O número 167 da Plaza Brandsen, em Buenos Aires, abriga o maior tesouro do planeta-futebol. Francisco Varallo tem 100 anos e histórias feéricas sem fim. Vive longe da solidão, junto de uma filha «e com a saúde possível». Tem alguns problemas «de mobilidade», mas um «cérebro cheio de vida». Dele brotam memórias profusas, resgatadas aos mais recônditos anos de um ideário nostálgico.

«O Mundial de 1930 é a minha dor»

Ao Maisfutebol, Don Varallo fala da Argentina de Maradona e de Martin Palermo, que lhe surripiou um recorde no Boca Juniors. Mas a isso voltaremos mais à frente. Para já, é o Mundial de 1930 que preenche a conversa. El Cañoncito, como era conhecido, tinha 20 anos e uma paixão desbragada pela bola.

Um bisneto para a história do Boca Juniors

«Jogava no Gimnasia de La Plata nessa altura. Antes do Mundial tinha jogado só uma vez na selecção. Treinava três vezes por dia, muitas vezes sozinho. O campo era longe da casa dos meus pais e eles nem sempre me davam dinheiro para ir de autocarro ou comboio», conta Francisco Varallo. Ao longe, provavelmente num velho gira-discos, ouve-se um canto sofrido em castelhano.

«A música era outro dos meus vícios. Comprava muitos discos. O primeiro carro só veio depois do Mundial. Quando fui convocado para a prova, os meus pais pensaram que tudo ia mudar na nossa casa.»

Carne e carne: «Só não havia salame, o Stabile não deixava»

Naquela altura não havia nutricionistas. Comer bem era comer muito. Estágio também era algo desconhecido. «Ninguém sabia muito bem o que ia ser o Campeonato do Mundo. Para mim era um torneio no Uruguai, contra outros países. Mas diziam que era importante. Juntámo-nos no cais de Buenos Aires, partimos e comemos muita carne até ao primeiro jogo. Essa foi a nossa preparação.»

A Argentina começou por derrotar a França (1-0), depois o México (6-3) e o Chile (3-1). Nas meias-finais os EUA foram corridos por uns impensáveis 6-1. «Marquei só um golo. O senhor Stabile é que os marcava quase todos. Era um homem fantástico, mas rude. Certo dia proibiu a entrada de salame no nosso hotel. Dizia que tinha um cheiro nauseabundo.»

«A camisola de lã ardia-me no corpo»

Francisco Varallo marcou um golo ao México e foi sempre titular. Os obstáculos surgiam dos mais variados e inesperados lugares. Era o futebol amador, no seu estado mais puro. «O Ferreira era uma jóia de rapaz, mas gostava mais dos livros do que da bola. Faltou ao segundo jogo para ir fazer um exame à faculdade», protesta, ainda escandalizado.

«O pior eram os equipamentos. A camisola de lã ardia no corpo, os calções tinham o peso do mundo e as botas eram como uma saca de chumbo. Enfim, quando começava o jogo tudo se esquecia.»

Momentos e celebrações na final de 1930: