Domingo à tarde é uma rubrica do Maisfutebol, que olha para o futebol português para lá da Liga e das primeiras páginas. Do Campeonato de Portugal aos Distritais, da Taça de Portugal aos campeonatos regionais, histórias de vida e de futebol.


O sorteio ditou a visita do Sporting de Braga ao terreno do São Martinho. Uma partida com histórico para o clube de Santo Tirso e com especificidades ímpares para Rui Luís.

Atualmente médio do São Martinho, Rui Luís dividiu a formação entre o FC Porto e o próximo adversário do São Martinho, na 3.ª eliminatória da prova rainha do futebol nacional. Por isso, não esconde que há, naturalmente, uma envolvência especial em torno do encontro.

«É um jogo especial, claro. Fiquei a gostar muito do clube. Quando joguei no Sporting de Braga morava lá. Fiz meia época nos juvenis e pelo meio dois jogos nos juniores. Depois completei os dois anos de júnior» conta, em conversa com o Maisfutebol.


O encontro do próximo sábado reabre portas às memórias da adolescência, intercalada entre FC Porto e Sporting de Braga. Recordações de um jogador que poderia ter tido um percurso distinto, quiçá não fosse a doença de Crohn, uma perturbação crónica que o obrigou a perder etapas importantes no crescimento desportivo e a eternizar as promessas de um futuro auspicioso.

A história de Rui Luís pode conhecer um novo capítulo risonho neste duelo da Taça, competição fértil em surpresas e desfechos improváveis. Porém, é necessário recuar ao passado para perceber a importância do jogo para o médio do São Martinho.
 

Foto arquivo pessoal.


Durante a formação, Rui Luís conviveu com Fábio Martins e Ricardo Ferreira, jogadores que integram os quadros do emblema bracarense. O facto de terem trilhado caminhos diferentes acabou por quebrar a relação que mantinham, apesar do entusiasmo natural por reencontrar os antigos colegas. 

«Joguei com o Ricardo Ferreira e com o Fábio Martins no FC Porto. Já não mantemos ligação. Acabámos por seguir rumos completamente diferentes. Mas na altura mantinha uma boa relação com eles. Quando estava a morar em Braga, encontrei o Ricardo Ferreira e chegámos a falar algumas vezes. A partir daí, ele foi para o AC Milan e o contacto perdeu-se», recorda.

Porém, no momento em que chegou ao patamar sénior não se conseguiu fixar no plantel do Sporting de Braga. 

«Na altura era muito complicado ficar no Sporting de Braga. Não havia equipa B, só foi criada no ano seguinte. Ficaria se houvesse equipa B? Sinceramente acho que seria difícil. O meio ano de juvenis foi bom, tal como o primeiro ano de júnior. Nos últimos seis meses da formação comecei a perder espaço. O coordenador da formação e o treinador mudaram. Ainda assim acho que se o Luís Martins fosse o coordenador e o Dito o treinador, as coisas teriam sido diferentes», salienta.
 

Foto arquivo pessoal: Rui Luís recebe o prémio de melhor marcador do Torneio da Marinha Grande


A porta do Sporting de Braga fechou-se e Rui Luís procurou o seu espaço no futebol sénior, primeiro no Grupo Desportivo Ribeirão e, depois, no Joane. Encontrou a estabilidade e o equilíbrio necessários no Tirsense, clube onde permaneceu durante dois anos. Uma lesão grave no joelho e o súbito aparecimento da doença de Crohn, uma doença inflamatória crónica do intestino, interromperam a carreira de um jovem que começava a apresentar números bem interessantes até então.

«Depois de um primeiro ano de sénior que não correu muito bem, fiz uma boa época sob o comando do Carlos Pinto. Surgiram várias propostas mas a Direção do clube quis que continuasse. Contudo, nessa época correu tudo mal. Na pré-época tive um estiramento de ligamento interno no joelho e, quando voltei, um mês depois, foi-me detetada a doença», lembra.

Rui Luís viveu uma etapa dura, desde o aparecimento da doença até ao regresso aos relvados. Tudo começou num treino e culminou com uma estada no Hospital de São João.

«Estava a perder peso. Após o jogo contra o Varzim, dos poucos que fiz, saí ao intervalo. Percebi que a situação era insustentável. Não podia continuar com 49 quilos. Fui fazer um exame e dois dias depois foram-me buscar ao treino. Era a apresentação do novo treinador e o fisioterapeuta veio falar comigo a dizer que o meu pai estava à minha espera. Tinham-lhe ligado do hospital de São João a dizer que tinha de ser internado. Fiquei assustado porque não conhecia a doença», acrescenta.

Nesse momento a época acabou e Rui Luís começou uma luta hercúlea. Posteriormente, o desconhecimento da doença por parte dos departamentos médicos de vários clubes conduziu ao fecho de várias portas.

«A médica disse-me que o primeiro ano e meio seria difícil mas que depois ia conseguir ter uma vida saudável e jogar futebol. Não fiz a pré-época e acabaram por me fechar algumas portas. Algumas pessoas que me costumavam ajudar a arranjar clube.. Nunca mais ouvi falar delas», relata.

 

Foto arquivo pessoal: Rui Luís no encontro frente ao Varzim.


Avesso ao papel de vítima, o jogador do São Martinho não esconde que viveu momentos duros. No entanto, prefere destacar a qualidade de vida que tem atualmente, pese embora a doença crónica que o afeta.

«Quando estive internado era tratado no hospital, mas depois de ter tido alta receitaram-me uma medicação que não fez efeito. Os médicos queriam que ficasse internado novamente. Depois acabaram por optar por um tratamento biológico que resultou em pleno. Nunca mais tive dores. Tenho que ter cuidado com a alimentação, claro. Tudo isso deu-me qualidade de vida», recorda.

Após um período de convalescença, adaptou-se à partida pregada pelo destino e conseguiu voltar a fazer o que mais gosta. O São Martinho foi o clube que lhe permitiu regressar aos relvados e Rui Luís agradeceu com golos e belas exibições. Em suma, reencontrou-se com a sua melhor versão.

«A Direção do São Martinho já me conhecia e sabiam o que se tinha passado. Depositaram muita confiança em mim. Demorei a ganhar peso e confiança no meu jogo, mas passados alguns meses, estava como antes. Até fiz dois golos no jogo da subida. Agora sinto-me útil», rememora, com evidente entusiasmo na voz, antes de se desfazer em agradecimentos.

«Resta-me agradecer a confiança que o clube depositou em mim naquele momento. Não é fácil estar tanto tempo parado. As portas começam a fechar-se se uma pessoa não tem as condições físicas necessárias nem o peso ideal.».

 

Foto arquivo pessoal: Rui Luís reencontrou a sua melhor versão no São Martinho.

Antes da receção ao Sporting de Braga, o São Martinho é sétimo na Série A do Campeonato de Portugal. As diferenças gritantes entre os dois conjuntos não retiram ambição ao emblema de Santo Tirso, segundo Rui Luís. Muito pelo contrário.

«É daqueles jogos em que só temos a ganhar. A pressão está completamente do lado deles. Vai ser um jogo excelente para nós. O São Martinho nunca passou da segunda eliminatória e ainda para mais defrontar o Sporting de Braga na ronda seguinte. É uma das melhores equipas nacionais. Toda a gente quer jogar», afirma, antes de explicar como o jogo é encarado pelo jovem plantel do São Martinho.

«Vemos o jogo como uma janela de oportunidade. Temos uma equipa muita jovem. Temos muitos miúdos com muita qualidade, formados no FC Porto, Sporting de Braga e Rio Ave. Têm muita ambição. Olham para este jogo como uma oportunidade única de se mostrarem.»

O encontro vai-se realizar no Estádio do Desportivo das Aves, uma espécie de prática comum nos anos recentes. Rui Luís admite que o Sporting de Braga passaria por dificuldades se jogasse no Comendador Abílio Ferreira Oliveira, estádio da Associação Recreativa de São Martinho.

«Acho que no nosso campo as coisas eram diferentes. Certamente a Direção do São Martinho teve um motivo muito forte para alterar o local do jogo. Não estou a dizer que ganhávamos, mas causávamos mais dificuldades se fosse no nosso estádio. Era completamente diferente pelo facto de ser um campo pequeno, sintético, onde os adeptos estão muito perto do relvado. Provavelmente ser na Vila das Aves favorece o espetáculo. Vamos ver. Temos tudo a ganhar e eles a perder», remata.

Quiçá este reencontro com o clube que o viu crescer, não se torne em mais um capítulo feliz da história de Rui Luís, escrita com talento, suor, muita luta e dedicação.