José Dominguez esteve sete meses em Cartagena para treinar o clube da cidade colombiana. Voltou em agosto deste ano com uma experiência única de como é o futebol no país sul-americano, uma experiência que não hesita em classificar de «enriquecedora» apesar de todas as dificuldades por que passou o treinador português.

Antes de mais, explica-se a duração da permanência. Dominguez foi para o Real Cartagena em dezembro para treinar o clube no Torneio Apertura. A viagem coincidiu com a altura em que o Sporting estabeleceu uma parceria com o clube colombiano. Mas Dominguez já lá tinha estado antes. A fazer o trabalho de campo, a fazer o trabalho de casa.

«Antes de ir para Cartagena fui ver a equipa em outubro. E a equipa que vi [em dezembro] não tinha nada a ver com a que me foi entregue. Cerca de 80 por cento da equipa saiu e eram só miúdos de Cartagena sem experiência de futebol profissional que lá estavam», conta o treinador ao Maisfutebol.

O Apertura terminou com a equipa a ficar a um ponto da fase de promoção à primeira divisão colombiana. E, para este ano, Dominguez e a sua equipa técnica de mais quatro portugueses tomaram uma decisão: «Entre o segundo e o terceiro jogo do Clausura [em julho], dissemos ao presidente que saíamos se as coisas não melhorassem nas condições de trabalho.» «Estivemos cerca de um mês e pouco até voltarmos a Portugal», explica.

«Como o presidente não melhorou as condições faladas» voltaram, mas não é o que os levou a sair que serve de mote para as conclusões. «Mesmo assim, metemos dois miúdos na seleção sub-19 da Colômbia», diz como entrada ao esumo em palavras do que trabalho que viveu: «Foi uma experiência muito enriquecedora, mesmo com a falta de condições de trabalho. Conseguimos identificar muitos jovens.»

Mas o Real Cartagena «é um clube com muitas carências», que vive no seio de «um estrato social muito baixo», onde há «miúdos com problemas de nutrição». O clube existe «sem gabinete médico», sem campos de treino próprios e tem de alugar relvados «duros que nem pedras» por não serem regados, «sem balneários». «Treinávamos no George Washington, no de Taurica e numa base naval.



No campo da base naval, por exemplo, os obstáculos vão desde ter «todos os militares à volta, com barulho» aos «cães a entrarem no campo» e até aos «formigueiros de formigas vermelhas» cujas ferroadas são dolorosas. «O estádio [onde joga o Real Cartagena] é da câmara municipal e só deixam utilizá-lo uma vez por semana», refere Dominguez frisando que as condições de treino das de jogo eram «completamente diferentes»: por isso, «nos jogos em casa não tínhamos vantagem».

«O mínimo» que a equipa técnica portuguesa pedia «era conseguir um campo com balneário para os jogadores». Não aconteceu. Não ficaram. Mas enquanto estiveram «deu muito prazer trabalhar». Os jogadores são «tecnicamente bons», mas, «na tática, sem a bola, só há uns dois ou três». A Colômbia «é um país complicado a nível cultural» em que «às 5 horas da tarde há miúdos e miúdos a jogar», mas em que só há 10 por cento de pessoas a viver acima da média: «O resto é pobreza extrema.» «Não há nenhum clube ali [na região] que tenha formação», acrescenta lembrando que «quase todos os jogadores colombianos [da atualidade] com sucesso na Europa tiveram formação na Argentina».

É também por isso que Dominguez recorda como no Real Cartagena que treinou «o crescimento dos miúdos foi fantástico, a equipa já foi ficando organizada através das pequenas coisas que aprendemos na Europa aos nove anos de idade». «Foi fazer trabalho de base. E muitos miúdos que nós estreámos cresceram muito», diz a respeito de um «trabalho feito, proveitoso, mas muito desgastante».

Umas das dificuldades que diariamente punham à prova a resistência da equipa estava no autocarro, o autocarro que «era rouparia, departamento médico, balneários»... A dependência da equipa para com o veículo que era mais do apenas transporte era tal que ou não se avariava ou perdia-se o dia. «Se acontecia alguma coisa ao autocarro, ou cancelávamos ou treinávamos num sintético de 4 para 4.»

As dificuldades de treino dividiam-se entre campos de treino de condições muito difíceis, uma vez semanal no estádio - «que tentávamos esmifrar ao máximo: era uma hora e meia e ficávamos sempre mais...» - e o transporte – porque «só dois ou três é que tinham carro próprio». Tudo isto condicionava um plano de treino que pensava em tardes ou manhãs de descanso por causa da carga do dia anterior, por exemplo, e era constantemente alterado por um campo indisponível ou por uma avaria do autocarro.

Porque os atrasos, esses, já faziam parte do programa. «Nós treinávamos às 7 horas. O material estava todo dentro do autocarro. «O autocarro chegava às 7 e o treino nunca começava a horas: era preciso tirar os equipamentos, pôr as ligaduras, etc. Assim, começávamos a treinar às 8 horas. O treino acabava às 10:30. Os jogadores chegavam a casa ao meio dia, com 30 graus de calor, sem comer durante horas porque o autocarro começava a apanhá-los às 5 e meia da manhã.»



Dominguez lermbra como «à última hora trocavam-se os locais dos treinos» e passava «diariamente a arranjar soluções, mas aponta da mesma forma que «a mais valia foi a grande dedicação da miudagem, miudagem que joga bem com a bola no pé, mas que tem um problema em entender o jogo sem bola». Jogadores com experiência «havia quaro ou cinco» e, «depois, todos tinham entre quatro a sete jogos» como profissionais: «Estreámos imensos.»

«Mesmo no campeonato não fomos inferiores: perdemos um único jogo em casa», destaca o treinador português com orgulho dos «miúdos [que recorda] a beberem tudo, os vídeos, que adoravam ver tudo». «Muitos deles não tinham maneira de ver em casa, nem os treinadores mostravam. «Ninguém tem canais desportivos por cabo em casa... Se calhar, só três ou quatro é que têm...»

Dominguez refere que na Colômbia «há um grande défice devido ao embargo de 40 anos dos Estados Unidos». «Só agora é que há liberdade de expressão», por exemplo. E «as mentalidades vão ter de mudar». «Eles têm um problema enormíssimo em lidar com o erro», aponta Dominguez contando o que acontecia: «Agarravam-se à perna se erravam dois passes  porque o público assobiava logo. Agarravam-se à perna e pediam para sair. No dia seguinte de treino estavam todos prontos para treinar.»

«Até para apontar erros era preciso ter cuidado», recorda o treinador português sobre esta cultura com a qual também aprendeu a lidar: «O que impressiona a princípio, torna-se depois banal.»

A nosso pedido, Dominguez contou-nos o que o marcou mais da melhor forma: «Marcante foi ter visto a malta jovem a ganhar 4-0 em nossa casa ao Barranquilla e ir a casa do Junior Barranquilla empatar 1-1 fazendo um jogo fantástico para a Taça.»

Assim como também acedeu a contar o que o impressionou mais da pior forma: «Ainda me arrepio quando me lembro do dia em que recebi uma chamada do Luis Valencia. A mulher dele tinha falecido.» «Tinham um filho de quatro anos. Foi o que mais me marcou, criámos muita afinidade porque ele era para ser dispensado e ficou. Sempre ajudámos os jogadores. E ele fez um esforço para a mulher e o filho virem tirar fotografias comigo...»

Sem condições profissionais para ficar na Colômbia, José Dominguez voltou a Portugal para retomar a carreira de treinador «de forma diferente» do que viveu em Cartagena. Mas não se esquece daqueles jovens cujo «sonho é sair para o futebol da Europa: «Não há dia em que não fale com um deles.»