Chegou a Portugal para jogar no Benfica de Eriksson. Foi campeão nacional logo na primeira época, mas saiu para o Estoril, de Fernando Santos, antes de se afirmar em definitivo no Boavistão de Manuel José, que na década de 1990 sedimentaria os alicerces do «quarto grande», que viria a conquistar o título nacional em 2000/01, com Jaime Pacheco. Pelo meio, há um Mundial de 1994 inesquecível para o futebol boliviano.

Eis Erwin Sánchez, o «Platini» andino, das origens à consagração como futebolista.

 

Recuando às suas origens: como começou a jogar futebol?

Na rua, em Santa Cruz de la Sierra, a minha cidade. A minha mãe é doméstica, o meu pai trabalhava numa serração, mas foi jogador semiprofissional e era também campeão regional de ciclismo. Ganhava mais no ciclismo do que no futebol e conciliava tudo com o emprego. Quando eu nasci [Sánchez tem uma irmã mais velha], ele deixou de jogar futebol e foi também suspenso do ciclismo porque só competia quando havia prémios. A partir daí, dedicou-se ao trabalho. Mais tarde, foi o meu primeiro treinador na equipa do bairro: o Novo Horizonte.

Notou-se logo no jeito que o Sánchez tinha para rematar forte à baliza, não?

Além dos remates, fazia apostas com os meus amigos sobre quantos toques conseguia dar: com um pé, com outro, com a coxa, com a cabeça… Ganhava a todos. Isso ajudou-me muito na carreira como profissional.

Foi nessa altura que começaram a chamar-lhe «Platini»?

Foi num campeonato nacional, tinha eu uns 13 ou 14 anos e nessa altura o Michel Platini estava no topo. Eu tinha as pernas compridas, jogava com as meias em baixo, sem caneleiras, camisola número 10 por fora dos calções… E fiz nesse torneio uns seis ou sete golos, uns três de livre. Nunca mais me livrei do nome.

Fez 15 golos em 57 internacionalizações pela Bolívia

Foi aí que começou a pensar em ser futebolista profissional?

Queria continuar os estudos para ser arquiteto, mas não deu para conciliar. Quando acabei o 12.º ano assinei por uma equipa profissional, o Destroyers. Tentei ir às aulas à noite, mas adormecia. Andei dois ou três meses a insistir e não aguentei mais. «Não estou a fazer nada aqui», pensei; e dediquei-me a 100 por cento ao futebol.

Depois do Destroyers foi para o Bolívar, de La Paz, e acabaria por ser contratado pelo Benfica em 1990. Como aconteceu essa mudança?

É uma história longa. Fazia parte de uma academia de futebol e todos os anos íamos em digressão. Em 1984/85 participámos num torneio da Suécia. Uma pessoa viu-me lá e passado uns anos foi ter comigo à Bolívia, dizer-me que tinha um amigo empresário e perguntar-me se eu queria jogar na Europa… Queria, claro, mas não levei aquilo muito a sério. Passado uns tempos, chegou o convite para ir treinar ao Benfica, na altura do Eriksson. Fiquei três meses à experiência antes de assinar.

Depois de trocar a planura de Santa Cruz pela altitude de La Paz, saiu do seu país, mudou de continente e aos 19 anos veio para Lisboa. Foi um choque?

Notei muito a diferença, mas assim que cheguei ao aeroporto, vi a cidade e entrei no Estádio da Luz disse para mim: «Daqui já ninguém me tira.» Já tinha estado numa Copa América e num apuramento para o Mundial; era jogador de seleção, mas ninguém me conhecia cá, tirando os brasileiros: o Ricardo Gomes e o Valdo. Fiz 16 jogos nessa primeira época, o que não é mau, mas não foi fácil afirmar-me naquela equipa do Benfica repleta de grandes jogadores.

Foi campeão, mas acabou por no final da época ser cedido ao Estoril, do Fernando Santos, e depois ao Boavista, do Manuel José…

O Eriksson dizia-me para ter paciência, que eu era jovem e aquilo era o Benfica. Mas o que eu queria era jogar. No Benfica, no Estoril… Onde conheci o Fernando Santos. Fizemos uma grande época e depois saí para o Boavista.

Venceu a Taça de Portugal (1996/97) e foi campeão nacional (2000/01) pelo Boavista

Não se afirmou logo como uma das estrelas desse «Boavistão» do Manuel José…

O primeiro ano foi muito duro para mim. Não tinha amigos no Porto. Senti até a mudança do clima: mais frio, mais chuva… Tinha de treinar com pitons de alumínio, o que era raro no Benfica. Foi uma guerra para me habituar a isso. Tive também alguns confrontos com o Manuel José. Na altura, não dava valor a aspetos a que agora dou como treinador. Como jogadores pensamos que temos sempre razão. Estava um pouco isolado. Tinha os pais do Vítor Paneira em Famalicão e os sogros do William em Guimarães, que eram uma espécie de segunda família. Quando não ia para casa deles, acabava o jogo e ia para Cascais. Sei que fiz mal. Não estava a integrar-me no clube.

Isso acabou por mudar.

Quando terminou a época, fui de férias e depois fui representar a seleção. Estive dois ou três meses fora e no final comecei a refletir sobre o meu comportamento. Na segunda época, tudo mudou e, hoje em dia, a relação que eu tenho com o Manuel José é espetacular.

Acabou por roubar-lhe uma Taça quando bisou pelo Boavista frente ao Benfica (treinado por Manuel José) na final (10 de junho de 1997). Esse momento ajudou-o a voltar à Luz?

Falou-se do FC Porto também, mas o regresso ao Benfica já estava encaminhado. O Manuel José, ainda antes de treinar o Benfica (ainda no Marítimo), ligou-me numa altura em que eu estava a recuperar de uma lesão grave e disse-me: «Trabalha, quando estiveres em condições voltamos a conversar.» Isso motivou-me; deu-me alguma tranquilidade naquela altura em que tinha nascido o meu filho e eu tinha comprado um apartamento… Tenho muito a agradecer-lhe.

Quando voltou à Luz, encontrou um Benfica bem diferente daquele que conheceu quando chegou a Portugal. Souness como treinador… Vale e Azevedo como presidente…

Ainda apanhei o Manuel José, que teve de armar uma equipa nova, depois entrou o Mário Wilson e em seguida o Graeme Souness. O Benfica tinha muitos problemas. Acabámos o campeonato em segundo lugar, mas a época não correu bem. Além disso, tive desentendimentos com o Vale e Azevedo.

O quê em concreto?

Basta dizer que antes de sermos jogadores de futebol somos pessoas e tem de haver o mínimo de respeito no relacionamento. Há quem se julgue superior por ter um curso e um título profissional… Isso não dá a ninguém o direito de tratar mal os outros.

Depois regressou ao Boavista e foi campeão em 2000/01… Era algo de impensável, não?

Em 1999/2000 ficámos atrás do Sporting e houve um jogo meio esquisito em Faro que nos fez pensar que era possível ambicionar algo mais. Sentimos que podíamos chegar lá e conseguimo-lo no ano seguinte… Quando o presidente João Loureiro foi à Madeira, após uma vitória sobre o Marítimo, disse-nos: «A partir de agora somos sérios candidatos ao título nacional!» E acreditámos ainda mais.

Houve algum jogo marcante nessa caminhada?

Todos. Havia jogos em que estávamos por cima e não conseguíamos marcar… Num deles, contra o Campomaiorense, o Demétrius fez um golo de cabeça já nos descontos e aí toda a gente começou a falar na sorte, na «estrelinha de campeão»… Nunca mais deixas de pensar nisso. Acreditávamos que mais cedo ou mais tarde acabaríamos por marcar. E assim acontecia.

Esse título, em 2000/01, teve mais significado do que aquele que venceu uma década antes pelo Benfica?

O Benfica tem quantos títulos de campeão nacional? Aquele do Boavista era o primeiro e único. Os adeptos do Boavista continuam a recordar-me nessa época sempre que se cruzam comigo.

No seu país os adeptos lembram-lhe sobretudo aquele Mundial de 1994, nos Estados Unidos, em que marcou [na derrota por 3-1 com a Espanha] o único golo da seleção boliviana numa fase final de um campeonato do mundo…

Falo desse golo com alguma saudade e tristeza ao mesmo tempo. Se a Bolívia até agora não voltou ao Mundial é sinal de que fizemos as coisas erradas.

Foi selecionador de 2006 a 2009. Não foi possível tentar resolver por dentro alguns desses problemas?

Se não tens organização e não trabalhas com os jovens como podes mais tarde ter uma seleção forte? Se os campeonatos dos escalões jovens duram quatro meses como é que os jovens podem progredir? Como é que os clubes podem ter jogadores profissionais bons se a formação é má?

Foi também por isso que acabou por afastar-se da seleção?

Influenciou a minha saída do cargo de selecionador. Falo há vinte anos dessa falta de organização como um dos principais problemas do futebol boliviano. Dizem: «Ele esteve muito tempo fora do país e as ideias que quer implementar só funcionam na Europa…» Enquanto não se mudar essa mentalidade será difícil ver o meu país regressar a um campeonato do mundo.

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