Domingo à tarde é uma rubrica do Maisfutebol, que olha para o futebol português para lá da Liga e das primeiras páginas. Do Campeonato de Portugal aos Distritais, da Taça de Portugal aos campeonatos regionais, histórias de vida e de futebol.


O relógio aponta para as 19h00 quando o Maisfutebol chega ao Complexo Desportivo de Gandra. As instruções técnicas ecoam no recinto e confundem-se com o som das chuteiras a bater na bola. No relvado, miúdos e graúdos em grande azáfama. É neste cenário puro e genuíno, que encontrámos João Marques Jesus Lopes, conhecido por Djão, atual treinador dos infantis do Aliança de Gandra.

Doze temporadas ao mais alto nível em Portugal, repartidas por três clubes diferentes. Nascido em Tete, Moçambique, entrou em terras lusitanas com a ajuda de Mário Coluna. Representou o Desportivo de Chaves, o Belenenses e o Penafiel. Uma carreira recheada de histórias e vivências peculiares, junto de grandes nomes do futebol português como José Mourinho.

É com um brilhozinho nos olhos que relembra, com orgulho, as memórias do passado.

Mas é imperativo começar por falar do presente de Djão. De dia trabalha numa empresa de serração de madeira e, à noite, assume o papel de treinador no clube de Paredes.

Djão iniciou a carreira de treinador ainda no século passado, mal terminou o percurso como jogador. Estabeleceu-se como técnico no Rebordosa, clube onde pendurou as chuteiras. Em abono da verdade, pode dizer-se que o fez com algum sucesso, uma vez que conseguiu a promoção para a antiga 3.ª divisão nacional.

Seguiu-se uma passagem pelo banco do São Pedro da Cova, como treinador principal, antes de regressar ao Rebordosa para assumir as funções de coordenador da formação. Depois apareceu o convite para treinar os sub-15 do Aliança de Gandra, uma equipa que teve um crescimento tremendo nos distritais da AF Porto.

«Este é um clube que está em expansão, com ideias bem definidas para crescer e com um projeto aliciante, que abracei sem hesitar. Espero conseguir ter êxitos», frisou antes de desvendar aqueles que acha serem os segredos para o sucesso.

«Tento incutir nos miúdos uma mentalidade de profissional. Quero que eles tenham essa mentalidade, que saibam o que são as exigências do futebol ao mais alto nível. Jogar futebol não é dar dois ou três toques na bola. O futebol é muito mais que isso. A partir daí tento alertá-los para as dificuldades que irão encontrar ao longo do seu percurso como atletas, de modo a que no futuro se consigam enquadrar no futebol de alta competição», acrescentou.

Recorde-se que o Aliança de Gandra foi um clube em vias de extinção. Bateu no fundo, reergueu-se em 2007/08 e, num ápice, chegou ao Campeonato de Portugal. Um clube fresco e sedento de conquistas, que passou a contar com um treinador que foi uma ilustre figura da primeira divisão da década de 80.

De Tete às ruas de Lisboa, o futebol e a agronomia caminharam de mãos dadas.


A paixão pelo futebol começou de tenra idade, há mais de meio século, nas ruas da província de Tete, em Moçambique. Explica o próprio Djão de olhos cravados no relvado, num discurso nostálgico.

«Liguei-me muito cedo ao futebol. Começou tudo em Tete antes de ir para o Textáfrica, uma equipa de alto gabarito em Moçambique. Conseguimos vencer o campeonato no primeiro ano da Independência», recorda.

Naquele tempo, tão longínquo, os jogadores dividam o seu tempo pelo campo de futebol e por uma fábrica de tecidos. Pelo menos a grande maioria. Outros, como o caso de Djão, ainda estudavam. Sem dúvida uma vida dura e uma outra uma outra realidade.

«No Textáfrica os jogadores trabalhavam numa fábrica de tecidos e jogavam. Nessa altura estudava, porque queria ser engenheiro agrónomo. Depois, através de uns contactos, surgiu a oportunidade de representar o Desportivo de Chaves. Nem hesitei. Passado meia época saltei para o Belenenses», rememora.

Estreou-se com a camisola do emblema do Restelo na viragem da década, em 1979/80. Apesar de ser presença assídua nas primeiras escolhas de Juca e Jimmy Hagan, Djão nunca quis descurar os estudos e largar o sonho de conseguir uma licenciatura.

«Quando estive no Belenenses frequentei o curso superior de Agronomia. Nunca o concluí, infelizmente. Ficaram a faltar-me duas cadeiras…», recorda.

Na terceira temporada em Belém, o agora treinador do Aliança de Gandra partilhou o balneário com um tal de José Mourinho. Um jovem de 20 aninhos «fantástico», que vivia a segunda temporada como sénior.

«No Belenenses fui colega do Mourinho quando éramos orientado pelo pai dele. O Mourinho jogou pouco, jogava na equipa de reservas na altura. O Mourinho? Era uma pessoa fantástica, ávida de conhecimento. Via-se nele a preocupação de querer aprender e de querer saber. Era precisamente essa faceta que ele tinha», relembra.

Oito temporadas após ter chegado a Lisboa, aparece o convite do Penafiel e uma mudança para o norte de Portugal. Na cidade nortenha recorda, num tom melancólico, as últimas duas épocas na primeira divisão.

«No Penafiel fiz as duas últimas épocas na primeira divisão. Foram as melhores épocas do clube na primeira divisão. Essa equipa tinha o Caetano, o Elias, o Rui Manuel, o Cerqueira… Bons tempos», sublinha no preciso instante em que vice-presidente interrompe a conversa e atira de pronto. «O mister não sabia disto! Era surpresa. O mister merece», exulta.

As transferências falhadas para Benfica e FC Porto

A história de Djão no futebol poderia ter sido escrita em cores diferentes, ou seja com outras camisolas. O ex-futebolista revela que esteve perto de assinar pelo Benfica e depois pelo FC Porto. Depois surgiu a hipótese de rumar à Bélgica. Apesar de nenhuma das hipóteses se ter concretizado, Djão não guarda qualquer tipo de mágoa pelo facto.

Tive propostas do Benfica e do FC Porto, esta última antes de ir para o Belenenses. Depois, quando estava no Restelo, houve o interesse do Standard de Liège. Só que na altura era impensável um clube pagar a cláusula de um jogador», conta.

Mas afinal o que impediu o sucesso das negociações?

«Quando estava no Textáfrica fui treinado pelo Mário Coluna. Foi através dele que estive perto de ir para o Benfica. Enfim. Essas transferências falharam, porque os contactos não avançaram. Era assim que as coisas eram feitas na altura. As hipóteses goraram-se», explica.


«Djão? O meu pai não me conseguia chamar João»

Apesar da carreira como jogador da primeira Liga, Djão divide o seu tempo entre o Complexo Desportivo de Gandra e uma empresa de serração de madeiras. Profissões das quais se orgulha, como fez questão de sublinhar.

«Neste momento trabalho numa empresa de madeiras. Não vivo só do futebol. O meu trabalho diário é numa serração de Madeiras e no final do dia, venho para aqui. Nunca penso “hoje não vou”. O motivo? O futebol está no sangue. Não consigo passar sem o cheiro da relva. É mesmo paixão. Ainda assim, preparei-me para depois do futebol, embora não tenha concluído o curso de agronomia. Sabia que a profissão de futebolista era curta», aponta.

Atualmente a família de Djão vive em Lisboa, o que pressupõe que o antigo jogador tenha passado grande parte da vida longe da família. É assim desde que chegou a Portugal até aos dias de hoje. Infindáveis sacrifícios pelo futebol.

«Tenho saudades da minha família, naturalmente. Se o futebol vale a pena? Sem dúvida», esclarece.

João Marques Jesus Lopes. Porquê Djão?, deverá estar o leitor a intrigar-se.

Eis a justificação. Tão simples.

«Chamo-me Djão porque o meu pai não me conseguia chamar João. O nome acabou por pegar e hoje em dia ninguém me conhece por João (risos)», elucida.

Homem simples, de conversa fácil e de sonhos humildes.

«O meu sonho? Neste momento só quero ver os meus meninos crescerem e tudo fazer para que, no futuro, se possível, sejam melhores do que eu», concluiu.