Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

Há 17 milhões de pessoas a viver na área metropolitana de Calcutá, e, por estes dias, Henrique Sereno é um deles. O defesa é, a par de Hélder Postiga, um dos dois portugueses do Atlético de Calcutá, clube franchise do Atlético de Madrid, que disputa a Super Liga indiana, uma competição que dura três meses e que junta magnatas, vedetas de Bollywood, lendas do críquete e alguns nomes sonantes do futebol.

Mas o que levou Sereno a atravessar os quase 9 mil quilómetros que separam Portugal da Índia? A resposta é dada com a sinceridade que o caracteriza. «Tinha estado um ano e meio sem jogar, tinha tido duas graves lesões e estava há cinco meses em casa sem fazer nada, depois de ter rescindido contrato com o Mainz. Para janeiro já tenho tudo mais ou menos feito, mas, como o campeonato acabava em dezembro, aceitei. Até mais para vir treinar. E nem pensei no país».

Mas já vai em sete jogos. «Nem estava à espera, depois de cinco meses sem fazer nada, mas entrei num jogo e não sai mais».

Calcutá

«O Postiga já cá tinha estado no ano passado, disse-me que era uma coisa bem organizada, com bons jogadores, competitiva, e como são dois meses passa muito rápido. Foi por isso que aceitei. E tudo o que ele me contou é verdade. Tem bons estádios, sempre cheios, bons campos de treino. É a terceira ou quarta liga mais vista do mundo. Eles são tantos e gostam muito de futebol», conta.

«O facto de ser um franchise também ajudou na minha decisão, porque se algo correr mal, o Atlético sempre salvaguarda», explica.

Chegado a Calcutá, mesmo vivendo num hotel, numa espécie de bolha que protege os jogadores da vida da cidade, há coisas impossíveis de ignorar. «A realidade do país é bem complicada. A Índia é totalmente diferente daquilo a que eu estava habituado. Já tinha estado em vários países, mas nenhum como este. Vê-se de tudo», conta Sereno. «Tanto se vê um bairro com grandes casas, shoppings, como se encontram em frente três milhões de pessoas a viverem em cubatas. Há muita diferença social, muita pobreza, mas o que mais me perturbou até foi a poluição e a sujidade nas ruas».

«Esgotos a céu aberto, ratos… é o dia-a-dia. Vemos isso quando vamos a caminho do treino. Nos dias livres fomos visitar a cidade e vimos tudo isso, também fomos a vários museus, cinemas, shoppings, muitos deles novos, bem protegidos. Mas depois, na rua não há passeios, são carros, carros e mais carros», explica.

O defesa chegou a Calcutá em outubro, e há uma coisa que ainda não viu: «O céu azul». «Há neblina todos os dias, causada pela poluição. Quando fomos para Deli tivemos que usar máscaras. Nem treinámos porque os níveis de poluição estavam muito altos na altura. Em Calcutá está tudo nublado, mas dizem que podemos treinar. Quando jogámos em Bombaim até cheira mal na rua», conta.

Para jogar menos de três meses na Índia, Sereno foi sozinho, sem a família. «Não valia a pena. Sinto saudades, custa, mas as minhas filhas estão na escola. Não havia hipóteses», afirma. E se não põe de parte um dia levar a família à Índia de férias, o destino seria outro. «Só se for a Goa. É um sítio muito bonito, não tem nada a ver com o resto. Bons hotéis, boas praias, bom clima… é mais turístico. A Calcutá não me atrevo a trazer as minhas filhas», garante.

Sem a família por perto, os companheiros de equipa assumiram um papel importante na adaptação. «O que me facilitou aqui a vida foi já conhecer vários jogadores como o Borja Fernández, com quem joguei no Valladolid, o Dani Mallo que estava no Braga, também já tinha jogado contra o Javi Lara, conhecia o treinador, que é o Molina, e claro, o Hélder Postiga, que me tem ajudado muito também».

Como atores de Bollywood

E se lhe fizessem proposta por um ano, para jogar na I League, o campeonato regular indiano, aceitava? «Não, não… só se valesse muito a pena», diz Sereno.

E estes três meses valem a pena? «Muito», garante. «Uma das coisas que levo daqui são as pessoas. São muito humildes e até hoje foi dos sítios em que vi as pessoas mais puras», explica.

«Mesmo na rua toda a gente nos conhece. Tratam-nos bem, mas querem muita aproximação, tirar fotos. Como nós aparecemos aqui na televisão, tratam-nos como se fossemos atores. Mas as estrelas ainda devem viver pior», graceja. E claro que não dá para sair sozinho à rua. «Vamos sempre com seguranças».

No futebol indiano não há só muita gente, há também muito dinheiro. «Os orçamentos aqui são enormes. Mumbai City FC é a equipa que tem o orçamento maior. O Forlan é o jogador mais bem pago da liga e mesmo os indianos que jogam lá são todos internacionais, por isso são muito bem pagos», conta Sereno. «Sem ser FC Porto, Benfica, e Sporting, não há equipas em Portugal com orçamentos destes, e aqui são para três meses», recorda.

Há dinheiro até para coisas que nos parecem excêntricas, como um episódio que Sereno recorda. «Uma vez choveu muito e o campo estava empapado antes do jogo e o clube contratou centenas de pessoas com esponjas para tirar a água. Nunca tinha visto nada assim. E o campo ficou seco», conta, mas claro que faz um reparo: «Aqui gente não falta».

A caminho da final

E em termos competitivos? «Não tem nada a ver com a liga alemã, mas na Turquia, por exemplo, a maior parte das equipas estão a este nível», garante.

E nem está assim tão longe dos olhos da Europa. «No meu clube nota-se bem a ligação ao Atlético de Madrid porque os diretores do Atlético vêm ver os nossos jogos. O clube está cotado em bolsa, por isso é que o nosso objetivo era ir ao play-off, senão as ações vinham por aí abaixo», conta Sereno.

«O nosso primeiro objetivo já foi cumprido. Agora, tudo o que vier é somar. A equipa já foi campeã, se for de novo, ótimo. Se ganharmos o próximo jogo (segunda mão das meias finais frente ao Mumbai City) vamos à final e isso seria bonito», diz.

«Eles têm muito boa equipa. Nós ganhámos cá 3-2 e na terça-feira vamos jogar lá, e não vai ser fácil, mas estamos em vantagem. Aqui não há muito fator casa, os adeptos não fazem pressão, é mais festa. Vamos ver se corre bem».

Adeptos no jogo com o Mumbai City

Sem arrependimentos e com outros mercados no futuro

Sereno já tem destino em vista para janeiro, que não revela enquanto «não estiver no papel», mas não deverá ser na Europa. «Não, em princípio não. Serão outros mercados. Eu não sou de pedir muito: pessoas simpáticas, boas condições de trabalho…», garante.

Olhando para trás, o defesa não tem arrependimentos. «Saí de Elvas com 19 anos. Nessa altura treinava uma vez por semana. Chegar onde cheguei, uma coisa que muito pouca gente conseguia… E eu consegui. Estou muito feliz pela carreira que fiz», garante.

«Tive muitas lesões durante a minha vida e mesmo assim estou muito feliz com o que consegui. Não tirava nada», assegura.

Nem se arrepende de ter pedido para ser emprestado no FC Porto. «Para mim, sem jogar é muito complicado. Tenho que ir sempre para clubes onde possa jogar. No Porto, no primeiro ano, sei que era difícil, mesmo assim consegui jogar vários jogos. No segundo ano, o Vítor Pereira tinha um problema: contrataram o Danilo. Vi que não tinha muitas hipóteses e pedi para sair e não me arrependo. Joguei sempre. Só no ano passado é que não joguei». «Tenho que me sentir útil. Não quero estar no banco ou na bancada», garante.

No FC Porto

«Ainda fui convocado muitas vezes para a seleção, mas só tive duas internacionalizações. Era muito difícil. A seleção tinha grandes jogadores e eu estava feliz por ir», conta. Mas não pensa em voltar a vestir a camisola das Quinas. «Agora já não tenho hipótese. Se tivesse jogado no ano passado, enquanto estava num bom clube na Alemanha...agora há muito bons jogadores».

E no futuro? «Espero ainda jogar mais três anos, no mínimo dois. Depois… não tenho nada pensado, mas não sei se passará pelo futebol. Preferia outra coisa. É mais difícil pela família, por estarmos sempre a mudar de um lado para o outro. É uma boa vida, paga-se bem e temos que aproveitar para poder ter uma vida mais fácil depois», conta.

«Tenho duas filhas com quatro anos e uma vai fazer sete. Vieram sempre comigo até entrarem na escola. A mais velha entrou na primária, e agora têm que ficar. Falo com elas todos os dias, mas quero vê-las crescer», conclui.