Formado no Estrela da Amadora, Jorge Simão teve uma carreira de jogador discreta. Não chegou aos seniores na Reboleira, e depois representou clubes como Real Massamá, Atlético do Cacém, Fanhões e Carregado. Aos 27 anos decidiu abraçar uma carreira de treinador que já o levou para patamares superiores. Em entrevista ao Maisfutebol o técnico que carimbou o apuramento europeu do Belenenses fala do seu trajeto e também revela um pouco de um sonho que alimenta.
 
Tivemos vários treinadores portugueses a conquistar títulos no estrangeiro, como José Mourinho, André Villas-Boas, Paulo Sousa e Vítor Pereira. O treinador português é o melhor do mundo?
Não consigo dizer isso, pois nunca trabalhei lá fora. O que sei é que o treinador português tem muita qualidade. E qual será o motivo para ser tão reconhecido lá fora, para ter tanto sucesso? É preciso pensar nas razões. É a nossa formação? Não é. É genético? Também não será. É curioso pensar nisto.
 
Qual será a explicação?
Eu fui coordenador técnico da Asssociação de Futebol de Lisboa, e para além de coordenar as seleções distritais, também coordenava os cursos de formação do I e II nível. Acho que a nossa formação de treinadores é boa, embora ainda merecesse alguns retoques. Mas isso não justifica tudo. Há aqui uma componente cultural grande. Os latinos, os portugueses, têm esta faceta calorosa no relacionamento humano. E essa é uma faceta fantástica. O futebol é relacionamento humano. A arte de treinar é a capacidade de ligar e desligar os interruptores de cada jogar. Conseguir envolvê-los nos objetivos em comum. Ter esta capacidade junto dos jogadores é estar muito melhor preparado para o sucesso.

 
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Há um episódio curioso do jogo com o FC Porto que tem a ver com isto que falava da arte de treinar. Fizemos uma bela primeira parte, com quatro ocasiões claras de golo. Por volta do minuto 40 já estava a pensar no que ia dizer ao intervalo. Tinha pensado que ia ter uma intervenção agressiva, que ia entrar aos pontapés às garrafas, bater com a mão no quadro. Para fazer sentir que o caminho era aquele, e que não podíamos baixar em termos de agressividade e de pressão. Mas ao minuto 44 o FC Porto marca. No caminho para os balneários pensava que ia ter de alterar tudo. Naquele momento, com o soco que levámos, não podia ter este tipo de intervenção. A arte de treinar é ter esta capacidade de mobilizar os jogadores, e aí ainda sinto que tenho de crescer diariamente. Mais do que dizer aquilo que quero dizer, tenho de dizer aquilo que os jogadores necessitam de ouvir, naquele momento preciso. A intervenção foi mais tranquila, sentei-me ao nível deles, na geleira. Passou mais por acertar pormenores. No jogo anterior tínhamos quebrado o mito de conseguir virar um resultado, frente à Académica. Lembrei-lhes isso, e mantive a ideia de continuarmos a jogar como se estivesse 0-0. Na segunda parte, em determinadas fases, queria que a equipa subisse mais as linhas, mas a equipa tinha ficado agarrada ao que eu tinha dito. Eu fiquei a pensar: “estes gajos ouviram mesmo o que eu disse”. A verdade é que depois chegámos ao empate, e os jogadores que entraram foram fundamentais para um golo que foi decisivo para a qualificação europeia. Fiz questão de os distinguir no primeiro treino.

 
E nesse sentido consegue definir o seu estilo de liderança?
Conseguiria, mas não o quero fazer. Seria deselegante e desadequado. Até porque muitas vezes aquilo que eu penso que sou não coincide com aquilo que os outros, que trabalham comigo, pensam que eu sou. E eu atribuo mais importância ao que pensam essas pessoas, a quem tenho de ganhar respeito, do que aquilo que eu próprio penso de mim.
 
O Jorge Simão treinador já superou o jogador?
Já. Nunca cheguei a jogar na Liga, embora julgasse que tinha capacidade para tal. Digo isto meio a brincar, embora sentisse que podia ter jogado a outro nível. Mas foi a carreira que foi, não me envergonho dela. Ao mesmo tempo estava a tirar o curso de treinador e a formar-me, pois licenciei-me em Desporto. Não me arrependo de nada.
 
Já existia o «bichinho» de treinador? Quando é que começa a pensar nisso?
Quando começo a sentir que, como jogador, não vou atingir o nível que ambicionava. Aos 19 ou 20 anos começo a tirar o curso na Faculdade de Motricidade Humana, e nessa altura já penso que quero fazer disto vida. Fui influenciado por todos os treinadores que conheci. Para o bem e para o mal. Ao entrar para a faculdade começo a olhar para o jogo de forma diferente, já falava do futebol enquanto disciplina, já estava nos cursos de treinador...começava a preparar-me para esta vida. Se os especialistas dizem que para atingir o nível de excelência são necessárias as 10 mil horas de treino, então eu tenho esse percurso. Não apareço na Liga por geração espontânea. Tenho um percurso sustentado nas divisões inferiores. Passei por todas as divisões. Aliás, eu acho que protagonizei algo inédito no futebol português: no espaço de um ano passei pelos três principais escalões. É uma situação única.

 
O final da carreira de jogador, aos 27 anos, foi motivado por alguma lesão, ou já era o apelo da carreira de treinador?
Foi isso. Já não tinha o prazer e a aspiração de chegar a outro patamar. Proporcionou-se a oportunidade de começar a treinar, como adjunto de uma equipa do distrital. Como adjunto também passei pelas divisões todas: distrital, 3ª Divisão, 2ª B, II Liga e Liga. E como treinador principal estive nos três principais. É um percurso longe dos holofotes, mas rico. O futebol não é só holofotes. Há muitas experiências ricas longe do mediatismo.
 
Recordando uma expressão de André Villas-Boas...tem uma cadeira de sonho?
Tenho um sonho, que as pessoas mais próximas conhecem. É um sonho que não vou partilhar, mas que pressupõe a presença de uma outra pessoa nesse projeto. Não vou dizer qual é, mas é um sonho engraçado, que espero ainda ir a tempo de realizar.
 
Consegue dizer qual o modelo de jogo que defende? Quais as principais ideologias?
A dada altura da minha formação, do meu percurso, pensava que um treinador era um conjunto de ideias. E quem me quisesse tinha de comprar estas ideias. Um modelo de jogo, uma forma de jogar, independentemente do sistema. Hoje em dia já não penso nada disso. Hoje penso que sou um treinador versátil, plástico, com capacidade de adaptação e maleabilidade para adaptar-me a diferentes contextos. Estou preparado para alterar o modelo de jogo consoante o clube, o contexto, a cultura do clube e do país. Se for preciso preparar uma equipa para ataque posicional, eu faço-o. Se achar que, para ganhar, para atingir os objetivos, tenho de jogar de determinada forma, eu tenho de o fazer. Esta adaptabilidade é uma riqueza para o treinador. Continuo a ser um conjunto de ideias. Tenho é mais ideias.


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