Efeméride é uma rubrica que pretende fazer uma viagem no tempo por episódios marcantes ou curiosos da história do desporto, tenham acontecido há muito ou pouco tempo. Para acompanhar com regularidade, no Maisfutebol.

26 de maio de 1946. Há 70 anos. O Belenenses venceu o Sport Lisboa e Elvas por 2-1 e conseguiu aquilo que não tinha logrado antes, nem voltou a fazer: sagrar-se Campeão Nacional.

Os homens de Belém conquistaram a maior competição nacional e foram os únicos, durante mais de 50 anos, a consegui-lo além dos chamados «três grandes». Ao leme, Augusto Silva, que se tornou assim no primeiro português a conseguir o título de Campeão Nacional e que logo a seguir foi convidado para o cargo de selecionador.

A taça de campeão

Inevitável

Fundado em 1919, o Belenenses ganhou hábitos de vitória no fim dos anos 20 e começo dos anos 30. Em oito anos de ouro, o clube das Salésias venceu por três vezes o Campeonato de Portugal (1927, 1929 e 1933) - prova que antecedeu o Campeonato Nacional e que era disputado em eliminatórias sucessivas pelos vencedores dos diferentes campeonatos regionais -, e sagrou-se por quatro vezes Campeão de Lisboa: 1926, 1929, 1930 e 1932.

Mas, desde 1934, altura em que surgiu o Campeonato Nacional, o Belenenses ainda não tinha conseguido ir além do segundo lugar. Embora, verdade seja dita, não andasse, algumas vezes, longe de conquistar o título. A vitória parecia assim inevitável.

Em 25 de Novembro de 1945, o Belenenses sagra-se Campeão de Lisboa pela 6ª vez e, logo a seguir, começa a caminhada para o título nacional.

O caminho

Para chegar ao título, o Belenenses tem que disputar o campeonato com mais 11 equipas: FC Porto, Benfica, Sporting, Académica, Boavista, Oliveirense, V. Guimarães, V. Setúbal, Atlético, Olhanense e SL Elvas.

À quarta jornada, após um empate com o Sporting, goleadas sobre Académica e Boavista, e vitória sobre a Oliveirense, o Belenenses chega ao primeiro lugar, que segura até à 10.ª jornada. À 19.ª jornada, uma preciosa vitória sobre o Benfica, nas Salésias, dá ao Belenenses novamente a liderança. Faltavam três jogos para terminar o campeonato.

Uma vitória sobre o FC Porto em casa dos dragões, e uma goleada sobre o Olhanense, mantêm os azuis do Restelo na liderança, mas a apenas um ponto do Benfica, segundo classificado. Para não depender do resultado do Benfica [que não escorregou frente ao Atlético], era preciso vencer na última jornada, em Elvas, para conseguir o título.

Campeões nacionais

O dia D

Filial do Benfica, o Sport Lisboa e Elvas, que fazia a primeira época no Campeonato de Portugal, contou nessa semana com um reforço especial. Valadas [n.d.r.: autor do primeiro golo da história dos campeonatos nacionais], antigo jogador do Benfica, viajou da capital para o Alentejo para ajudar na preparação da equipa elvense.

No dia do jogo, os jogadores do Belenenses viajaram para Elvas em carros particulares porque o clube não tinha na altura autocarro. Em carros seguiram também muitos adeptos, num sistema de boleias. E outros fizeram a viagem de comboio. Por mais que a A1 ainda não existisse e o caminho fosse demorado, aos homens de Belém não faltou apoio nesse jogo tão importante.

O Belenenses alinhou com: Manuel Capela, Vasco de Oliveira, António Feliciano, Francisco Gomes, Serafim Neves, Mariano Amaro, Mário Coelho, António Elói da Silva, Armando Correia, Artur Quaresma e Rafael Correia.

Mas o jogo não poderia ter começado da pior maneira para o Belenenses. Com pouco mais de um minuto de jogo, o elvense Patalino inaugurou o marcador.«O primeiro jogador nosso a tocar na bola foi o Capela, que a foi buscar dentro da baliza», contou o belenense Manuel Andrade, melhor marcador dessa época, numa entrevista ao Maisfutebol.

Quaresma realçou o efeito do golo nos homens de Belém. «O Patalino marcou e a maioria dos nossos jogadores tremeram. Ao intervalo, o moral estava de rastos. Alguns companheiros ficaram desorientados e até o grande Amaro, o capitão, se foi abaixo. O Vasco e eu, que éramos mais descontraídos e frios, começámos a puxar por eles».

«Foi um caso sério. Toda a gente sabia que éramos obrigados a ganhar. Caso contrário, o Benfica era campeão. Ao intervalo, tenho a impressão de que nem falámos. Entrámos surdos e mudos, todos amuados», recorda Manuel Andrade.

Boletim do clube enaltece o feito

As arrancadas de Vasco

Na segunda parte, graças ao ímpeto de Vasco, o jogo mudou. Aos 66 minutos, o jogador fez uma arrancada, foi por ali fora, junto à lateral direita, ultrapassando todos os adversários que se lhe colocavam no caminho, até ter sido travado em falta. Do livre resultou o golo, apontado por Manuel Andrade.

Aos 77 minutos, novamente Vasco a invadir o meio-campo contrário e a ceder a bola a Artur Quaresma. Arrancou este para a área contrária e disparou o remate que, à boca da baliza, Rafael desviou para golo. Estava feito o 2-1. Seguiu-se um quarto de hora de ansiedade, até ao apito final.

Estava conquistado o campeonato, os adeptos azuis invadiram o campo, e a reação dos companheiros surpreendeu um jovem Manuel Andrade. «Toda a gente chorava na cabine. Eu era o único que não sentia nada. Era um puto com 18 anos. Se ganhasse, ganhava. Se perdesse, perdia».

O regresso a Lisboa foi apoteótico. Os jogadores voltaram em carros particulares, em conjunto com os veículos dos adeptos. Em Cacilhas, o largo principal, em frente do local onde se apanham os barcos, estava repleto de pessoas que queriam festejar o título com os jogadores. Do outro lado, avistava-se o Cais do Sodré e a Avenida 24 de julho inundados de gente.

«Chegámos a Lisboa à uma e tal da manhã», recorda Manuel Andrade. «Demos três voltas à estátua do Afonso de Albuquerque [n.d.r.: nos jardins de Belém]. Era uma tradição de vitória. Ainda foi pior. Toda a gente chorava. Eu dizia ao José Pedro: “As pessoas estão a chorar porquê? Deviam era estar a rir”. Festa não era para chorar». E a festa, com muitas lágrimas à mistura, continuou depois na sede do clube onde o capitão Amaro e o treinador Augusto Silva vieram à janela agradecer os aplausos e incentivos.

Estava escrita a maior página da história do Belenenses. Há 70 anos.