Domingo à tarde é uma nova rubrica do Maisfutebol, que olha para o futebol português para lá da Liga e das primeiras páginas. Do Campeonato de Portugal aos Distritais, da Taça de Portugal aos campeonatos regionais, histórias de vida e futebol.
 

«Jogo com a mesma paixão de sempre, tenho vontade todos os dias em acordar e ir treinar, sou fascinado pelo jogo. Às vezes perguntam-me quando vou deixar de jogar, eu serei o primeiro a parar quando sentir que já não posso»
 

Ricardo Andrade chegou a Portugal aos 32 anos e aos 39 cumpre a oitava época no nosso país. Entrou pela porta do Moreirense, que militava na II B, e logo no primeiro ano foi campeão da zona norte subindo à II Liga.

O clube da Cidade Berço é o emblema do seu coração, assume, e numa longa conversa com o Maisfutebol, contou algumas das histórias que mais o marcaram em Portugal e recordou histórias de uma temporada no Vietname, em 2005.

Titular no Pinhalnovense, mas com um olho já no futuro. Treina os guarda-redes dos juniores do Pinhalnovense e no Brasil tem um projeto, juntamente com ex-futebolistas, para ajudar crianças desfavorecidas.

Comecemos pelo início.

Cresceu e formou-se no Brasil, no Clube de Futebol Zico, do qual a lenda brasileira é presidente e fundador, e aos 21 anos surgiu na equipa principal, em 1998, percorrendo um longo conjunto de equipas até chegar a Portugal aos 32 anos.

«Para mim não há idade para jogar futebol. Podes jogar com 17, 39, 42, o que importa é a qualidade. Quando cheguei com 35 anos à I Liga muitos disseram-me que se eu tivesse chegado aos 20 podia ter ido para um clube maior, mas nunca fiquei triste por isso», explicou.

Moreira de Cónegos foi a vila que o acolheu e a quem Ricardo Andrade estará sempre agradecido: «Aqui em Portugal é o Moreirense o clube do coração. Lá no Brasil é o clube do Zico, que foi o melhor presidente que eu tive. O Moreirense está marcado porque o que sou em Portugal devo ao Moreirense, ao presidente Vítor Magalhães e ao povo de Moreira, com quem ainda hoje mantenho contacto.»

A transferência aconteceu em 2009/10 e teve mão de um ex-guarda-redes do clube.

«Estou muito grato a quem me abriu as portas em Portugal, que foi o Roberto Tigrão. Não é o meu ídolo, mas foi o meu amuleto da sorte para este desafio. Portugal é a minha vida, pelo trabalho que me deixou realizar tornei-me conhecido no Brasil.»

Ao falar do Moreirense com alguém que gosta do clube de «coração» era impossível que a conversa não «fugisse» para a conquista da Taça da Liga este ano.

«Vi com muita alegria, nós brincámos aqui no balneário do Pinhalnovense. Eu até disse: ‘Olhem, o Moreirense está chegando aos poucos’. Nos últimos jogos até falei com o meu filho o que ia acontecer e por acaso acertámos. Ficamos muito felizes, muito feliz pelo mister Augusto Inácio, que foi meu treinador no Leixões. Foi ele que me contratou com 33 anos, quando muitos achavam que eu era velho.»

Voltamos assim à carreira do brasileiro.

Nessa primeira época no Moreirense foi figura, com Casquilha no comando técnico, e Inácio contratou-o para Matosinhos. Ricardo Andrade assumiu a baliza, mas as coisas não correram bem para o treinador que saiu numa fase muito precoce da temporada.

O brasileiro fez 20 jogos, contudo saiu para o Fátima na abertura do mercado, onde também agarrou o posto até final.

Nova mudança no início de 2011/12 e um regresso ao Moreirense para uma época que seria de sonho. Subida dos Cónegos à I Liga, no segundo lugar atrás do Estoril, de Marco Silva.

«Aqui em Portugal tive a felicidade de subir duas vezes com o Moreirense e isso vai ficar marcado para sempre.»

Continuou no plantel e fez 12 jogos na I Liga, dividindo a baliza com o jovem Ricardo Ribeiro. Apesar desses 12 jogos [campeonato era jogado a 30 jornadas], o que mais o marcou foi uma partida para a Taça da Liga.

«O momento mais marcante foi em casa com o Benfica para a Taça da Liga, no qual defendi o penálti do Lima quando estávamos a ganhar 1-0. O Benfica empatou com outro penálti do Cardozo, mesmo no final. Até hoje sou lembrado por muitos por aquele momento, foi momento feliz, gratificante.» [ver vídeo abaixo a partir 17:22]

Capa do jornal no dia seguinte a defender o penálti

O guardião contou depois um episódio que aconteceu no Estádio da Luz, depois de ter defendido esse penálti.

«Depois na Luz fui suplente, jogou o Ricardo Ribeiro. Mesmo assim os adeptos do Benfica pediram a minha camisola através do Artur Moraes. Foi uma cena inusitada! No final do jogo, o Artur veio ter comigo e disse-me: ‘Ricardo, vamos trocar de camisola?’. Geralmente são os guarda-redes de equipa pequenas que vão pedir, neste caso ele é que pediu (risos)»

Depois completou com a explicação do agora jogador da Chapecoense: «’Queria trocar porque um garoto quer a tua camisola’. Fiquei muito feliz, tudo por causa do penálti de Moreira.»

Nesse jogo em que Artur Moraes pediu a camisola a Ricardo Andrade, o Benfica venceu o Moreirense por 3-1, na última jornada do campeonato, que despromoveu os Cónegos e deixou os encarnados no segundo lugar, depois de terem perdido a liderança uma ronda antes graças ao golo de Kelvin.

Ricardo voltou a sair da Cidade Berço, rumou a Tondela e foi ao serviço dos beirões que voltou a brilhar com um «grande», embora frente ao Sporting B.

«Tive o prazer de jogar contra o Sporting e só perder um jogo. Consegui eliminá-los na Taça de Portugal por 3-2 [2012/13 ao serviço do Moreirense] e depois no Tondela, com o Augusto Inácio já no Sporting [como dirigente], fui jogar contra o «bês» lá e ganhámos 1-0. Novamente defendi um penálti, do Ricardo Esgaio.»

No final do jogo, o antigo treinador desceu ao balneário do Tondela e não lhe perdoou: «O Inácio disse-me: ‘Estás sempre a rebentar com o meu Sporting’ (risos).» Tudo na brincadeira, num encontro que terminou com o antigo treinador a oferecer uma camisola dos leões a Ricardo.

A temporada 2013/14 em Tondela foi a última nos campeonatos profissionais, já que depois desceu ao Campeonato de Portugal, onde representou União de Leiria e 1º de Dezembro (2014/15) e dividiu a época seguinte entre Oliveira do Hospital e Pinhalnovense, clube que representa atualmente.

«Cheguei no ano passado a Pinhal Novo e evoluí bastante, sou melhor do que era, graças ao mister Cândido. Desde que se tenha vontade e humildade para aprender não faz diferença a idade.»

Neste escalão encontrou muita qualidade, boas condições, mas a meta continua a ser voltar aos grandes palcos, mesmo com 39 anos. Apesar desse pensamento, Ricardo Andrade já é treinador de guarda-redes nas camadas jovens do clube, preparando-se para o futuro que se avizinha.

«Já recebi até convites de treinadores que foram meus para seguir carreira com eles, mas ainda não houve um projeto interessante, que valesse a pena. Não quero fazer parte de um projeto só por fazer, quero um projeto que tenha ambição, que tenha o objetivo de chegar ao topo. Quando decidir parar quero chegar ao alto nível como treinador de guarda-redes.»

«Ricardo, vamos ali comer um quilo de cão»

Há doze anos, em 2005, Ricardo Andrade recebeu uma proposta do An Giang (Vietname) da qual duvidou, mas como nunca teve medo de nada arriscou.

«Quando me convidaram estava a jogar na equipa do Zico, na fase de subida. Nem sabia que existia futebol no Vietname (risos). Nunca tive medo de desafios. Fui, deram-me a passagem e eu não falava nada de inglês. Quando cheguei no Vietname, eram motas e motas por todo o lado, impressionante, mas do futebol gostei.»

Já foi há alguns anos e Ricardo não sabe como está o país agora, mas quando lá esteve gostou do que encontrou e até fez uma comparação com Portugal: «Quando cheguei encontrei condições para se jogar, havia bons campos, todos em relva. Em Portugal tenho passado dificuldades porque tenho jogado em sintético e nunca tinha jogado. Agora já estou habituado.»

No país asiático encontrou um português que modificou o futebol: «Estava lá o Henrique Calisto, que conheci. Tinha brasileiros na equipa dele e tornaram-se amigos, ele era referência e contribuiu muito na evolução do futebol daquele país.»

Teve duas grandes dificuldades. A primeira a língua que superou:

«No Vietname, o tradutor só falava inglês, por isso era só com gestos. Pela dificuldade vamos aprendendo o básico. Consegui desenrascar, porque a necessidade obrigou a isso»

A outra dificuldade era a alimentação, mas essa nem tentou.

«Eles comem os cães. Às vezes acabava o treino e chamavam: ‘Ricardo, vamos ali comer um quilo de cão’. E eu era ‘Tá maluco, eu vou com vocês, mas carne não como’. Nunca comi carne, praticamente. Só peixe, nem carne de vaca, nada.»

Depois explicou que havia uma refeição diferente para os estrangeiros, mas que a comida que ia para a mesa dos vietnamitas era impressionante: «Se quiséssemos comer a comida deles podíamos comer, mas tínhamos outras refeições. Às vezes vinha para a mesa rato frito. Nunca na minha vida! Eles comiam tranquilamente.»

Ficou um ano no Vietname e até tinha convite para continuar, mas a família falou mais alto.

«Não continuei, mas tinha propostas. Aquilo era um país muito fechado e não deixavam levar a esposa. Queria ter continuado, mas eles tinham uma mentalidade muito fechada e a minha vida é baseada na minha família, estou com a minha esposa há 23 anos.»

Voltou ao Brasil e entre 2006 e 2009 representou 11 clubes:

2006 – Colinas, Clube do Zico, Paranoá

2007 – Friburguense, Tigres do Brasil

2008 – Santa Cruz, Marcílio Dias, Macaé e Portuguesa-RJ

2009- Ceilândia e América-RJ

«No Brasil há muitos contratos curtos. Envolve muitos estaduais, depois podes mudar e jogar na 2ª divisão. É complicado. Nunca tive empresário, fiz a minha vida com os treinadores, com amigos, que me levaram para outros clubes. Depois tem a ver com os objetivos. Se a equipa tivesse o objetivo de conquistar coisas, por mais pequena que seja, eu gosto disso.»

O guardião explicou que ainda hoje, aos 39 anos, se rege assim: «Posso estar aqui, mas se vir que não há evolução, oportunidade de melhor muitos aspetos, eu pego nas minhas malas e sigo o meu caminho.»

O projeto «Passe Certo» que tem no Brasil

Mas nem só de baliza vive Ricardo Andrade. O futebol é a sua paixão e sempre que pode não hesita em ajudar «os garotos» a crescer como pessoas e como futebolistas.

O guarda-redes tem um projeto social no Brasil, que acompanha à distância, juntamente com um ex-guardião Nilton, Ostinho, Adailton e Gaúcho (tal como Ricardo ajuda à distância) que se chama Passe Certo

São tudo ex-futebolistas que procuram com as suas histórias «inspirar crianças de favelas do Rio de Janeiro a ter sonhos e procurarem ser melhores pessoas».

«Trabalhámos com mais de 200 garotos, alguns desses talentos estão agora nos grandes clubes do Brasil, como o Fluminense. Só através do nosso trabalho, daqui ajudo como posso, é que conseguem. Felizmente o trabalho está a começar a ganhar dimensão», contou.

«A ideia é poder ajudar esses garotos a serem melhores seres humanos e possivelmente grandes atletas. Quem sabe no futuro possam vir para Portugal», sentenciou.

[se quiser seguir o projeto clique AQUI]

Os 39 anos não impedem de sonhar com algo mais

No Pinhalnovense encontrou um clube com todas as condições, onde gosta de estar e onde pode jogar e ser treinador.

O objetivo era chegar aos grandes palcos, mas o clube não conseguiu o apuramento para disputar a fase de subida. «Houve muitas mudanças de treinadores», justifica.

Sente-se bem e no Pinhal Novo encontrou um diretor-desportivo ex-Benfica, António Carraça, com quem partilha as mesmas ideias.

«Cheguei ao mesmo tempo que ele, é um profissional fantástico. Veio confirmar o que eu sempre acreditei no futebol, as ideias, a disciplina, os compromissos com o grupo. É isso que tento passar para os jovens que treino.»

No plantel tem Janício, Paulo Regula e Vítor Moreno que já estiveram na I Liga. Os quatro são exemplos para os mais novos.

«O Janicio é um exemplo, sinceramente não merecia estar aqui, é um grande profissional. É uma referência para mim. Os garotos falam que nos viram jogar, perguntam o que é preciso para chegar lá. Mas isto não é só chegar, eu vim da 3ª divisão brasileira e poucos brasileiros vieram para a II B e conseguiram chegar à I Liga. É motivo de orgulho vir de onde vim e chegar lá. Os garotos perguntam qual o segredo, digo que o segredo é trabalhar e acreditar no que escolhemos para a vida. Temos que ter objetivos, metas.»

Como já referido não há data para pendurar as botas e tirar as luvas, mas há algo que tem bem claro: «A minha vida passa por Portugal, não penso voltar. Não faz parte do meu projeto regressar, quero continuar, ajudar o máximo na formação dos guarda-redes em Portugal, vejo qualidade, mas faltam algumas coisas.»

Ricardo Andrade já treina os guarda-redes do Pinhalnovense, colabora na escola de guarda-redes Nuno Monteiro e não falta quando lhe falam em formações e palestras sobre futebol, sobretudo sobre a específica posição que ocupa em campo.

A época caminha para o fim e o Pinhalnovense vai manter-se no Campeonato de Portugal. Continuar é prioridade, mas no futebol tudo é possível.

«Houve sondagens, mas ainda não decidi. A prioridade é o Pinhalnovense, dependendo da mentalidade que tenha o projeto. Claro que o objetivo é jogar nos melhores palcos, se tiver propostas para seguir na II Liga é objetivo. Quero estar nos melhores palcos, onde fui habituado a viver, onde há mais calor humano.»

Para finalizar deixa dois episódios curiosos:

«Na época passada um clube ligou-me e começamos a falar dos detalhes, mas as coisas pararam porque eles não podiam aceitar o que eu estava a pedir por causa da minha idade. Essa equipa acabou por descer de divisão. No início desta temporada aconteceu o mesmo e essa equipa está no mesmo caminho...»

«Nunca deixei ninguém aproveitar-se pelo fator idade», concluiu.

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