* com Bruno José Ferreira

A carreira como treinador de futebol de João de Deus não começou por acaso, mas começou por um acaso. «Estava no sítio certo à hora certa», assumiu.

Depois de deixar de jogar em 2004, no V. Setúbal, ficou no clube como preparador físico, integrado na equipa técnica de José Couceiro e, mais tarde, José Rachão, na equipa que venceria o Benfica de Giovanni Trapatonni na final da Taça de Portugal.

Quatro anos mais tarde, e já depois de ter passado também por Angola, pelo Interclube, com as mesmas funções, João de Deus chega a Cabo Verde a assume a seleção de futebol. Como? Ele explica.

O João de Deus fez um percurso, enquanto treinador, que não é muito normal. Passa de preparador físico a selecionador de Cabo Verde. Acredita que esse foi um momento chave na sua carreira?

Em conversas com amigos costumo dizer que tudo são janelas de oportunidade, depois nós podemos aproveitá-las ou não. O que se passou com a situação de Cabo Verde foi exatamente isso. Cabo Verde perdeu na altura o selecionador. Carlos Alhinho saiu e a seleção caiu num vazio técnico. O adjunto, o Zé Rui, pegou na equipa. Ele é de Setúbal e costumava ver os nossos treinos e ficou responsável pelo processo de treino desse microciclo de trabalho. Queria por tudo em prática sozinho. Eu achei que não era exequível e como era o mês de férias do Vitória, ofereci-me para o auxiliar. Fizemos um jogo treino com Portugal, as coisas acabaram por correr bem, e lá está: foi uma janela de oportunidade.

Sente que tem alguma fatia de mérito destes êxitos recentes da seleção de Cabo Verde?

O grande mérito do que está a acontecer tem que ser dado a quem criou o projeto, mas é certo que era preciso pô-lo em prática. As bases foram lançadas, fez-se um trabalho sério e criterioso no desenvolvimento do futebol do país. Foram dez projetos que foram criados, com valências tão díspares como a alteração do modelo competitivo, como criação de um modelo de jogo para todos os escalões, formação de treinadores e por aí fora. Mas também é preciso perceber que já saí de Cabo Verde vai para três anos e a verdade é que a federação e a seleção não pararam de crescer desde essa altura. O mérito é de quem continuou com o caminho que estava definido, neste caso o presidente da federação Mário Silva e o Lúcio Antunes, que era meu adjunto e deu seguimento ao que estava definido.

Deu-se depois a passagem pelo Ceuta, de Espanha. Acha que foi a escolha certa?

Foi a escolha certa, mais que não seja porque nós aprendemos com o sucesso e com o insucesso. Mas eu tenho a convicção que há insucessos que são determinantes para o nosso crescimento. O insucesso de Ceuta foi fundamental para o amadurecer de ideias, definição de conceitos e conhecimento do que é isto do mundo do futebol. Nessa perspetiva foi extraordinário. Não correu bem por eu não estar adaptado. Em Espanha não é fácil para nós [portugueses]. Nesta área do futebol ainda mais difícil se torna porque eles são os campeões, têm as grandes equipas, os grandes jogadores e nós somos os portugueses...

No Ceuta acabou por ter uma célebre eliminatória com o Barcelona de Guardiola na Taça de Espanha. Como se monta uma equipa do Ceuta para travar aquela que para muita gente é a melhor equipa de sempre?

Monta-se mas não se trava (Risos). Olhando para o momento friamente, foi uma pena eu não estar adaptado ao contexto porque nem consegui usufruir desse momento. Não me deu a satisfação, nem a vontade, nem o desejo de fazer bem, de ser competente e de tentar ganhar como por exemplo no nosso último jogo com o Cova da Piedade. E quando digo isto não estou a desconversar, nem a mentir. É mesmo assim. O facto de estar tão desajustado da realidade acabou por me abstrair desse que momento que deveria ter sido marcante e não foi.

Sentia-se mais motivado para defrontar o Cova da Piedade do que o Barcelona?

Muito mais! Em termos de preparação estamos muito mais focados no adversário. Tanto o Cova da Piedade como todos os nossos adversários de campeonato, Taça de Portugal, Taça da Liga.

Depois do Ceuta, regressa a Portugal e faz um percurso em crescendo. Começa no Farense, depois dois clubes de Segunda Liga, Atlético e Oliveirense. Foi uma evolução importante para lançar as bases para o que seria o João de Deus na Primeira Liga?

Acredito que não sou muito diferente do treinador que era em Faro, tenho é mais ferramentas ao meu dispor. Por exemplo, em Faro era um problema para fazer uma coisa corriqueira de todos os treinadores em Portugal que é uma observação dos adversários. As equipas quando trabalham no Campeonato Nacional de Seniores têm muito mais dificuldades para fazer observação e análise, porque os jogos não são filmados e não há tantos meios à disposição. Acredito que quem é privilegiado de poder chegar a esta realidade depois de ter passado por outras realidades deve entender que isto é uma oportunidade para ser agarrada com ambas as mãos. Nos escalões secundários existem tantos treinadores com muitas competências e são tão capazes...Só precisam é de uma oportunidade.

Qual a maior ambição da sua carreira?

Ora aí está algo que nunca pensei. Não consigo fazer futurologia. A nossa sociedade está de tal forma que vocês poderem estar aqui a fazer o vosso trabalho e eu poder estar aqui a fazer o meu trabalho é uma sorte. Felizes daqueles que estão a trabalhar. Mais do que pensar no futuro, se sonho chegar aqui ou acolá, é arrepiar caminho no presente para ter o meu posto de trabalho. O futuro é hoje. É preparar um bom treino amanhã para depois melhorarmos no jogo e tentarmos ganhar.