José Rachão, 65 anos. Veteraníssimo nestas andanças. O mais antigo entre os antigos que andam pelos campeonatos nacionais. «Você tem noção de que está a chamar-me velho?!», dispara no primeiro contacto telefónico uns dias antes da entrevista que teve lugar num bar que foi dele durante 20 anos no Montijo, cidade da margem sul de Lisboa onde assentou arraiais há mais de quatro décadas.

Durante cerca de horas de conversa passou em revista uma vida dedicada ao futebol.

Desde que deixou Peniche para assinar pelo Benfica ainda na adolescência, passando pela Taça de Portugal ganha pelo V. Setúbal – «um filme de terror» - à decisão de emigrar pela primeira vez já depois dos 50 anos e de que forma acompanhou a evolução do futebol nas últimas décadas num futebol que diz estar cada vez mais formatado.

«Não me admirava que daqui a 15 ou 20 anos tenhamos o treinador e o jogador robô, que é comprado na América e mete-se uma moeda com a tática», ironiza.

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O que é que faz um treinador emigrar pela primeira vez na vida já depois dos 50 anos?

O êxito no Vitória abriu-me portas. E fui à procura de mais lá fora. Cá, dificilmente teria outra oportunidade de ganhar mais títulos. E ganhei alguns no estrangeiro.

Títulos e dinheiro, não?

Sim, mas o dinheiro para mim não vale nada.

Foi fácil adaptar-se ao Koweit, um país do Médio-Oriente com uma cultura naturalmente da ocidental?

Nada é fácil na vida, mas quando se tem força é mais fácil. Foi uma adaptação rápida.

E do Koweit sai para a Líbia, para treinar o Al Ittihad Tripoli, o clube…

Do filho do Kadhafi. Convivia muito com ele. Com o filho, o Muhammad Kadhafi, que mandava também em tudo o que era comunicação no país. Estou a lembrar-me da altura em que me fui embora do clube. Tinha umas contas para fazer e fui a casa dele. Ele tinha a mania de fazer pesca submarina e convidou-me para ir mergulhar com ele. Disse-lhe que não: que ele matava-me lá em baixo [risos]. E acabei por não ir.

E Muammar Kadhafi?

Nunca o vi. Mas por onde quer que eu andasse tinha alguém a ouvir a minha conversa. A Líbia era um país de extremos. Via-se gente a passar muito mal, mas também gente a passar muito bem. É o normal nos países com ditaduras.

Alguma vez se sentiu inseguro lá?

Nunca. Nem na Síria nem na Arábia Saudita. Nunca me senti inseguro em nenhum desses países.

A Síria é outro país que vive uma grande convulsão. Chegou a senti-la quando foi para lá em 2009?

Aquilo rebentou mais tarde, em 2011. Andei sempre a passar ao lado das guerras. Por acaso, alguns amigos meus no Koweit brincavam com isso: ‘Agora que vieste para aqui vai rebentar a guerra. Estiveste na Líbia, rebentou lá a guerra, na Síria a mesma coisa…’ Andei sempre a passar ao lado. É engraçado sem ter graça nenhuma.

Como era Alepo naqueles tempos, uma cidade que hoje está quase totalmente em ruinas?

Uma cidade muito bonita, com uma grande vida noturna e com mentes mais abertas. Mas depois...

Foram mais de dez anos entre Koweit, Líbia, Síria e Arábia Saudita. Qual foi o país que mais o marcou?

O Koweit. Foi o primeiro. Tem uma vida parecida com o Dubai e está a evoluir muito. É um grande país para se viver, até porque é mais aberto do que os outros. Conheço o Koweit como Lisboa.

No Al-Arabi, clube do Koweit onde conseguiu vencer a Taça do Príncipe

Sentiu-se mais valorizado no estrangeiro do que em Portugal?

Não. Eu não ligo muito a mim. Nunca fiz esse tipo de análises. Sinceramente, acho que tenho o respeito do futebol português. Fui um bom jogador: não fui mais longe por culpa própria. Como treinador, a mesma coisa.

Antigamente tínhamos de ir para a praia correr. Hoje peço desculpa a todos os jogadores a quem fiz isso»

Vê-se hoje como um treinador mais capaz do que há 12 anos quando ganhou aquela Taça de Portugal pelo V. Setúbal ao Benfica?

Muito mais. Não vou vender a banha da cobra, mas tenho capacidade para treinar numa II Liga ou numa Primeira. Sinto-me mais treinador. Ainda não perdi as minha qualidades.

Como olha para a evolução do futebol nos últimos 30, 40 anos. É cada vez mais uma ciência?

Não tenho dúvidas. É tudo muito mais científico do que antigamente. Ganharam-se umas coisas e perderam-se outras. Antigamente tínhamos de ir para a praia correr. Hoje peço desculpa a todos os jogadores a quem fiz isso. Mas os meus treinadores também têm de me pedir desculpa [risos] Mas era o que tínhamos: era assim que ganhávamos a nossa força.

Um regresso ao Montijo quando já representava a Académica

Acompanhou a evolução?

Acompanhei. Porque se parasse tinha de abandonar e escolher outra vida. Fui lendo, fui estudando, vendo e observando. Fiz os possíveis e os impossíveis para acompanhar o crescimento do futebol. Tendo mais ou menos idade, tens de adaptar-te. Ao fim e ao cabo, o futebol continua a ser estudo e há sempre qualquer coisa para inventar. Mas não me admirava que daqui a 15 ou 20 anos tenhamos o treinador e o jogador robot, que é comprado na América e mete-se uma moeda com a tática. Está cada vez mais próximo disso [risos].

Gostava que aparecesse um modelo de treinador Quinito nestas gerações»

Os jogadores são cada vez mais formatados?

São. E isso também tem a ver também com o estilo de treinador que se foi encontrando. Esta história dos treinadores já tem mais de 30 anos, quando começaram a aparecer os treinadores das universidades, os professores. Transformaram um bocadinho o futebol. Adaptaram-no à atualidade, o que é normal. Mas perdeu-se um bocadinho o estilo de jogador de futebol de rua, que gostava de ter a bola no pé, que vivia com a bola no pé. Havia menos tática e mais improviso, menos marcações e perseguições. Já aparecia um ou outro treinador com um estilo mais tático – como o Manuel de Oliveira – mas havia outros que tinham um estilo muito próprio. O Quinito era um treinador fabuloso, que dava uma liberdade enorme aos jogadores e punha uma equipa a jogar futebol. Gostava que aparecesse um modelo de treinador Quinito nestas gerações. Agora temos jogadores formatados e treinadores formatados.

Surpreende-o que aos 65 anos seja o treinador mais velho nos campeonatos nacionais?

Sou? É mais um título!

O bichinho continua muito vivo?

Quando vim lá de fora tive um período de seis ou sete meses em que pensei desligar-me do futebol ou ligar-me ao futebol noutras funções, mas não dá para o meu espírito. É jogar e treinar. Deus vai-me ajudar e se eu não tiver de morrer dentro do campo, que morra ali perto dele que já fico satisfeito.

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