Porventura, a história mais incrível da vida de Manuel Machado sucedeu-lhe no final do ano de 2009, quando era treinador do Nacional. Submeteu-se a uma intervenção cirurgica relativamente simples mas que lhe trouxe complicações tão graves que acabou em coma e quase lhe roubou a vida. 

Em conversa com o Maisfutebol, o treinador do Moreirense recorda esse episódio para falar do futuro. Aos 61 anos, garante que não pensa no amanhã, embora saliente aquilo que será necessário haver para que continue a ser treinador de futebol. 

A famosa desavença com Jorge Jesus, já publicamente resolvida há um par de anos, e a experiência na Grécia, a única no estrangeiro em toda a carreira, até ao momento, também são temas de uma conversa que deixa uma garantia: há pouco espaço para amizades entre treinadores de futebol. «Afinal, andamos época atrás de época a tentar enganar os colegas, não é?»

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Juntamente com o Jorge Jesus é o treinador com mais experiência na Liga. Acha que está a acontecer com os treinadores o que acontece com os jogadores, em que chega a uma altura e começa a ficar velho para treinar?

Não. Acho que o mundo se abriu e aquilo que era um mercado que estava muito condicionado à nossa fronteira agora é um mercado planetário. O Jesualdo Ferreira tem 71 anos e está a trabalhar. É bom que apareça esta nova geração de treinadores, é coisa que nunca me incomodou aparecerem técnicos muito interessantes como o do Paços de Ferreira, do Feirense e outros que andaram um pouco a fazer a sua recruta. A qualidade do técnico português é cada vez mais reconhecida. Se tínhamos um Mourinho em Inglaterra, um mercado muito exigente, neste momento temos o Carvalhal, o Marco Silva, o Nuno Espírito Santo. Não seria muito complicado entrar em África, ou até no Golfo. Mas hoje já se entra na França e em outros mercados. Muitas vezes o técnico não está cá, mas não deixou de trabalhar porque passou os cinquenta anos ou coisa semelhante.

Já que fala no Mourinho, pensa que ele deu um contributo decisivo para isso?

Sim, deu. Claro que deu. Nós temos muita dificuldade no reconhecimento daquilo que é nosso e daqueles que, de alguma maneira, deviam ser respeitados por isso. Não é preciso subserviência nem dar medalhas. Mas fiquei muito contente ao ver que fizeram uma avenida com o nome do Mourinho. Muito bem. Acho que merece como qualquer bom escritor ou pároco da freguesia. Quem faz alguma coisa deve ter reconhecimento e deixar o seu nome para as gerações futuras. Agora, que deu um impulso deu.

Tem saudades de algum treinador da nossa Liga?

Tenho saudades deles todos e não tenho saudades de ninguém particularmente (risos). Acho que todos os colegas merecem o meu respeito, mesmo aqueles com quem em determinada altura tive alguns problemas. Faz parte também, tenho muito respeito por eles. Acho que a classe tem feito muito pelo desporto em Portugal e de forma mais abrangente fora das nossas fronteiras. Ao fazer bem pelo desporto estão a fazer bem pelo país, que precisa destes expoentes. Hoje já não somos um canto da península, somos um país com identidade reconhecida internacionalmente e penso no contributo que deram o Carlos Lopes, o Mamede, a Mamona ou noutras áreas, que em termos mediáticos têm muito menos expressão. Toda a área do desporto tem vincado o nome do país internacionalmente e, por isso, o reconhecimento deve ser uma realidade.

Há espaço para amizades no futebol entre os treinadores?

Nós andamos época a época a tentar enganar os colegas, não é? (Risos) Muitas vezes há alguns excessos verbais. Não trabalhamos sozinhos, mas em contexto de clube. Há os jogadores, administração, massa adepta e muitas vezes embalámos um bocado naquilo que é o interesse do emblema e criámos alguma fricção. Mas tenho alguns amigos na classe. Ou melhor, amigos é como o extremamente: é uma palavra usada com uma frequência que não merece... A amizade vem da escola primária ou do secundário. É aí que se criam vínculos com meia dúzia de pessoas que duram para a vida toda. Portanto, de outra maneira: tenho relações amistosas com várias pessoas que giram no mundo do futebol.

A fricção mais famosa foi com Jorge Jesus. Como vê tudo isso passado este tempo?

Acho que se empolou de mais. Na imprensa, seja em que área for, e eu leio todos os dias jornais, o que sobressai são os conflitos. É natural quando dois técnicos com alguma maturidade, experiência e estatuto tenham um momento, enfim, menos amistoso, a imprensa comece blá, blá, blá. Basta pegar numa revista cor-de-rosa e é logo um título grande de fulano que se zangou com não sei quem e depois vai-se a ver e, espremendo tudo, a notícia tem pouco conteúdo.

Relação com Jesus passou por fase complicada e estabilizou

Mas sabe que o futebol é um mundo muito politicamente correto, daí que quando algo foge desse parâmetro acaba por ser normal que tenha destaque.

Talvez. O futebol é um mundo de paixões, de razões. Mas é um mundo muito interessante.

Ainda se imagina a treinar muitos anos?

Vocês sabem que eu já estive para morrer, não é? Estive lá mesmo pertinho... Tenho muita dificuldade em falar do futuro porque estava muito bem, fiz uma intevençãozinha, saí do hospital de manhã, porreirinho, meti-me no avião, adormeci, acordei três semanas depois e disseram-me que tinha estado para morrer [ndr. foi em 2009, era treinador do Nacional]. Por isso tenho muitas dificuldades em falar no amanhã. Agora, é assim, digo sempre que enquanto houver motivação, tiver saúde e houver mercado, eu cá estarei. Quando falhar uma dessas coisas, ficarei condicionado.

Nunca foi abordado para treinar um grande?

Nunca. Digo isto de forma muito clara. Nuuunca. Quando saí daqui do Moreirense vinha numa curva muito ascendente. Do nada, apareceu um treinador que ganhou uma II B, ganhou uma II Liga, manteve um clube desta dimensão na Liga e no segundo ano até ficou perto da Europa. Tive uma abordagem, não oficial, do FC Porto. Não foi ninguém da estrutura do FC Porto, atenção. Por isso, para responder de forma direta e clara: nenhuma estrutura do FC Porto, Benfica e Sporting me abordou. Nunca ninguém de dentro do clube me fez um telefonema para saber se tinha condições para. Nunca.

O que acha que faltou?

Muitas vezes perguntam-me: você gostava de treinar um grande? E eu digo sempre: gostava era que um grande gostasse que eu o treinasse. É muito diferente. Muitas vezes vejo alguns colegas dizer: ah e tal, eu já merecia treinar um grande…Eu nunca me pus nessa posição. Não tenho que ser eu a gostar. E eu também digo com muita frequência: o acesso aos grandes emblemas não é como o acesso às faculdades, em que Medicina é 19,5, depois Economia é não sei quantos e vem por ali abaixo. Consoante a média, o aluno acede ali ou aqui. Mas o futebol não é assim. Ninguém pega nos currículos dos treinadores e vê os melhores para que eles entrem nos melhores clubes. Não funciona assim. Funciona por agenciação, por outro tipo de canais, que levam até que treinadores sem qualquer tipo de passado de referência – terão o seu, claro – acedam de forma improvável a clubes que, pela lógica, teriam de ter outro grau de exigência. É a vida, ponto final.

Já agora, que avaliação faz do seu currículo?

Acho que, não sendo uma coooooisa…É um currículo de nível médio, alto. Sou abordado muitas vezes na rua: você é que devia ter ido para o não sei quantos. Eu lá digo: não se preocupe que não me dói nada. Quer tomar um café? (risos)

Também só teve uma experiência no estrangeiro.

Que foi muito engraçada (risos)

Não tem espírito de emigrante?

Tenho. Ainda este ano tive possibilidades de sair. Nós metemos sempre num dos pratos da balança o nosso país, a nossa família, o nosso meio, por relação com aquilo que nos oferecem financeiramente. Tive abordagens para a Índia e para o Golfo. Mas quando pus na balança, pensei: ainda não é agora. Tenho tido com frequência, mas nunca apareceu uma coisa que me levasse a pensar: ok, vou-me meter no meio do deserto, fazer uma comissão de serviço e ficar com uma reforma, deita-te para o lado e adormece.

Mas gostou da passagem pela Grécia?

A passagem pela Grécia [ndr. Aris de Salónica] é particular (risos). Foi meio campeonato. Chegamos com 15 jogos e a equipa tinha 15 pontos. Na última jornada, o Aris jogava em casa com o Asteras Tripolis para tentar o acesso à Europa. Tínhamos passado de um ponto por jogo para dois pontos por jogo, em média. E depois íamos jogar a casa do último. Ou seja, ganhando ao Asteras praticamente faríamos Europa. Mas, sabe o que aconteceu nesse jogo? Alguém da bancada atirou uma garrafa de água de plástico ao fiscal de linha, que era uma senhora. Bateu-lhe na anca, a senhora enrolou-se no chão. Parou o jogo, depois limpa a bancada ou não, passou meia hora e já não se fez o jogo. Perdemos os três pontos, mais três que nos tiraram na secretaria, mais um jogo à porta fechada e mais uma multa de não sei quanto. Lá se foi a Europa. Mas a nível da envolvência foi fantástico. Vão ao Youtube e vejam um Aris-Paok. Vão ver o que é uma bancada a arder…

E a experiência social?

Estávamos a entrar na crise, ali em 2010, 2011. Mas o grego é uma referência no que respeita ao desfrutar da vida (risos). Nessa altura já estavam muito condicionados, mas continuavam a sair e a rir-se. Na altura estava o Rolão Preto no PAOK, com o Boloni. Um dia ligou-me, fomos jantar os três e depois entrámos num barzinho, de porta de rua, pequenito. Ele conhecia o proprietário e dizia-lhe: é crise, é crise, mas continuas com isto cheio. E diz ele: eles bebiam seis cervejas, uma de cada vez. Agora bebem só duas e aos golinhos. Mas têm de vir na mesma (risos). E por fim há o ponto de vista financeiro: paguei a viagem para voltar e não recebi um tostão.

(risos)

Nunca pagaram. Os jogadores já tinham quatro ou cinco meses em atraso do ano anterior, mais quatro do ano em curso. Alguns recusavam-se a jogar. Treinavam mas não jogavam. Nem eu nem os meus adjuntos recebemos um tostão. Andavam a querer vender a SAD e nunca mais resolviam. Um dia, já o campeonato tinha acabado há 15 dias, liguei à minha mulher e pedi-lhe para me reservar um voo. Fiz a mala, no dia seguinte meti-me no avião e vim embora. Metemos um processo, ganhámos, naturalmente. Eles não pagaram a ninguém, desceram de Divisão, refundaram o clube. Por isso, em termos financeiros, foi um desastre (risos).