«Prriim prriim, prriim prriim… Olá, daqui Marc!»

O barulho inconfundível do elétrico irrompe pelo telefone adentro.

Do outro lado da linha ouve-se um português quase perfeito, fazendo esquecer de imediato de que se tratava de uma chamada de longa distância.

Em San Francisco era hora de almoço, enquanto em Lisboa já se punha a lavar a loiça do jantar. O relógio marcava 12h30, menos oito horas, e o frenesim das ruas fazia-se ouvir.

A conversa com o Maisfutebol prosseguiu já num sítio mais recatado, longe de tanta azáfama.

Marc dos Santos é aquilo a que se pode chamar um homem de sucesso. Aos 39 anos, e apesar da ainda curta carreira, o técnico soma alguns feitos assinaláveis no continente americano, que já lhe valeram inclusivamente a alcunha de Mourinho naquelas paragens.

A comparação não lhe agrada mas aceita-a, visto que se trata, de facto, de uma das suas referências.

«Dizem que sou o novo Mourinho ou o novo Villas-Boas. Para mim é ‘overrated’, como dizem, sobrevalorizado. É verdade que têm impacto na pessoa que quero ser, mas estou mais concentrado em fazer o meu trabalho e ter controlo sobre a pessoa que quero ser», começou por dizer.

Filho de pais portugueses, Marc nasceu no Canadá mas viveu em Portugal dos 9 aos 22 anos. E foi em Aveiro, terra da infância, que desenvolveu desde muito cedo o gosto pelo futebol.

Quando estava em Portugal, uma professora que tinha em Aveiro disse-me um dia que o futebol não trazia comida para minha mesa, isto porque apanhou o meu caderno e tinha já a melhor seleção de jogadores da altura. Era só futebol»

Depois, um jogo que lhe mudou a vida.

«O primeiro jogo que vi foi um Boavista-FC Porto, com João Pinto e Nuno Gomes no Boavista. Quando me sentei na bancada pensei que queria trabalhar naquilo um dia. Aos vinte anos decidi investir a sério», revelou.

Estagiou no Bessa, no Beira-Mar, até no FC Porto. Em terras lusas aprendeu o mais que conseguiu sobre métodos de treino antes de partir para a Irlanda, onde completou o curso de treinador da UEFA.

Depois de algum tempo em formação, Marc rumou ao Canadá. O novo lar da família serviu-lhe também de ponto de partida para a carreira.

«FC Porto foi a melhor equipa que Mourinho teve na carreira»

Marc começou por baixo, como tantos outros, mais virado para os escalões de formação numa fase inicial. Dois anos bastariam para conseguir uma experiência mais a sério, por assim dizer.

Em 2009 assumiu o cargo de adjunto dos Impact Montréal e o título conquistado essa época na USL, um dos campeonatos norte-americanos, abriu-lhe outras portas.

No ano seguinte assumiu o comando técnico da equipa principal e começou a construir um modelo sustentado, inspirando-se em casos muito específicos.

«Tenho ideias muito vincadas. Identifico-me muito com o tipo de treino de Mourinho e com a forma de jogar de Simeone, por tirar o máximo dos jogadores dele, sempre na luta com os rivais apesar de terem um orçamento mais baixo. No lado humano identifico-me com o Carlo Ancelotti, pela forma como trata os jogadores», apontou.

«O futebol…prriim prriim…

… o futebol é um meio sujo, com muito pouca honestidade. Falta pessoas que sejam boas, honestas com o que os rodeiam. Passei uns tempos no Chelsea e o Ancelotti é exemplar no comportamento com os jogadores», sublinhou.

Marc vê então o futebol da mesma forma que encara a vida, «com honestidade» para com os jogadores.

Para se ser bom treinador é preciso ter a porta do escritório sempre aberta, não ter medo do confronto. O jogador tem de saber porque joga ou não. Todos os atletas procuram um mister honesto para com eles»

A essa filosofia gosta de juntar uma outra: colocar na prática aquilo que se aprende no quadro.

«Na casa do Carlos Santana (guitarrista) deve haver guitarras em todo o lado. Deve tocar guitarra a toda a hora e se calhar não sabe tocar piano. Deve praticar ao máximo naquilo que é bom. Se quero a equipa a jogar de uma forma tenho de mostrar isso, não apenas em teoria», explicou.

É precisamente este o tipo de jogadores que Marc gosta de levar para as suas equipas, atletas capazes de assumirem um compromisso com o projeto.

«Gosto de jogadores que encontram soluções, até fora do campo. Não quero jogadores que choram porque falta alguma coisa no apartamento ou coisas assim. Gosto de quem faça o clube crescer. Têm de ter caráter, integridade e espírito de trabalho», referiu.

Foi aí que Mourinho entrou em cena novamente.

O FC Porto campeão europeu de Mourinho tinha isto tudo. Foi a melhor equipa que ele construiu em toda a carreira. Se eu tivesse oportunidade de fazer-lhe uma pergunta era essa: “apesar da qualidade que teve noutras equipas, fala-me do espírito das pessoas naquele FC Porto”. Tenho certeza que era muito forte e explica o sucesso. Esse ADN tem agora o Simeone»

Do adeus a Raúl aos recordes individuais

Mesmo assente num projeto estável nos Impact Montréal, Marc decidiu deixar a equipa canadiana para embarcar num projeto totalmente distinto.

No Brasil abraçou um desafio nos escalões de formação do Palmeiras, coincidindo na mesma altura com Luiz Felipe Scolari, embora só fizesse uns trabalhos de observação para a equipa principal.

Na época de estreia sagrou-se campeão nacional de iniciados e na seguinte envolveu-se no projeto do Desportivo Brasil, tendo como desafio construir uma equipa competitiva para a Copa de São Paulo.

Marc venceu o prémio de Treinador do Ano nos escalões jovens do Palmeiras

Deixou o país do futebol no ano seguinte e regressou ao Canadá. Em mãos tinha uma missão quase impossível: fazer uma equipa para os Ottawa Fury praticamente do zero.

Utopia para muitos, mas não para o luso-descendente.

Mesmo com limites salariais impostos pela NASL, outro dos campeonatos norte-americanos, o técnico montou uma equipa à sua imagem, apostando em atletas com traços de personalidade vincados.

Num espaço de dois anos conseguiu levar a equipa canadiana à final da NASL, onde perdeu frente ao New York Cosmos. Para além de dizer adeus ao título, Marc despediu-se também de Raúl González, estrela do futebol espanhol e mundial que pendurou as botas após esse jogo.

Lembro-me bem. Tínhamos perdido no primeiro jogo e ele elogiou muito a nossa equipa. Na segunda-mão, em Ottawa, tivemos uma conversa em que lhe desejei muita sorte e disse que foi um exemplo. É uma pessoa fantástica, sem ego. Trabalhava muito no campo, parecia o primeiro ano que jogava futebol»

Os feitos pela equipa de Ottawa não passaram despercebidos ao mundo da MLS, a principal competição. Sem hesitar, Marc deixou novamente outro projeto estável e assumiu o leme da equipa secundária do Sporting Kansas City (Swope Rangers), adjuvado pelo ex-Benfica Nikola Popovic.

Foi ao serviço do emblema do Kansas que bateu um recorde onde o dois é a chave: foi o único treinador a levar duas equipas a duas finais de duas competições diferentes (NASL e USL) e em dois anos consecutivos.

Popovic ficou por lá «para sorte deles», mas Marc não.

Outro salto.

«Ligaram-me de San Francisco a dizer que queriam construir uma equipa de raiz, os Deltas. É a terceira que construo do zero. Hoje considero-me um ‘manager’, faço um pouco de tudo. Tenho um limite salarial e de extracomunitários mas uma ideia de jogo muito definida, pelo que não vou atrás de 25 jogadores e depois decido como quero jogar, é o contrário», frisou.

Marc assume-se como um treinador de desafios extremos e ambicioso, porém despreocupado com o futuro.

Quero treinar na MLS, na Europa e chegar à seleção canadiana, mas não tenho pressa. Acredito naquilo de estar sempre no lugar certo à hora certa. Aqui dizemos "caminha da forma como falas”. Para mim, o alto nível não é treinar as grandes equipas, é fazer a diferença onde estás. Aprendes com a vida que a única coisa que podes controlar é ser o melhor hoje e hoje trabalho como ninguém»

Portanto, dar uma de Alex Ferguson e permanecer anos a fio numa equipa não entra nos planos. Só em condições específicas.

«Seria capaz de ficar muito tempo, mas no sítio certo. Tenho de impactar a vida das pessoas, ajudar a avançar, é isso que me motiva. Para estar vinte anos numa equipa tenho de ter novidade, senão procuraria outro projeto», admitiu.

Em Portugal torce por Jesus, quer dizer, mais ou menos

Apesar de muito longe, Marc continua muito atento ao que se passa no campeonato português e gostava de regressar um dia ao sítio onde tudo começou.

Questionado sobre o predileto em terras lusas, a resposta foi quase imediata.

As equipas de Jesus são fantásticas, o Benfica e agora o Sporting. Têm uma identidade sempre forte. Para mim é o melhor treinador na Liga. Há coisas que não me identifico com ele, como quando vi imagens dele a empurrar pessoal técnico, mas não posso julgar, apenas como jogam as equipas dele e têm sido as que têm uma identidade mais forte»

O futebol português vê-o como «demasiado caro», mesmo para o mercado norte-americano, conhecido por gastar grandes verbas na contratação de jogadores de gabarito mundial.

Ainda assim, Marc admitiu que tem alguns jogadores lusos referenciados para o San Francisco Deltas, onde traça como objetivo «qualificar a equipa para o playoff logo no primeiro ano» e fazer com que «as pessoas sintam orgulho em ter um clube de futebol na cidade».

A pré-época no NASL arranca a 30 de janeiro e Marc dos Santos procura fazer outro milagre do outro lado do Atlântico.