O ciclismo tem sido notícia tantas vezes por más razões. Lance Armstrong adensou mais ainda a nuvem negra que se instalou sobre a modalidade, mas não é só ele. Os casos sucedem-se e ainda nesta sexta-feira foi notícia o vencedor da Volta a Portugal, o espanhol Alejandro Marque, que terá acusado positivo durante a competição maior do calendário nacional. Mas, dentro do próprio desporto, há quem lute contra essa imagem e dê a cara por um ciclismo limpo. Entre eles Rui Costa.

O português, campeão do mundo de estrada em título, é um dos corredores que se associou a uma organização não lucrativa criada precisamente para defender um ciclismo limpo. Chama-se Bike Pure e procura um compromisso dos atletas com os princípios da integridade desportiva.

«Nasceu há quatro anos na Irlanda, depois do Tour de 2007, quando se deu o caso de Vinokourov», conta ao Maisfutebol Andy Layhe, um dos fundadores da organização, irlandês sedeado na Austrália e ele próprio antigo ciclista. 2007 foi o ano de todos os escândalos na Volta a França, a prova-raínha do calendário mundial. O cazaque Vinokourov foi um dos quatro corredores que acusaram positivo, a sua equipa e mais outra viram-se forçadas a abandonar a prova e o dinamarquês Michael Rasmussen também abandonou, quando vestia a camisola amarela, por ter falhado controlos fora de competição.

A imagem da modalidade estava pelas ruas da amargura. E então, Andy quis fazer algo para dizer ao mundo que também havia no ciclismo quem acreditasse no desporto sem doping. «Achámos que não havia uma plataforma para corredores limpos. Falámos com alguns que conhecíamos. Precisávamos de dar aos corredores limpos uma voz.»

Foram criando uma rede de atletas e ganhando apoios. Um deles o norte-americano Greg LeMond, três vezes vencedor do Tour e um dos grandes rostos da luta contra o doping na modalidade. Contam com ciclistas de topo, mas não só. 

«A nossa abordagem não é só para os profissionais, mas para todos os corredores. Não precisam de ser profissionais, toda a gente tem um papel a desempenhar para dizer que este é um desporto lindo», diz Andy Layhe, que fala de uma abordagem global da sua organização à ética no desporto: «Queremos promover o desportivismo, a ideia de ser uma boa pessoa no desporto. No futebol vemos jogadores a mergulhar e a fazer batota, não são bons exemplos. Queremos promover a ética.»

Em Portugal, além de Rui Costa, o outro rosto da Bike Pure é Sónia Lopes, atleta de BTT, na vertente de maratonas. Também Sónia assumiu o código de honra da Bike Pure, comprometendo-se a «tentar fazer o seu melhor usando apenas o talento natural e esforço, nunca usando substâncias para melhorar a performance ou prejudicar a imagem do desporto de forma consciente».

Sónia identifica-se com os princípios da organização, a defesa de «um desporto limpo» e a paixão pela modalidade. Profissional de ciclismo, ela foi mãe há três anos, parou e decidiu regressar. «Voltei à competição porque acredito no desporto, também como parte importante do crescimento das crianças e dos jovens.»

O trabalho que faz com a Bike Pure é voluntário, tal como o de todos os que estão ligados à organização, que se financia através da venda de material de «merchandising» e equipamento. «É trabalho voluntário. Tenho uma vida normal para além disto, tenho filhos», diz Andy Layhe.

O mentor da Bike Pure admite que a organização corre «um risco» ao associar-se a ciclistas que podem, mais tarde, revelar-se também prevaricadores: «É um risco, mas esperamos que todos cumpram. É uma decisão dos corredores juntarem-se à Bike Pure. Se testarem positivo não é só o compromisso connosco que é afetado. Afetam também as suas famílias, os seus adeptos, toda a gente.»

A organização está atenta. Foi assim com o próprio Rui Costa quando, em 2010, o português acusou positivo num controlo, junto com o seu irmão, Mário Costa. Os dois garantiram inocência e atribuíram a situação à presença da substância então proibida, metilhexaneamina, num suplemento alimentar. A sua argumentação foi acolhida e foram ambos suspensos por cinco meses, por não terem cumprido a obrigação de ter consciência das substâncias que usam.

Sónia Lopes, que tem formação em comunicação social, fez no final deste processo uma entrevista com o ciclista português para a Bike Pure, que pode ler aqui, na qual Rui Costa explicava o processo e reafirmava o seu compromisso com os princípios do ciclismo limpo. Andy Layhe admite que foi um momento difícil para a organização, mas dá-o também como exemplo da forma como abordar uma situação destas: «O Rui acusou positivo, falámos com ele, ficou provado que tomou um suplemento, que não foi intencional.»

Os casos sucedem-se no ciclismo profissional, as fronteiras parecem sempre ténues. Conhecedores do meio, será que Sónia e Andy acreditam mesmo que é possível chegar ao topo no ciclismo sem recurso a substâncias ilícitas para melhorar a performance? Lance Armstrong, quando finalmente assumiu o que tinha feito ao longo dos anos, defendeu por exemplo que não é possível ganhar o Tour sem doping.

«Quero acreditar que seja possível e quero fazer acreditar que sim», diz Sónia. «Acho que o desporto tem de acreditar em si próprio. Acho que está melhor agora do que há 20 anos», afirma por sua vez Andy, defendendo que, na fase a que chegou o ciclismo, os atletas também já têm noção de que esta é já uma questão de sobrevivência. Se a modalidade continuar associada a esta imagem negativa, são os próprios financiadores e patrocinadores que irão afastar-se: «Os atletas sabem que se continuarem a dopar-se o dinheiro seca..»

Andy valoriza o que já se fez no ciclismo para atacar o problema. «Está a fazer muito mais do que qualquer outro desporto na luta anti-doping. Foi pioneiro, por exemplo, no passaporte biológico.» Mas também sabe que há muito mais a fazer. A começar, diz, por ir mais fundo do que apenas o castigo aos atletas.

«É preciso olhar para as pessoas por trás dos corredores. Por trás deles há um médico, um diretor de equipa, há fornecedores. Têm de se focar neles. Veja o Bjarne Riis, ainda está no desporto», atira, dando o exemplo do dinamarquês que acabou por assumir ter-se dopado quando ganhou a Volta a França de 1996 e é hoje diretor de uma equipa do ProTour, o primeiro pelotão internacional.

«Estas pessoam ficam no desporto durante 20 anos. Um corredor tem uma carreira de 10 anos. É para aí que tem de se olhar, perceber que eles é que são o mal do desporto, não todos mas alguns. As pessoas que têm um passado de doping não devem trabalhar com ciclistas», defende Andy.

Quando se pergunta se não há também alguma hipocrisia na abordagem ao tema, quando se exige cada vez mais aos ciclistas mas se espera que eles o façam sem recorrer a substâncias para melhorar a performance, Andy responde que o caminho também tem de ser por aí. «Acho que devemos reduzir o número de corridas e também ter cuidado com os dias consecutivos de competição. A velocidade abrandou no Tour, está a melhorar, mas é muito difícil.»