A 25 de maio de 1986, precisamente há 30 anos, a bomba rebentou: os jogadores da seleção nacional que estavam no México a preparar a presença no Mundial recusam treinar. Greve, algo que já pairava no ar há algum tempo, dada a tensão evidente praticamente desde a partida para o torneio.

O voo obrigou a escalas em Frankfurt e Dallas, aumentando, naturalmente, o desgaste. O hotel não proporcionava as condições de privacidade necessárias à concentração para um torneio daquela magnitude e até os adversários encontrados para os jogos de preparação eram completamente amadores e desapropriados. O regresso a um Mundial, 20 anos depois da estrondosa caminhada dos «Magriços», ameaçava ser um fracasso.

E se a vitória a abrir, frente a Inglaterra, na teoria o rival mais complicado do grupo, disfarçou o momento infeliz, a lesão grave de Bento foi o golpe final. Seguem-se derrotas com Polónia e Marrocos e o adeus de uma geração que, dois anos antes, tinha ficado às portas da final do Europeu.

VÍDEO: Futre e as memórias de Saltillo

Silva Resende era o presidente da Federação Portuguesa de Futebol. Amândio de Carvalho, o mesmo que teve o diferendo do «polvo» com Carlos Queiroz após o Mundial da África do Sul, era o chefe de delegação. No final, a situação que envergonhara o país desportivo teve consequências, naturalmente.

Os jogadores que estiveram no Mundial, entre exclusões e outros que se solidarizaram, ficaram indisponíveis (Álvaro Magalhães foi o primeiro a voltar, bem antes da resolução do diferendo) e José Torres, selecionador no México, foi substituído por Ruy Seabra.

Quem? Pois, essa é a questão. Ruy Seabra, atualmente provedor do aluno da Universidade Autónoma, era um advogado com ligações ao desporto apenas no âmbito do dirigismo, além da vertente «adepto», claro.

Foi escolhido para selecionador ainda antes do Mundial. A revelação foi feita pelo próprio nesta conversa com o Maisfutebol. O homem que teve a missão de colar os cacos que Saltillo provocara era apenas o selecionador, ficando o trabalho de campo para Juca e António Oliveira, os treinadores.

Tentava-se usar a mesma fórmula que resultou no Mundial 66, com Manuel da Luz Afonso como selecionador e Otto Glória a treinador. Mas os tempos eram outros. O futebol mudara.

A jogar, praticamente, com uma seleção B, que ficou conhecida como «Os Seabrinhas», a caminhada para o Euro 88 foi um fracasso.

Ruy Seabra aguentou seis jogos no cargo e nunca mais teve qualquer papel como técnico no futebol português. Ficou como o rosto do pós-Saltillo na seleção nacional. Garante que nunca se arrependeu e que viu aquele papel que lhe foi entregue como «uma missão». Que se revelaria dura de mais, mas que tentou cumprir ao máximo.

O onze de Portugal frente a Marrocos, na despedida do México

Antes de ser nomeado selecionador nacional, qual era a sua relação com o futebol?

Sempre tive uma grande relação com o futebol. Desde miúdo que ia às Antas com o meu pai. Ele era um grande amante da modalidade. Trabalhava na Polícia Judiciária e como a Função Pública não trabalhava ao sábado de manhã, lá íamos nós. Era o tempo do Barrigana, do Yustrich, do Jaburu, do Monteiro da Costa, do Perdigão, do Hernâni… Mais tarde, em Coimbra, fui diretor do futebol da Associação Académica de Coimbra. No que diz respeito ao futebol profissional, fui presidente do Conselho de Disciplina durante anos. E depois do Conselho Superior de Justiça. Sempre como administrativo.

Não ficou surpreendido quando lhe propuseram ser selecionador nacional?

(Risos) Hiper-surpreendido! Quando recebi o contacto do dr. Silva Resende, ainda antes do Mundial-86, fiquei completamente siderado. Disse-lhe logo: ‘você está maluco? Eu nego isto a toda a gente, sei lá se estamos sob escuta…’. Então é a segunda vez que vamos a uma fase final de um Mundial e ele vem-me com esta conversa? Só lhe dizia: ‘Eu nego esta conversa, não existiu.’

E como o conseguiu convencer então?

Ele disse-me que no dia seguinte ia para Zurique, e de lá para o México, mas para eu ficar convencido porque isso ia acontecer. Mas eu impus condições. Se o meu nome saísse em qualquer lugar, tinha o direito de negar tudo em absoluto e nunca na vida iria exercer aquelas funções. E ele dizia: ‘não vale a pena. Nem que tragamos a taça Jules Rimet, o assunto está arrumado’. Olhe, fugi para o Algarve com as minhas filhas, que já estavam de férias da escola, e com um amigo entretanto falecido. Para que não houvesse especulações.

A 25 de maio de 1986 os jogadores entram em greve

Como foi a reação do país à sua escolha para selecionador nacional?

Foi péssima. Sobretudo da parte dos jornalistas, mas não só. Havia muitos poderes interessados. O José Eduardo, presidente do Sindicato dos Jogadores, o Henrique Calisto, presidente da Associação de Treinadores e membro do Partido Comunista Português, tal como o Fernando Correia, também ligado ao PCP… eles coordenavam tudo. Imaginem o fascista do Ruy Seabra a mandar na seleção…(risos) [ndr. Ruy Seabra chegou a ser deputado pelo CDS]

Não teve boa relação com a imprensa, portanto…

Olhe, houve um jornal que sempre me tratou bem, que foi a «Gazeta dos Desportos». O «Record» nem foi mau. Não tenho rigorosamente nada a dizer, nem para o bem, nem para o mal. Agora «A Bola»… meu Deus! Eram todos contra mim. Tirando o Alfredo Farinha, era tudo a bater no Ruy Seabra.

Mas qual era o problema maior: ter um advogado como selecionador ou ser, especificamente, o Ruy Seabra?

Era tudo. Desde logo a situação pós-Saltillo. Estou a referir-me à indisponibilidade dos 23, pois o Álvaro só voltou muito tempo depois. Aqueles é que eram os jogadores importantes para os adeptos. Eram os jogadores dos clubes deles. Depois também por eu não ser uma pessoa profissional do futebol. Tenho a certeza que fui um cravo, um espinho ali cravado.

O empate entre Portugal e Malta no Funchal:

Era o selecionador, mas tinha como treinadores Juca e António Oliveira. Como foi feita a escolha?

Quis rodear-me de pessoas que tinham o mesmo entendimento que eu tinha sobre o que deveria ser uma seleção. O Juca era uma pessoa educadíssima, com uma grande humildade. O Oliveira foi sugerido pelo Dr. Silva Resende. Eu queria o Vasco Gervásio, mas o Calisto proibiu-o de aceitar o cargo. Ele ficou triste e eu também. E pronto, tínhamos três pessoas para três seleções: AA, Esperanças e Olímpicos. Cheguei a ter 72 pessoas em estágio em dois hotéis diferentes em Cascais. Hoje há umas 70 pessoas para cada seleção... Aquilo era uma carga de trabalho.

O António Oliveira começou ali a sua carreira de treinador. Por que o escolheu?

Tenho de ser sincero. Eu não o queria, mas o Silva Resende insistiu: ‘fale com ele’. E eu disse, ‘mande lá vir o rapaz’. Lá apareceu ele, todo vestido à moda, todo de ganga. Só lhe faltavam as tatuagens para ser como os jogadores de agora. Comecei a falar com ele e se eu dizia ‘mata’, ele dizia ‘esfola’. A certa altura ele diz-me: ‘se o senhor me aceitar como adjunto eu subo quatro degraus de uma vez’. Ele na altura era treinador-jogador e dizia que, se não o aceitasse, tinha de ir degrau a degrau. Disse-me assim: ‘você pode precisar de mim, mas eu preciso ainda mais de si’. Achei aquela ambição fantástica. Percebi que ele tinha deitado fora aquela fase das noitadas em Sevilha. Fazia 1600 quilómetros para lá ir, num tempo em que não havia autoestradas. Enfim…

E ficou mesmo com o Oliveira…

Ficámos logo combinados. E ele cumpriu religiosamente até ao fim. Ficámos com uma excelente relação. De vez em quando ainda falamos.

Que balanço faz dos seis jogos em que esteve à frente da seleção?

(Risos) É a tal história do copo meio cheio ou meio vazio. Em primeiro lugar, convém sublinhar que os resultados eram secundários, atendendo às circunstâncias. Mas consegui, na altura, aquela que era a segunda melhor série sem derrotas da seleção. Só que não ganhava, empatava… Só ganhei à Suécia e até empatei com Malta. Desse jogo, o que fica de bom foi ter lançado o Rui Barros. Fiquei muito contente com isso.

Apoio «especial» em Saltillo

Com tantas limitações, chegar ao Euro 88 era missão impossível?

Ui... Completamente. Absolutamente impossível. A Suécia tinha uma equipa fantástica, com o Stromberg e os Magnussons. Depois havia a Itália do Altobelli, do Baresi… Lembro-me quando jogamos contra eles no Jamor. A nossa sorte foi ter chegado cinco minutos antes da Itália. Eu estava naquele alpendre e vejo os italianos a chegar. Bem… sobretudo, fato de trespasse, gravata da seleção… e os nossos todos de fatos de treino andrajosos, pareciam os gafanhotos da EMEL. Só mudava a cor. Eu vejo aquilo e penso logo: ‘ninguém sai do balneário. Se os jogadores vêm isto, em vez de entrarmos a perder por dez, entrávamos logo a perder por 500’. Fui eu para o relvado, disfarçar um bocado, ver como é, aquelas coisas. Esperei que eles entrassem no balneário e só aí deixei que os jogadores saíssem [ndr. Portugal viria a perder por 0-1].

Os jogadores aceitaram bem a sua liderança?

Perfeitamente. Até porque a minha liderança era delegada muito nos treinadores. Aliás, eu nunca dei um treino. A minha área eram os Recursos Humanos, nunca quis ser treinador. A única questão é que achava que aquele lugar devia ser para uma pessoa isenta.

Quem foram os melhores jogadores que orientou nesse período?

Havia um jogador que conhecia todos os centímetros do campo. O Shéu. Taticamente era exemplar, dominava o campo como só os predestinados fazem. Outro que também foi importante, e contra a vontade do Juca, foi o Oceano. Tinha um grande pulmão. Era titular na seleção A e nos Olímpicos, quando não havia conflito de calendário. O Juca duvidava, mas eu dizia-lhe: ‘ao menos temos alguém com pulmão’. Faltavam muitos jogadores. O guarda-redes era o Jesus, do V. Guimarães. E depois o Silvino. E os centrais? Tinha o Eduardo Luís e o Dito, qualquer um mais lento do que o outro… Depois o ponta de lança era o Coelho, do Boavista.

Como aconteceu depois o processo de separação?

Foi simples. Havia eleições na Federação, com duas listas a concurso. Como não sabia quem ia ganhar, deixei uma carta fechada endereçada ao futuro presidente. Na carta estava o meu pedido de demissão. Fi-lo com a convicção de que, naturalmente, havendo eleições e o Dr. Silva Resende não concorrendo, não queria atrapalhar a vida da outra direção. Ou se é desejado, ou não se é.

E como foram os tempos que se seguiram à sua saída da seleção?

Não podia ir ao futebol. Estava sempre sujeito a ouvir coisas. ‘Olhó Ruy Seabra!’. Ser selecionador é como ser presidente da República. Depois disso não se pode voltar a exercer nenhum cargo ligado ao setor. Basta ver o que tem acontecido aos treinadores que têm passado por lá…

Alguma vez se arrependeu de ter aceitado o cargo numa altura tão conturbada?

Nunca me arrependi. Quanto mais complicado se tornava, mais contente ficava. Tive a possibilidade de desempenhar um cargo que não era de todo previsível. Na altura fiquei tão contente, tão contente… Vi aquilo como uma missão.

Mudou alguma coisa na sua vida ser selecionador nacional?

Não mudou nada. Nada me iria mudar. Dei o meu contributo para a causa. Durante três anos seguidos, um estudo da Marktest dizia que o meu nome era o mais badalado na rádio, imprensa e televisão. O Dr. Silva Resende chegou a mostrar-me os gráficos: ‘Olhe aqui a sua popularidade…’ (risos).