Ontem foi segunda-feira e Izaro Antxia acordou de manhã, como faz todas as segundas-feiras. Saiu de casa e dedicou o dia inteiro à profissão de vários anos: informática numa empresa familiar. Como faz todos os dias.

Ontem foi segunda-feira e parecia um dia normal, portanto. Mas não foi.

O Maisfutebol encontrou-a às 19 horas na casa dos pais, em Portugalete: uma pequena localidade no País Basco. Relaxava das emoções do dia anterior e fazia horas para jantar.

«Foi um sonho cumprido, sem dúvida. Um sonho que só consegues se tentares com muita força. Mas agora já está, já o cumpri, e isso é algo que me faz muito feliz», confessa.

«Ainda não tenho bem noção, passadas estas horas todas depois do jogo, do que consegui. Nunca mais vou precisar de pedir autorização para jogar à bola, posso entrar em campo e desfrutar do futebol simplesmente... Isto deixa-me sem palavras.»

Nesta altura convém explicar que Izaro Antxia é uma mulher de 35 anos que nasceu Gorka Antxia: nasceu um homem. Ainda não terminou a mudança total de sexo, aliás. O que, dito de outra forma, significa que há um pénis a mais nesta história.

Gorka Antxia jogou futebol desde sempre, numa paixão que não terminou com a mudança de sexo: por isso Izaro Antxia continua a alimentar esse amor que lhe vem da infância.

«Comecei de muito pequenina a jogar futsal. No futebol nunca me saí bem, mas no futsal sim, por isso jogava desde que tinha oito ou nove anos, logo na categoria de benjamins. Jogava sempre com rapazes, até que um dia um treinador me disse para me deixar disso que não era suficientemente bom.»

Foi um choque, mas felizmente não chegou para matar a paixão: as melhores paixões são sempre arrebatadoras. Por isso continuou a jogar até que se reconciliou com o futsal.

«A partir daí joguei com os meus amigos, na rua, até que voltei a jogar com 14 ou 15 anos na equipa da escola. Aí correu-me muito bem, depois voltei a jogar numa liga não oficial, da minha terra, e mais dois anos numa liga federada, também com rapazes.»

No fundo passou a adolescência inteira a jogar com rapazes: ela que sentia ser uma mulher da ponta dos cabelos à ponta dos pés. Ora numa idade sensível como aquela, carregada de emoções e sensibilidades, esta confusão de sentimentos podia ser traumática.

Izaro Antxia diz que não o foi.

«Se me sentia mal? Não digo mal... sentia-me estranha. Não estava no meu sítio. Os balneários masculinos eram um sítio que frequentava desde que tinha oito anos. Então numa certa altura tornou-se algo natural», confessa.

«Mas não vou esconder que me sentia incómoda e desconfortável. Sentia também uma falta de confiança, que é normal quando não estás no teu território. O que senti ontem a jogar na equipa de Leioa Maia, por exemplo, foi completamente o oposto: foi uma coisa que nunca tinha sentido antes.»

Ora ontem, já se percebeu, Izaro Antxia fez história: tornou-se o primeiro transexual federado de Espanha - e, segundo diz a ILGA, também da Península Ibérica - a disputar um jogo oficial: um jogo da liga de futsal da Federação do País Basco.

Tinha recebido a 30 de março o bilhete de identidade que lhe garantia que já não era um homem, nem se chamava Gorka: era mulher e chamava-se agora Izaro. Por isso, e poucos dias depois, recebeu também a autorização da Federação Espanhola para ser inscrita.

Ontem, que era um dia especial, dia de domingo no mundo, tinha os olhos do país sobre ela: afinal de contas ia furar uma barreira mais no caminho da igualdade do género e da luta contra o preconceito.

«Na noite anterior consegui dormir alguma coisa, mas pouco. Acordei muitas vezes com dores de cabeça e com suores, por causa dos nervos. A verdade é que não esperava que ficasse tão ansiosa, mas são coisas que não conseguimos controlar», refere.

«A primeira vez que entrei em campo foi por poucos segundos: o árbitro mandou-me sair logo a seguir porque esqueci-me de tirar uma pulseira do braço. Voltei a entrar pouco depois e senti-me perdida em campo, um pouco deslocalizada. Mas quando voltei a entrar na segunda parte os nervos já tinham passado e, aí sim, pude jogar mais tranquila. Pude finalmente desfrutar do jogo.»

O jogo correu-lhe de resto muito bem, diz. A jogar fora de casa, no bairro de San Ignacio, em Bilbao, a equipa conseguiu arrancar um empate (1-1) com o Bilbao B. O que é excelente: o rival está - ou antes, estava - na luta pelo título de campeão.

Para além disso, há claro a experiência.

«A mim encanta-me jogar. Tudo o que rodeia o futsal, apaixona-me. Ontem, por exemplo, voltar a sentir a tensão anterior aos jogos, a ansiedade de entrar em campo, a felicidade que é sair do balneário para fazer o aquecimento, são coisas que te ficam para sempre.»

Desfrutou, portanto. Até porque não sentiu nenhuma discriminação. Diz que foi um jogo com tensão, até porque o Bilbao B precisava de ganhar para continuar a sonhar com o título, mas apenas isso: não houve insultos, não houve provocações, nem sequer discriminação das bancadas.

«Foi um jogo muito tranquilo. Perfeito.»

Tão perfeito como é estar no balneário da equipa Leioa Maia, onde encontrou um grupo de raparigas que a recebeu de braços abertos: dentro daquelas quatro paredes ninguém pensa que aquela pessoa com 1,84 metros, voz grossa e um pénis não é uma mulher.

O constrangimento por estar nos balneários femininos já acabou há muito tempo, de resto.

«A primeira vez que entrei num balneário feminino só olhava para o chão e pensava: porra, espero que ninguém diga nada», atira.

«Agora, como já levo algum tempo nos balneários femininos, sinto como algo natural. É como se o tivesse feito toda a vida. Entro normalmente, ando nua, falamos, brincamos.»

E como foi a primeira vez, pergunta-se?

«A primeira vez foi numa prova de atletismo, em Castro Real, na Cantábria. No final da corrida disse à minha amiga que ia comigo que ia entrar no balneário, porque não havia nenhuma razão para fazer o caminho de volta a casa sem tomar banho. Então entrámos as duas e a minha amiga explicou às outras raparigas que era uma transexual e que ainda não tinha feito a operação, mas que era uma mulher. Então as meninas comportaram-se como se fosse a coisa mais natural do mundo. Não houve nenhum problema. A partir desse dia tornou-se mais fácil entrar nos balneários femininos.»

Tornou-se mais fácil também convencer-se que era uma mulher, como sempre se sentiu dentro da cabeça. Embora por vezes nem todos olhassem para ela dessa forma.

Hoje já não tem dúvidas: é uma mulher. No domingo, num modesto campo de futsal do País Basco, em Espanha, um jogo de futebol foi importante para convencer o mundo de algo muito importante também: a anatomia humana por vezes comete erros graves.

Mas que não são irreparáveis.

«Sentir-me bem num campo de futsal era algo que era um sonho que perseguia desde criança. Agora acho que só me falta fazer a operação, acabar com a mudança de género e poder sentir-me completa quando olhar ao espelho», refere Izaro Antxia.

«Mas de resto não posso pedir muito mais, porque não há muito mais a conseguir.»

Ontem foi segunda-feira e Izaro Antxia acordou de manhã, como faz todas as segundas-feiras. Para viver o primeiro dia do resto da vida dela.