Daca, 13 milhões de habitantes, horizonte de cor e luz, calor. Um caos religiosamente respeitado, trânsito de loucos, favelas a perder de vista entrelaçadas com condomínios de luxo, hotéis de seis estrelas e embaixadas de imaculado fausto.

É na capital do Bangladesh, país encravado entre a Índia e Myanmar, no sul da Ásia, que o Maisfutebol encontra Mário Lemos. Português, 32 anos, natural do Algarve e treinador adjunto da seleção nacional de futebol deste país.

Sim, há um português na representação principal do Bangladesh. Um português que antes trabalhou nos Estados Unidos, na Tailândia e na Coreia do Sul. Um percurso raro, anormal, e iniciado aos 20 anos no Futebol Clube de Ferreiras.

Mário Lemos (primeiro à direita, de pé) e a seleção do Bangladesh

E como se passa do sul de Portugal ao Estado onde o sagrado Ganges desagua na Baía de Bengal? Mário Lemos, um treinador português.

«O convite surgiu através do selecionador Andrew Ord. Trabalhámos juntos no SCG Muangthong United, na Tailândia, e ele fez-me o convite para fazer parte da equipa técnica. Inicialmente não aceitei, porque tinha contrato com o meu clube na Coreia do Sul, mas no final de Janeiro disse que sim», explica o técnico, num dos poucos momentos livres do primeiro estágio.

Lemos deixou-se «seduzir» pela oportunidade de trabalhar numa seleção principal. Mesmo que o Bangladesh não dispute um jogo oficial há vários anos e seja apenas 197ª no ranking FIFA.

O espírito de aventura fez o resto. «Trabalho com os melhores jogadores de um país, tenho oportunidade de viajar, conhecer novas culturas e diferentes estilos de futebol», resume Mário Lemos.

«O Bangladesh não joga desde o dia 28 de dezembro de 2015. Perdeu 3-0 contra o Butão e o resultado teve um impacto muito negativo. A federação decidiu nessa altura que não participaria em jogos internacionais até remodelar todo o futebol de formação.»

Assim foi. Em Daca, Mário Lemos trabalha com um grupo de jogadores «entre os 19 e os 29 anos» e prepara o ansiado regresso do Bangladesh à competição. As limitações «técnicas e táticas» dos atletas não assustam, antes motivam.

«Estamos num estágio de cinco semanas. No fim de março teremos um jogo de preparação contra o Laos e no final de 2018 estaremos no SAFF Championship. É uma prova disputada pelos oito países do sul da Ásia desde 1997. A maior prova da região: Afeganistão, Bangladesh, Butão, Índia, Maldivas, Nepal, Paquistão e Sri Lanka. Este ano o torneio realizar-se precisamente no Bangladesh.»

Mário Lemos a exemplificar um exercício no estágio

Longe de casa, longe dos seus, longe do futebol de topo, Mário Lemos agarra-se ao desafio de evoluir a seleção do Bangladesh e à possibilidade de trabalhar em «surpreendentes boas condições».

«Quando estamos em Daca utilizamos o Estádio Nacional e em Bhikanpur [outra cidade] estamos no PKSP Sports Institute que é a maior escola de desporto do país. Temos dois relvados naturais e um sintético para treinar. Ginásio e piscina. Teremos estágios no Qatar e na Tailândia, por isso não nos podemos queixar», explica Mário Lemos.

Num país de maioria islâmica (86 por cento da população), o treinador português desvaloriza eventuais constrangimentos e hábitos culturais. O pior, sublinha, é mesmo combater a ditadura do críquete.

«A federação de futebol quer melhorar, quer voltar a ser o desporto número um do país porque atualmente é o críquete. Estamos a combater isso através do investimento em infra estruturas, em treinadores, estágios, e os jogadores têm sido fantásticos. Muitos deles falam Inglês e isso facilita o meu trabalho.»

O medo do terrorismo e as mãos a remexerem o curry e o arroz

São mais de nove mil quilómetros entre o Algarve, lar doce lar de Mário, e o Bangladesh. Distância combatida com injeções de amor pelo trabalho. Mas nem assim foi fácil aceitar este novo capítulo.

«Será que consigo adaptar-me à cultura? Será que consigo estar ausente da minha família? Será que supero alguns problemas de insegurança e terrorismo? Os estrangeiros estão sujeitos a isto no Bangladesh, infelizmente. Tem sido assim nos últimos anos. Mas no final não podia dizer não a um desafio destes», continua Mário Lemos.

Em Daca, o português encontrou um trânsito estapafúrdio e outro hábito muito estranho.

«Já vi um pouco de tudo na estrada, mas achei engraçado no primeiro dia do estágio ver os treinadores e os jogadores a não utilizarem talheres nas refeições. Metem o arroz, o curry, os vegetais no prato e com as mãos misturam tudo. E comem com as mãos! Por agora continuo a utilizar os talheres (risos).»

Mário Lemos quer ficar alguns anos no Bangladesh e aproximar a seleção deste país de lugares mais nobres do universo-FIFA. Na cabeça mantém-se o objetivo de sempre: trabalhar no futebol profissional em Portugal.

«Sinto que estou preparado e gostava de voltar, mas ainda não surgiu uma oportunidade. Pode ser que estar na seleção do Bangladesh me abra portas no nosso país.»

Para já, os dias são longos. Cheios de lições de futebol. Talvez um dia nos habituemos aos nomes dos principais futebolistas do Bangladesh: Mamunul Islam, Jhamal Buyan, Topu Barman, Ashraful Islam Rana…