Uma voz de 18 anos ergue-se no treino dos seniores do ADR Pasteleira. «Bom, bom. Joga!» Uma voz autoritária e autorizada. A voz de Gonçalo Villas-Boas Ricca, sobrinho de André. Villas-Boas, claro.

Treinador adolescente, paixão herdada pelos genes, vontade de crescer e ser grande. «Há dois jogadores no plantel do Pasteleira com a minha idade. Os outros são todos mais velhos», diz Gonçalo ao Maisfutebol, voz determinada, a fazer lembrar o tio André, tutor neste mundo do futebol.

Discurso pensado, organizado, aparentemente inconciliável com a verdura da adolescência. Gonçalo, percebe-se, é um rapaz especial. O mais natural seria vê-lo dentro do campo, a usufruir do futebol, a ter a bola e jogar.

Gonçalo e o tio André: uma ligação especial (arquivo pessoal)

«O meu corpo não o permite», explica o treinador adjunto do Pasteleira, auxiliar de Tiago Quaresma, também ele um jovem de 32 anos. «Joguei nos escalões de formação do Boavista, quando tinham um protocolo com o AC Milan, até aos 14 anos. Mas depois tive graves problemas de crescimento e os meus joelhos sofreram muito.»

Gonçalo foi obrigado a parar de correr, mas nunca de pensar e viver o futebol. «Muito próximo» do tio André Villas-Boas, passou a segui-lo para todo o lado. «A minha família viveu apaixonada os sucessos dele no FC Porto. Depois pedi-lhe para estar com ele em treinos do Tottenham, do Zenit e do Shangai.»

«A dada altura, tinha eu 16 anos, o meu tio desafiou-me a tirar o curso de Nível I. Disse-lhe ‘quanto mais cedo, melhor’ e inscreveu-me na federação escocesa. Foi uma experiência extraordinária. Ele também começou por lá, é uma pessoa inspiradora.»

Gonçalo num treino da escola Dragon Force (arquivo pessoal)

«O meu pai vai buscar-me aos treinos, ainda não tenho carta»

Sonhos, quem não os tem? «Os meus? Chegar ao nível do meu tio André. Tudo farei para isso. Vivi a realidade dele e pretendo lá voltar. Dei agora este passo atrás, regressando a Portugal e a um projeto que me apaixona, o Pasteleira, mas dentro de mim nasceu o desejo de trabalhar ao mais alto nível.»

Gonçalo começou a ser realmente treinador em janeiro de 2017. Esteve seis meses nas escolas Dragon Force, do FC Porto. Desentendimentos com os responsáveis - «senti-me apenas mais um» - levaram-no a sair do clube do coração.

«O André não gostou, claro. Achava que era bom para mim ficar lá. Comecei a enviar o meu CV para todo o lado, para todo o mundo. Quando já não esperava, fui abordado pelo Rémulo Marques [responsável máximo pelo futebol do Pasteleira] e aceitei. O discurso do Rémulo e a ambição do projeto do clube convenceram-me.»

Gonçalo (à direita) com André nos tempos do Inter (arquivo pessoal)

A aprovação de André Villas-Boas chegou por telefone. «Curiosamente, o meu tio é amigo do Rémulo e quando soube disse-me logo para aceitar. Até recusei ofertas das escolas de futebol do Benfica para ficar aqui (risos).»

Gonçalo terminou, entretanto, o ensino secundário e entrou na licenciatura em Treino Desportivo, no IPMAIA. Os dias dividem-se entre a faculdade e os treinos do Pasteleira.

«Treinamos três vezes por semana, às vezes quatro, dependendo do nosso trabalho nos jogos. Procuro transportar para o Pasteleira o que aprendi nos pequenos estágios com o meu tio, apesar de não ser eu o técnico principal», conta Gonçalo, para quem os dias deviam ter 48 horas.

«Os treinos acabam às 22h15, normalmente o meu pai vai buscar-me, porque ainda estou a tirar a carta, e depois janto sozinho. Não durmo muito, não tenho essa necessidade, mas é verdade que o futebol me rouba tempo familiar. Tenho mais três irmãos e toda a família me apoia nisto. Até os meus avós me ligam ao domingo, a perguntar como ficou o jogo e como estou. Não me falta nada.»

«As duas semanas em Shangai foram as melhores da minha vida»

Dia 1 em Londres, dezembro de 2013. Gonçalo equipou-se num dos balneários do Tottenham. Era o primeiro dia no relvado, no treino da equipa do tio André. Fato de treino vestido, ansiedade, borboletas na barriga. E de repente…

«Acabou tudo antes de começar. O meu tio André saiu de uma reunião e estava em lágrimas, ele e os adjuntos. Tinham acabado de ser despedidos. Eu era um miúdo de 14 anos e ver aquilo… querer ajudá-lo, perceber o que estava a sentir. Foi uma lição de vida, mais importante do que qualquer aula tática.»

A partir dali, Gonçalo não mais deixou de acompanhar André. Esteve umas semanas em São Petersburgo a aprender e, mais recentemente, 15 dias na China.

«Foram as duas melhores semanas da minha vida», desabafa o jovem treinador de 18 anos. «Entrei na rotina da equipa técnica do Shangai. Saíamos às 12 horas de casa, almoçávamos com outras pessoas do clube, às 15 horas começava o treino e daí até dormir era só futebol, futebol.»

Uma imagem habitual: Gonçalo e André em família (arquivo pessoal)

A lição, conta Gonçalo, começava ainda em casa. «O meu tio André dava-me logo o plano de treino desse dia. A paixão com que ele falava comigo… é incrível. Ainda por cima o clube estava numa fase decisiva na Liga dos Campeões Asiática, entre os jogos contra a equipa do Scolari.»

Shangai maravilhosa, Shangai não larga Gonçalo. «A minha namorada, por coincidência, também mora lá. Ou seja, tive tempos perfeitos. O Óscar, por exemplo, foi muito simpático comigo. E o Hulk. Fizeram-me sentir em casa.»

«Planos? Subir com o Pasteleira e tirar o Nível II de treinador»

Aos 18 anos, nenhuma sentença definitiva pode ser aclamada. Gonçalo Villas-Boas tem conhecimento, paixão e apoio para vir a ser um grande treinador. O que se segue?

«Quero subir de divisão com o Pasteleira. Depois, também em 2018, vou fazer o Nível II do curso de treinador na federação escocesa. Pretendo beber a cultura do futebol um pouco por todo o mundo. Quero que a minha vida seja esta profissão.»

Gonçalo, adolescente cheio de personalidade, gosta de «ser próximo dos atletas», «falar abertamente», «perceber bem os momentos de treino e jogo» e «explicar as opções». Na família tem um professor de excelência. Agora, é bater as asas e voar.