Ídolo no Bessa, onde jogou dez épocas e sagrou-se campeão nacional em 2000/01, Erwin Sánchez regressou da Bolívia mais de uma década depois do adeus a Portugal para, agora como treinador, tentar salvar o Boavista da descida à II Liga. Chegou em dezembro, «ciente de que as coisas não estavam como gostaria», garantiu a manutenção a duas jornadas do final e há uma semana e meia renovou contrato.

Garantido o primeiro objetivo, o técnico boliviano de 46 anos quer agora que o Boavista suba um patamar e volte a ser um clube formador e bom vendedor. Para isso há que pensar numa estratégia a médio prazo e tentar sempre jogar bom futebol. Afinal, essa é a imagem de marca de Sánchez, como o próprio garante nesta entrevista ao Maisfutebol: «Se é pontapé para a frente e fé em Deus não contem comigo; não estarei aqui a fazer nada.»

 

Renovou contrato como treinador do Boavista há uma semana. Disse que para continuar era preciso minimizar erros e ver se as suas ideias para o clube e as da direção se encaixavam. Que entendimento comum é esse em concreto?

Entendimento com a direção tem de haver. É como um casamento. Se não há uma comunhão de ideias é difícil caminharmos em conjunto. Neste momento, estamos a tentar construir alicerces sólidos para que o Boavista volte aos poucos a ser aquilo que era: uma das equipas que luta pelos lugares cimeiros do campeonato, um clube formador e bom vendedor. Não pode ser de uma época para outra que tudo se constrói. Temos de começar por passar as nossas ideias para os escalões jovens.

Isso requer tempo e uma estratégia de médio prazo.

Não podemos só pensar no jogo de cada domingo, mas no futuro do clube. Isso passa obviamente por ter jogadores da casa. No ano em que fui campeão tínhamos sete ou oito jogadores formados no Boavista. É outro sentimento; algumas dificuldades são ultrapassadas por esse clubismo. Tem de haver uma mistura. Não podemos apostar só em jogadores com uma carreira feita e descurar o crescimento dos nossos jovens.

Quando em dezembro de 2015 aceitou regressar a Portugal para treinar o Boavista encontrou grandes diferenças em relação ao clube que conhecia?

Sim. Em tudo… Este clube passou por momentos muito difíceis e sei que a recuperação é lenta. Seria fantástico mudar tudo de uma vez, mas não temos meios para tal. Aos poucos, isto pode mudar para termos um Boavista com uma ambição maior.

O campeonato nacional também é diferente dos tempos em que jogava?

Dantes era mais técnico, agora é mais físico e dá-se mais importância às bolas paradas. Quase todas as equipas jogam para o contra-ataque e o fosso é maior entre os grandes e os restantes. Acho que as verbas dos contratos de televisão vão acentuar ainda mais essa diferença, mas temos de lutar com os nossos meios.

Foi fácil convencê-lo a regressar ao Boavista?

Estava a treinar o Blooming e as coisas corriam bem no início da época, mas houve uns problemas económicos e isso mexeu com os jogadores… No entanto, eu tinha a ideia de voltar para Portugal. Passei 15 anos cá e mantive-me sempre em contacto. Quando me ligaram do Boavista fiquei surpreendido mas também muito agradado por se terem lembrado de mim.

Teve de mudar a sua vida em poucos dias…

Em horas… Falei com as pessoas com quem tinha de falar e também com a minha consciência. Aceitei, ciente de que as coisas não estavam por cá como eu gostaria, mas também se estivessem bem não me teriam ligado. Vim com a convicção de que poderia ser útil ao clube porque confio no meu trabalho. Acredito mesmo no que faço.

Duvidou da manutenção na Liga em algum momento?

Mal cheguei fui ver o jogo com o Arouca e não tive dúvidas de que era possível garantir a manutenção, mas que ia ser mais difícil do que eu tinha pensado. Logo a seguir, tivemos um empate em casa com o Estoril e aí pensei que íamos ter de pedalar muito. Mas sabia que tinha nas mãos um bom grupo de homens.

Chegou mesmo a dizer no final de um dos jogos «vamos lá ver se somos ou não feitos para jogar futebol».

Foi a seguir a dois jogos que perdemos em casa (Rio Ave e Nacional) e aí as coisas ficaram complicadas. É normal após maus resultados que as dúvidas voltem a rondar a nossa cabeça. Fiquei ainda mais preocupado após o jogo frente ao FC Porto (0-5), por termos perdido três jogadores por lesão (Tengarrinha, Henrique e Anderson Correia). Muita gente terá pensado aí que já não teríamos hipóteses de ficar na Liga. Mesmo com essas baixas, três dias depois, de novo com o FC Porto (0-1 para a Taça), aconteceu um clique… E os nossos jogadores convenceram­-se de que podem bater-se de igual para igual seja com quem for. Fomos eliminados porque falhámos um penálti no minuto 90… A partir daí o ambiente ficou diferente.

A goleada ao V. Setúbal (4-0 no Bessa), em que um adepto lançou uma galinha preta para o relvado para acabar com a maldição, também foi um ponto de viragem?

Isso foi logo a seguir a esse jogo da Taça. Muitas vezes tudo passa por dar valor aos nossos jogadores e dizer-lhes que eles são os melhores, para eles tomarem consciência disso e tornarem-se mais confiantes.

No mercado de inverno também colmatou algumas deficiências do plantel. Além da inscrição do Rúben Ribeiro, veio o Tahar (trazido da Roménia pelo Timofte), foi buscar dois jogadores ao campeonato boliviano…

Nesses dois casos o problema é o ritmo de competição. Eles chegam bem, mas passado algum tempo ressentem-se fisicamente. Eu disse à direção que tinha de ter jogadores alguns jogadores que conhecesse. O Iriberri jogava em Cochabamba [no Jorge Wilstermann], no clube que foi campeão, e o Mario Martinez na minha anterior equipa, o Blooming. Quanto ao Rúben, tinha muito boas referências dele; o Timofte disse que o Tahar era muito bom jogador e veio também o Cangá para reforçar o ataque. Lamentavelmente, ele teve uma lesão e acabou por não dar o contributo que esperávamos. Porém, acho que esses jogadores foram importantes, de uma maneira ou de outra, para o equilíbrio da equipa.

Esse seu entendimento com o Timofte, que é diretor desportivo, é tão bom como era em campo?

Tem de ser, senão isto não anda. Tal com gente da estrutura como o Jorge Couto, o Alfredo, o Fary… Tudo ex-jogadores que conhecem todos os cantos da casa. Isso, de certa forma, contribui para até os jogadores sentirem uma proteção diferente. Nós já estivemos lá e sentimos na pele algumas situações que eles vivem.

Houve alguma equipa nesta Liga que lhe agradado particularmente ver jogar?

A minha.

E treinador? Há algum em que se reveja? Como jogador foi orientado por Eriksson, Fernando Santos, Manuel José, Jaime Pacheco…

Tento tirar o melhor de cada um deles, mas sempre sendo autêntico. Se andasse sempre a tentar copiar isto de um e aquilo de outro seria uma má imitação. Tenho de pôr em prática o que sou.

O Boavista joga agora um futebol mais ofensivo. Há essa preocupação de passar aos jogadores a necessidade de jogar bom futebol?

Há. Tenho de ter prazer no que estou a fazer. Se é pontapé para a frente e fé em Deus não contem comigo; não estarei aqui a fazer nada. Mas se eu sei que tenho jogadores que gostam de jogar futebol, então temos de jogar futebol! Se é para andar a correr, que vão para o atletismo. Se for para dar porrada, que vão para a luta. Não é disso que eu gosto.

Acredita que fez alguns adeptos mais críticos mudarem de ideias?

Uma parte dos adeptos estava habituada a outra coisa. Desde que chegámos, temos tentado aliar bom futebol a um bom resultado. Isso é o ideal. Quem está mais perto de conseguir um bom resultado? Quem joga bem ou quem joga mal? Eu acredito muito no trabalho que fazemos. A sério.

O objetivo para a próxima época continua a ser a permanência?

A nossa ambição passa por subir mais um degrau. Na época passada era muito importante que o Boavista continuasse na Liga, até por motivos financeiros… Agora, queremos dar um passo para a estabilidade. Não sabemos para o ano continuamos cá. Não penso nisso, mas em deixar bases sólidas para não termos altos e baixos. Não queremos sofrer aquilo que sofremos. Gosto muito de futebol. Adoro futebol. Mas passar aquilo que passámos nos últimos meses não é agradável.

Que dificuldades encontrou?

O grupo foi extraordinário. Ninguém fez os quilómetros que nós fizemos. Não é fácil treinar fora de casa, em Lordelo, Paredes, Marco de Canaveses... À chuva, no inverno... Acabar o treino com os jogadores todos molhados a terem de fazer uma viagem de autocarro e de 30 ou 40 minutos de regresso ao Bessa. É um dos aspetos que terá de melhorar na próxima época.

Erwin Sánchez (parte 2): «Quando entrei na Luz disse para mim: ‘Daqui já ninguém me tira’»

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