Artigo original: 26/06/2017

A poucos meses de completar 37 anos, chegou a vez de Albert Meyong Zé dizer basta. O avançado camaronês decidiu dar ouvidos ao corpo e pôr fim longa carreira e pôs fim a uma longa carreira ao serviço do clube que lhe abriu as portas em Portugal e que representou em três ocasiões: o V. Setúbal. Para trás ficam muitas recordações e alguns títulos coletivos e individuais.

Numa longa entrevista ao Maisfutebol, Meyong passou em revista o percurso de uma vida dedicada ao futebol. Desde os primeiros pontapés em Yaoundé, capital dos Camarões, no seio de uma família com mais 24 irmãos, passando pelo momento-chave em que foi recomendado pelo treinador do Benfica B ao V. Setúbal, a história incrível a seleção dos Camarões nos Jogos Olímpicos de Sydney em 2000.

O antigo jogador, que vai integrar a equipa técnica sadina na próxima temporada apesar de continuar a receber propostas de outros clubes para reconsiderar o adeus aos relvados, falou ainda sobre a relação especial que mantinha com Jorge Jesus, treinador que o orientou em três clubes, do Sp. Braga quase campeão em 2010 e explicou por que razão (ou razões) recusou o FC Porto em 2013 para ir jogar para Angola.

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Chegou a Portugal em 2000 para fazer testes no Benfica, mas acabou no V. Setúbal. Como é que tudo aconteceu?

No meu segundo ano na Europa, o meu empresário levou-me para Mérida, em Espanha. Assinei contrato em novembro e depois começaram os problemas. O clube tinha dívidas, não pagava a tempo e teve de fechar. Perguntei ao meu empresário: ‘Então, traz-me para um clube assim? E agora? Como é que vai ser?’

Pensou em voltar para os Camarões?

Não! Nunca tive essa ideia. Para além disso, estávamos a jogar as eliminatórias para os Jogos Olímpicos e eu não podia parar.

E o Benfica?

O meu empresário fez umas chamadas e disse-me que tinha de ir para Portugal. Que ia fazer testes a uma equipa: o Benfica. O Benfica é conhecido nos Camarões. Quando cheguei, achei estranho. Não conhecia nenhum jogador. Aquilo não era o Benfica, era o Benfica B. O treinador era o José Morais, que veio ter comigo e disse-me sinceramente: ‘Se quiseres ficar aqui, ficas. Mas se ficares vais jogar na II B ou na terceira e isso não te serve para nada’. Se fosse como agora, eu tinha ficado no Benfica, mas as hipóteses de subir para a equipa principal eram baixas. Aí, ele pôs o meu empresário em contacto com o Rui Águas, que treinava o V. Setúbal e precisava de um avançado.

O Benfica é conhecido nos Camarões. Quando cheguei, achei estranho. Não conhecia nenhum jogador. Aquilo não era o Benfica, era o Benfica B»

Já tinha ouvido falar do V. Setúbal?

Nunca. Quer dizer. Já tinha ouvido falar por causa do Yekini, que tinha jogado cá. Em África, quem conhecia o V. Setúbal, conhecia-o por causa do Yekini. Agora conhecem por causa do Meyong. Saí de Lisboa e fui direto para Évora, onde o Vitória ia ter um jogo amigável. Equipei-me e joguei na segunda parte em várias posições: extremo, avançado e número 10. Não marquei nenhum golo, mas correu bem. Fiz contrato até ao final da época. O Vitória estava em último no campeonato, conseguimos recuperar, mas acabámos por descer de divisão.

Adaptou-se bem a Setúbal?

Sim. Foi fácil. Não me lembro de ter sentido aquela solidão de Itália. Desde que cheguei a Setúbal, sempre encontrei pessoal carinhoso.

Ficou no V. Setúbal até 2005 na sua primeira passagem pelo clube. Pelo meio houve duas descidas de divisão e dois regressos à Liga. Nunca sentiu vontade de sair?

Tive vontade, mas também já tinha amor pelo clube. Sentia a camisola e não podia sair daqui e deixar mal o Vitória.

Estamos aqui na sala de imprensa e ali ao fundo está a Taça de Portugal que ganhou em 2005 ao Benfica. É o momento alto da sua carreira?

É um momento alto na minha carreira e também da vida do Vitória. Havia uma geração de adeptos do Vitória que nunca tinha visto o clube ganhar uma Taça de Portugal. E eu marquei o golo da vitória, o mais importante da minha carreira.

Mas houve outros momentos com o sabor deste?

Em Portugal não. Mas a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 2000 também foi muito importante.

Que recordações tem desses Jogos Olímpicos?

Fomos para lá como outsiders. Ninguém acreditava em nós. O nosso objetivo principal era passar a fase de grupos, o que não era nada fácil, mas tínhamos uma boa equipa: o Eto’o, o Kameni, o Lauren do Arsenal e o Geremi, que jogava no Real Madrid. Não éramos tão bons como o Brasil, mas começámos a acreditar pela forma como lhes ganhámos nos quartos de final: com um golo de ouro no prolongamento e a jogar com nove. Se ganhávamos com nove ao Brasil, não víamos quem podia parar-nos.

E foram até à final.

Sim. Mas estivemos para não jogar, por causa de problemas com os prémios de jogo, que não estavam a ser pagos. Passávamos as fases e diziam que depois nos pagavam, que estava a ser tudo tratado nos Camarões. Diziam para termos calma. Foi sempre assim até à final, até que ameaçámos não jogar em Sydney. Fizemos uma reunião entre jogadores e decidimos que se o dinheiro não aparecesse não jogávamos. No dia anterior nem fomos à reunião que tínhamos com o treinador, em que ele ia dizer quem ia jogar. O treinador chegou à sala com a tática, mas não estava lá ninguém [risos].

Tínhamos jogo às 11 da manhã e deitámo-nos às 3 sem o problema resolvido. Às 9 da manhã apareceu uma mala cheia de dinheiro. Pegámos nas coisas e fomos para o estádio. Chegámos atrasados e nem aquecemos bem»

Mas o dinheiro lá apareceu.

Sim. O treinador ficou maluco. Ligou para o chefe de delegação, que ligou para os Camarões, até que tudo deve ter chegado aos ouvidos do Presidente. Estava quente. Imagina os Camarões não aparecerem numa final de uns Jogos Olímpicos.

(…)

Era uma vergonha para o país inteiro. Fomos rígidos e dissemos que só jogávamos com o dinheiro nas nossas mãos. E nada de cheques. Tínhamos jogo às 11 da manhã e deitámo-nos às 3 sem o problema resolvido. Às 9 da manhã apareceu uma mala cheia de dinheiro. Pegámos nas coisas e fomos para o estádio. Chegámos atrasados e nem aquecemos bem. Entrámos logo a perder e fomos para o intervalo a perder 2-0. Foi horrível. Mas recuperámos na segunda parte e ganhámos nos penáltis.

E a receção na chegada aos Camarões?

Foi grande! Chegámos ao aeroporto de Yaoundé e fomos recebidos em casa do Presidente. No caminho íamos em jipes com dois jogadores. Era gente de todos os lados. Os Camarões nunca tinham ganho nada internacionalmente, tirando as copas de África.

Pensava ter propostas dos grandes, mas não apareceram. Naquele tempo apostavam mais em jogadores que iam buscar ao estrangeiro»

Voltando a Portugal. Em 2005 saiu do V. Setúbal para o Belenenses, onde consegue ser o melhor marcador do campeonato. Esperava nessa altura dar o salto para um clube grande em Portugal ou de um campeonato competitivo no estrangeiro?

Esperava. Pensava ter propostas dos grandes, mas não apareceram. Naquele tempo apostavam mais em jogadores que iam buscar ao estrangeiro. Se fosse hoje, seguramente que tinha aparecido uma proposta. Depois fui para o Levante. Nessa altura também tive uma proposta para ir jogar para a Rússia, no Lokomotiv Moscovo, mas a proposta do Levante foi melhor. Estava perto, mas se calhar não foi uma boa escolha. As coisas não correram bem e regressei.

O que acha que falhou?

Não tive as oportunidades que eu esperava. Tinha de fazer muito mais para poder jogar e limitei-me a fazer o quanto-baste. Não chegava. Culpo-me a mim, porque acho que devia ter dado um pouco mais.

Voltou a Portugal no início de 2008, novamente para o Belenenses. Faz um jogo, mas depois descobre-se que jogou por três equipas no mesmo ano e é afastado até ao resto da época por causa dos regulamentos. Foi o pior momento que viveu na carreira?

Foi um pouco complicado. Vinha de Albacete [n.d.r.: clube da II Liga espanhola ao qual foi emprestado] e estava numa fase em que duvidava das minhas capacidades, que é o pior que pode acontecer a um avançado. Quase não marcava golos. Quando cheguei cá, marquei logo à Naval. Só que aconteceu esse problema que eu não estava à espera. Tive de estar quase toda a segunda volta sem jogar e isso foi complicado. Ia todos os dias treinar a pensar em preparar-me para a época seguinte.

Foi-se abaixo?

Foi difícil, duro. Ia todos os dias treinar, mas não podia jogar no fim de semana. Todos os treinos têm um objetivo: o meu era trabalhar para a próxima época. Foi o pior momento da minha carreira. Também tive uma lesão em Braga [2009]. Fraturei o quinto metatarso quando estava em grande forma. Estava a começar a ser titular na seleção e perdi a minha oportunidade.

Em luta com César Peixoto no Sp. Braga-Benfica, da 2.ª mão da meia-final da Liga Europa 2010/11. «De todas as equipas onde joguei, aquela de 2009 a 2011 era a que tinha o melhor plantel»

A seguir ao V. Setúbal, o Sp. Braga é o clube onde passou mais tempo em Portugal e o único em que lutou por um campeonato, em 2009/10. Acreditavam desde o início que era possível lutar pelo título?

Quando em fui para Braga no ano anterior, a conversa já era lutar pelo título. Isso não era dito para fora, mas era-nos dado tudo para isso. Tínhamos equipa para lutar e já com o Jorge Jesus tínhamos esse objetivo. Não era o principal, mas lutávamos por isso. Queríamos sempre mais.

No final dessa época qual foi o sentimento que prevaleceu? Orgulho ou desilusão?

Uma mistura dos dois. O Sp. Braga teve naquele ano uma das melhores equipas da sua história. Mas o Benfica também fez uma grande época. Noutras alturas, com os pontos que fizemos éramos campeões.

O Sp. Braga é um clube preparado para voltar a intrometer-se entre os chamados «grandes»?

Ultimamente as coisas não têm corrido bem, mas o presidente vai pôr as coisas em ordem. Não vai deixar adormecer a ideia de lutar por títulos. Este ano o Sp. Braga já vai ser muito mais forte.

No início de 2013 teve a oportunidade de assinar pelo FC Porto, mas acabou por ir para jogar para o Kabuscorp, de Angola. Porque é que não agarrou essa oportunidade?

[pausa] Há muito tempo que esperava um convite desses, mas a oportunidade surgiu num mau momento. Tive de pensar em vários aspetos para decidir, mas o Kabuscorp tinha uma parceria com o V. Setúbal e a minha ida para Angola era benéfica para o Vitória. Nessa altura passávamos um pouco mal, com salários em atraso. O FC Porto podia ajudar o Vitória, mas não ia dar tanto dinheiro pela minha transferência. Talvez até só desse um ou outro jogador e isso não era o que o clube realmente precisava.

Foi pena não ter ido para o FC Porto, mas voltaria a fazer o mesmo»

Escolheu o Kabuscorp mais pelo Vitória do que por si?

Não. Foi a pensar no Vitória e em mim. Se fosse para o FC Porto, ia a pensar só em mim. Conhecia a situação que os meus colegas estavam a atravessar e tinha de fazer qualquer coisa por eles e pelo clube. Se tivesse de repetir, voltaria a fazer o mesmo, mas foi pena não ter ido para o FC Porto, que até foi campeão nesse ano. Ia ser segunda opção, mas acredito que ia jogar mais do que o Liedson.

Tirando o período de testes no Benfica B quando chegou a Portugal, essa fui a única oportunidade que teve em Portugal para jogar num dos três «grandes»?

Não considero o Benfica uma oportunidade. Se ficasse lá, se calhar acabava por me perder. Nunca tive a oportunidade de agradecer ao José Morais pela ajuda que me deu naquele momento, mas foi uma pessoa muito importante na minha carreira. Só posso falar do que é concreto e não das notícias que saem. A única coisa concreta foi o FC Porto em 2013.

Meyong foi homenageado no Estádio do Bonfim no último jogo da carreira. Receção ao Boavista a 15 de maio

O que é que passa pela cabeça de um jogador nos últimos minutos da carreira?

É uma sensação estranha. Não é boa nem má. [pausa] Havia uma voz interna que me dizia que dava para jogar mais um ou dois anos, mas outra que dizia que estava na altura de parar. Mas aquele dia [n.d.r.: contra o Boavista na 33.ª jornada] foi emocionante. Ver toda a gente a despedir-se de mim, os meus colegas com t-shirts a dizer ‘Obrigado Meyong’ foi bonito. Acho que tomei a melhor decisão. Tinha de ouvir as pernas e o corpo. Ainda continuo a receber propostas de clubes que me pedem para rever a minha decisão.

Clubes portugueses?

Dois ou três. Quais? Isso não posso dizer [risos]. Mas está decidido. Acabou.

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