Domingo à tarde é uma nova rubrica do Maisfutebol, que olha para o futebol português para lá da Liga e das primeiras páginas. Do Campeonato de Portugal aos Distritais, da Taça de Portugal aos campeonatos regionais, histórias de vida e futebol.

Por entre a Serra de Moradal há um ruído que se faz ouvir ao longe.

Um som que percorre os 15 quilómetros de extensão, com poucos altos e baixos, como um muro gigante que está na origem da sua denominação.

Um barulho que interfere na tranquilidade e beleza do local, mas de forma harmoniosa.

Um grito de golo.

No coração da serra há um clube que só sabe ganhar esta época para o campeonato. O Águias do Moradal é líder invicto nos distritais (AF Castelo Branco) com 14 vitórias e apenas um empate nos 15 jogos realizados até aqui.

Na jornada passada teve direito a folga e não entrou em ação, mas faltando apenas cinco jogos para o término da competição e com seis pontos de vantagem sobre o segundo classificado, as perspetivas de subir ao Campeonato de Portugal são bastante animadoras.

No Campo Ventoso raramente voaram os três pontos esta época e no bilhete-postal houve sempre algo mais para recordar que não apenas a paisagem pitoresca do vale.

Aos comandos da equipa vitoriosa um nome bem conhecido por aquelas terras.

Francisco Pires foi convidado pela direção para guiar a equipa a uma nova subida de escalão, depois da desilusão da descida no ano transato.

Francisco passou como treinador por Desp. Castelo Branco (juniores) e Atalaia do Campo (foto: arquivo pessoal)

Antigo jogador do clube, Chiquinho, como era conhecido, resolveu pendurar as botas de forma precoce e ser treinador, completando o nível II do curso.

Tinha 25 anos quando terminei a carreira e foi uma decisão muito difícil porque tenho uma grande paixão pelo jogo, mas para jogar a um nível que sempre quis tinha de ter outra disponibilidade. Vi mais possibilidades na carreira de treinador e espero que as perspetivas sejam melhores do que aquelas que seriam se continuasse a jogar (risos)»

A conversa com o Maisfutebol decorreu no final de mais um dia de trabalho, repartido entre as aulas de educação física numa escola do distrito e os treinos.

Agora com 28 anos, a rotina do técnico e da restante equipa é sempre a mesma, três vezes por semana.

Estudantes, operadores de call center, empregados fabris ou de restauração. A profissão que lhes serve de sustento nunca interfere na paixão pelo jogo.

«Costumamos dizer que o profissionalismo é apenas uma questão de disponibilidade, porque estamos empenhados ao máximo em cada treino. Durante aquelas três horas parecemos tão profissionais como aqueles que o são verdadeiramente», frisou.

Uma luta semanal em prol de um objetivo maior: o de levar o nome da região a outros palcos.

Se não podes sair do ninho, leva-o para outro lado

A maior parte dos que pisam o sintético do Campo Ventoso é albicastrense, uns de gema, outros adotados.

Só dois jogadores residem fora do distrito: os luso-guineenses Lamine Djassi e Vijai, este último até já passou pelo Stoke City de Inglaterra, imagine-se.

«Decidimos apostar mais em jogadores jovens e do distrito para criar outra ligação com as pessoas da terra, Aqui convivemos com o estigma da interioridade, que nos limita a vários níveis, por isso tentamos contrariar essa ideia, aproveitando o que temos», explicou.

O segredo por detrás de tamanho sucesso pode passar muito por aí, pelas raízes, juntando a isso uma sintonia importante entre o grupo e Chiqui…quer dizer, mister.

Joguei com muitos jogadores que fazem parte do meu plantel agora, ora como colega, ora como adversário. Não me custou muito assumir esta nova realidade, nem a eles. De início houve curiosidade mas o respeito manteve-se igual. São boas pessoas, mantiveram o empenho e também a distância que às vezes é necessária»

Depois há o recinto dos jogos, cujo nome diz tudo.

«No Campo Ventoso as condições não são as ideais, como se pode imaginar, mas tem um enquadramento fantástico, uma paisagem belíssima. Muito frio, típico de um clima serrano, mas nada que não se consiga enfrentar. O vento é instável e temos isso em conta quando escolhemos o lado do campo (risos)», indicou.

O único empate do Águias no campeonato registou-se em casa curiosamente (foto: Facebook do clube)

Esta conjugação de fatores pode conduzir o Águias do Moradal a um registo de invencibilidade único para aquelas gentes e esse parece ser o objetivo da equipa a curto prazo.

«Desde o início que sempre quisemos ter uma equipa competitiva e capaz de lutar pelo primeiro lugar. Agora queremos manter esta senda vitoriosa até ao final e vencer o campeonato, bem como dar a volta à eliminatória na Taça de Honra (derrota com o Idanhense) e vencê-la», reiterou.

Dentro do relvado as coisas estão bem encaminhadas para o conjunto de Oleiros, e do ponto de vista pessoal Francisco mantém-se firme na vontade de desbravar caminho fora dele.

Treinar nos distritais, ou como saber desligar a Playstation

Aos 28 anos, a carreira de Francisco tem ainda pouco que contar, mas no seu discurso muita coisa para refletir.

Não é todos os dias que, com tão tenra idade, se assume o comando técnico de uma equipa, mesmo a nível amador.

A dúvida instalou-se na conversa nesse preciso momento: afinal como é ser treinador nos distritais?

«Confesso que quando um treinador começa neste nível há algum desânimo inicial e desmotivação, porque é uma luta muito difícil, até contra as ilusões e vícios que nós próprios criamos», respondeu.

O registo da equipa tem trazido mais gente da terra ao futebol (foto: Facebook do clube)

À cabeça surge logo a nota artística, naturalmente inferior neste tipo de jogos e que, segundo o próprio, obriga a um esforço redobrado por parte dos intervenientes.

Se as pessoas deixarem de gostar de ver a sua equipa jogar, o futebol acaba e nós deixamos de fazer o que mais gostamos. Temos feito um esforço para melhorar a nossa qualidade dentro de campo, porque assim valorizamos o jogo, trazemos mais pessoas e não deixamos morrer o futebol a este nível, que ao fim ao cabo representa o futebol das gentes, que envolve muitas pessoas»

É com esse espírito que vai encarando a vida, dentro e fora dos relvados. Apesar de jovem, Francisco admitiu que «não sente o estigma da idade» e ambiciona «poder viver apenas do futebol», embora saiba que «há fatores que não pode controlar».

O Chiquinho, ex-jogador e treinador, quer apenas desfrutar daquilo que o faz feliz.

«Com 28 anos ainda posso ter a ousadia de sonhar, mas é bom que todos nos lembremos de onde tudo começou. Passar por estes escalões é uma lição de humildade, porque o futebol não existe só de forma mediatizada. Não digo que todos deviam passar por aqui, mas deviam ter a sensibilidade de saber que há realidades distintas e mesmo assim a essência do jogo e o prazer que se retira dele mantêm-se.»

Quer voar alto o jovem, mas sem esquecer o ninho, ou não fosse ele o líder destas águias invencíveis nos distritais.

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