca tinha sentido. Nem quando estávamos na I Liga», rememora, acreditando que esse apoio foi uma das principais razões para uma subida de divisão alcançada quando poucos acreditavam.

«Nós começámos muito mais tarde do que todas as outras equipas, com um grupo 100 por cento novo, mas que se uniu e foi o principal segredo daquele campeonato. Honestamente, olhando agora para trás, ninguém poderia acreditar verdadeiramente que nós íamos subir», refere, considerando mesmo o jogo que confirmou a ascensão à 1.ª divisão distrital o momento mais marcante da sua carreira.

«Fomos jogar fora, ao campo do S. Vicente Pereira e quando chegámos lá, uma hora e meia antes do jogo, o estádio já estava cheio, com os adeptos a apoiarem-nos. E ganhar aquele jogo e conseguir a subida, depois de um ano tão marcante e intenso, tornou aquele momento grandioso», descreve.

O reconhecimento que «não tem preço»

Aos 34 anos, e apesar de agora ter um emprego fisicamente desgastante, Pedro Moreira ainda não pensa no final da carreira, o que significa que tem oportunidade de alargar mais um recorde que é seu há poucos dias. Esta época, contabiliza ainda cerca de 20 oportunidades para somar jogos aos 235 dourados. Mas e no futuro?

«A verdade é que não coloco metas e ainda não penso no final da carreira. Sei que vai acontecer, mais cedo ou mais tarde, mas enquanto me sentir bem dentro do campo, vou jogar», assegura, obrigando-nos a fazer a pergunta difícil: imagina-se a jogar noutra equipa depois do Beira-Mar? A resposta surge de pronto.

«Não. Se eu sentir que ainda tenho condições para jogar, mas o clube achar que já não tenho condições de o fazer, eu vou respeitar e, nesse dia, acabo a carreira. Para mim, não faz sentido representar mais nenhum clube», garante.

Até porque, para lá da sua história como profissional, dos números que deixa na sua carreira, ou dos títulos que ganhou, há coisas que são mais importantes. E Pedro Moreira tem experimentado algumas delas nos últimos anos.

«Quando o Beira-Mar caiu nos distritais e eu decidi ficar e abraçar o desafio do clube, sabia que o reconhecimento é algo que não se pode pagar. Hoje, eu tenho esse reconhecimento por parte de todos, não só pelas marcas que tenho feito, mas porque fiquei para ajudar o Beira-Mar quando ele bateu no fundo», finaliza.

Dedicação. A palavra que abre este texto, no mesmo dicionário, surge também como sinónimo de “Consagração”. E ainda que esteja lá especificado que se refere a “templos, edifícios”, cabe também nesta história de amor entre um jogador e um clube. Porque Pedro Moreira continua a edificar uma história que o consagra como uma das figuras maiores do Beira-Mar. E todos lhe reconhecem a dedicação.