Vasco Firmino, o médico que marcava golos pelo Benfica, contou a sua história na rubrica Depois do Adeus em 2015. Cinco anos depois, o Maisfutebol encontra o antigo avançado na linha da frente do combate à covid-19 no Centro Hospitalar Barreiro Montijo.

Formado no Barreirense e no Benfica, Vasco Firmino foi campeão da III Divisão com a equipa B dos encarnados e chegou a ser convocado por Jose Antonio Camacho, sem cumprir o sonho de jogar pela formação principal. Aos 22 anos, decidiu acelerar o curso de Medicina e deixou o futebol para segundo plano.

Médico desde 2012, o ex-jogador especializou-se em Pneumologia e é nessa área que lida diariamente com infetados ou casos suspeitos de covid-19. Para proteger a mulher e a filha, decidiu sair de casa há três semanas. Instalou-se num apartamento que os pais possuem e, sempre que pode, senta-se a jantar com Raquel e Gabriela através de uma videochamada. É o melhor momento do dia.

Aos 35 anos, Vasco Firmino preocupa-se em salvar vidas, trabalha horas atrás de horas para regressar para uma casa vazia mas diz que a causa é nobre. Quando tudo terminar, espera, as pessoas saberão dar mais valor a coisas como o toque, o beijo, o abraço e o Serviço Nacional de Saúde. Médicos, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e demais profissionais de saúde precisam de condições condignas. Hoje e sempre.

Maisfutebol – Vasco, em que consiste a sua função no Centro Hospitalar Barreiro Montijo?

Vasco Firmino - Eu trabalho na Pneumologia, em contacto diário com pacientes infetados ou suspeitos de infeção por covid-19. Os casos mais graves seguem para os Cuidados Intensivos, os outros acabam por passar maioritariamente por aqui.

MF – Como tem sido lidar com esta pandemia global?

VF - Estou praticamente no início da minha carreira, trabalho nesta atividade há oito anos. Posso dizer que há quinze anos estava em outro tipo de campo a jogar, outra estou neste e continuo a dar tudo para vencer. Trouxe muitas coisas da minha atividade desportiva para esta carreira e sei que, funcionando em equipa, vamos conseguir salvar pessoas.

MF – Qual é que tem sido a maior dificuldades neste período?

VF - Mais do que dificuldades com o material, porque temos feito um bom racionamento, neste momento temos sentido é dificuldades com o pessoal, à medida que vamos tendo cada vez mais profissionais de saúde infetados e outros que vão para isolamento profilático.

MF – Quais foram os melhores e os piores casos com que se deparou?

Ora bem, eu não posso dizer muito sobre os casos em concreto, mas logo no início disto, há algumas semanas, tivemos um caso suspeito grave, que esteve nos cuidados intensivos. A minha maior alegria é saber que hoje esse jovem, mais novo que eu, está em casa e vai poder continuar a sua vida sem sequelas. Por outro lado, claro que infelizmente já tivemos casos complicados, em que a capacidade de intervenção tem limites. Torna-se mais difícil quando há outras vulnerabilidades grandes, para lá da covid-19. A idade é um fator de risco, mas há problemas cardiovasculares ou respiratórios que podem ser mais preocupantes do que ter 80 anos e ser globalmente saudável.

MF – Quando é que tomou a decisão de sair de casa?

VF – Eu e a minha esposa tomámos essa decisão antecipadamente, fez neste domingo 21 dias, três semanas. Foi uma forma de proteger a minha mulher e a minha filha já que nós, profissionais de saúde, estamos regularmente expostos ao risco de contágio. Decidimos há três semanas, quando ainda não havia tanta informação e não tinham sido tomadas medidas, Portanto, não estou com a minha filha Gabriela, de três anos, nem com a minha esposa Raquel desde esse dia. Estar longe delas e dos meus pais, da minha família, tem sido a grande dificuldade, maior que o volume de trabalho.

MF – É complicado estar longe da família neste período de luta?

VF – Sem dúvida. Falta-me o conforto de um beijo, de uma braço, o apoio no final de mais um dia, mas sabemos que tomámos a melhor decisão para todos. É a isso que me agarro, saber que com essa decisão antecipada consegui protege-las e que elas estão em segurança. Vemos pelos números reportados que há cada vez mais profissionais de saúde infetados. Mesmo com toda a proteção, isso pode acontecer, sobretudo por casos de doentes que chegam às urgências com ausência de sintomas. Muito do contágio veio daí.

MF – Para onde é que foi, quando saiu de casa?

VF - Felizmente os meus pais têm outra casa onde eu estou a ficar, é algo que me permite estar em isolamento, perto do hospital e da casa onde estão a minha mulher e a minha filha. Há outros médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde que não têm essa possibilidade e sei de casos que à posteriori se viram infetados e acabaram por originar infeções na família.

MF – Como é que se matam as saudades nesta fase?

VF - Vemo-nos diariamente ao jantar, quando posso. Quando chega a essa hora, fazemos uma videochamada e sentámo-nos juntos à mesa, virtualmente. É o melhor momento do dia. Como a Gabriela tem três anos, felizmente não percebe bem a razão do afastamento, a dimensão do problema, e isso deixa-me mais descansado. O apoio da minha esposa, a Raquel, também é fundamental. Preciso de saber que elas estão bem, em segurança, para continuar a fazer o meu trabalho da melhor forma.

MF – Sente que está num período de destacamento especial?

VF - Atualmente trabalho mais de 60 horas por semana, seguramente. Há cansaço, claro, mas o isolamento é a dificuldade adicional. Se tivéssemos a família perto era mais fácil, seguramente. Durante o trabalho não se sente, mas quando o dia acaba, cai-nos um peso em cima. Mas temos de saber que a causa é nobre e aguentar.

MF – E o que tem a dizer perante os aplausos do povo português?

VF - Os aplausos sabem bem enquanto gesto do povo português, mas é importante que os portugueses saibam que não é de aplausos que mais precisamos. Se bem se lembram, recentemente os enfermeiros estiveram em protesto e as queixas também se estendem a médicos, técnicos de diagnóstico, etc.

MF – Qual é o cenário atual para os profissionais de saúde?

VF - Não faz sentido que um técnico de diagnóstico ganhe 6 ou 7 euros por hora, que um enfermeiro esteja a trabalhar durante a madrugada para ganhar 8 ou 9 euros por hora, que um médico esteja a salvar uma vida às duas da manhã também para não ganhar de acordo com aquilo que a função exigiria. No final disto tudo, espero que não considerem que vamos usar a pandemia como arma de arremesso e que percebam a verdadeira importância de ter um Serviço Nacional de Saúde como Portugal tem.

MF – Os portugueses, em geral, têm contribuído positivamente para esta luta?

VF - Sinceramente, como médico, posso dizer que estou surpreendido pela positiva com os portugueses. Têm globalmente seguido as indicações da Direção-Geral da Saúde e isso, aliado às medidas de combate à pandemia, faz com que possa dizer que neste momento estamos com a situação relativamente controlada. Acredito que não chegaremos ao cenário de catástrofe de outros países.

MF – Estará seguramente a contar os dias para voltar a ver a sua família. Quando é que pensa que esse dia vai chegar?

VF – Ainda é cedo para cenários, ainda estamos numa fase perigosa, mas vou ouvindo especialistas e acredito que temos pela frente mais dois meses duros. Depois, poderemos começar a regressar paulatinamente à normalidade, com muitas cautelas. É isso que espero, pelo menos. Acho que vamos aprender a dar valor a muitas coisas que não dávamos como um toque, um abraço, um beijo e também ao nosso Serviço Nacional de Saúde.