Natural de Paredes, José Fernando Martins Valente escalou até ao futebol profissional para vincar a necessidade da prática de um jogo que possibilite a valorização de todos os intervenientes. Neste momento, aos 58 anos, comanda um dos escalões de formação do Shandong Luneng, na China, e continua de olhos postos em Portugal, destino que diz permanecer órfão de determinadas ideias que promove incondicionalmente.

Após uma temporada de sucesso ao serviço do Desp. Aves, em 2013/2014, na qual disputou inclusivamente um «play-off» de subida à I Liga, a seguinte ficou aquém das expectativas devido, fundamentalmente, à delicada situação financeira atravessada pelo clube, que potenciou uma saída precoce.

«Surpreendemos toda a gente, através de uma ideia de jogo que diziam não ser possível numa segunda liga. O meu objetivo era entrar no futebol profissional com uma marca diferente. No ano seguinte, senti que, mesmo quase subindo de divisão, ficou muita coisa por fazer. Enfrentámos uma série de dificuldades que julguei não existirem e não conseguimos apetrechar a equipa como pretendíamos. Quando entra gente que não vem acrescentar, o processo demora. Os resultados acabaram por não ser maus, embora longe daquilo que estavam à espera», começou por contar.

Durante o percurso no emblema avense teve a oportunidade de orientar jogadores como Quim, Fábio Martins e Vasco Rocha, congratulando-se com o atual desempenho de cada um na Liga. «Costumo dizer ‘se quiseres saber dos treinadores, pergunta aos jogadores’. Sou um felizardo, porque, ao longo do meu percurso, tive sempre ligações fortes a eles», afirmou. «O Quim é uma referência nacional, mas assumiu publicamente que ficou surpreendido com as ideias que fomos desenvolvendo. Fico muito feliz, porque sempre insistia na ideia de que queria subir com o Aves e, neste momento, com esta idade, está a disputar a primeira liga», diz. «O Fábio Martins era um menino que estava escondido no FC Porto. Ninguém acreditava nele e chamavam-lhe de ‘brinca na areia’. Sou fanático pelo virtuosismo. Ajudou-me muito no Desp. Aves, mas também lhe abri a perspetiva de que o seu potencial tem de ser visível e o campo não tem de ter limites. Penso que o seu potencial não ficará por aqui.» Por fim, elogios também para o pacense Vasco Rocha: «Cresceu comigo em Paredes e também me ajudou no Desp. Aves.  É, agora, uma referência da primeira liga. Passa despercebido, mas percebe muito bem o jogo.»

A seguir às Aves Fernando Valente chegou ao Santa Clara enquanto sucessor de Filipe Gouveia, numa atribulada época 2015/2016, na qual o emblema de Ponta Delgada chegou a sofrer quatro alterações no comando técnico. «O calendário não contribuiu muito para que a estabilidade aparecesse, e, mais uma vez, as restrições financeiras ditaram alguma falta de recursos. Nos primeiros nove jogos, sete foram fora, na sequência da antecipação de jogos, e, no mercado de inverno, houve saídas indevidamente colmatadas. Tinha três internacionais líbios comigo, desde dezembro. Em fevereiro saí, a seis pontos do 12.º, sem poder utilizar os reforços que queria. Basta só dizer que um deu cerca de 12 pontos e acabou contratado pelo Benfica. Chama-se Hamdou Elhouni e está agora no Chaves», recorda.

«Fui convidado pelo Luís Castro. Perguntei se era mesmo eu quem queria contactar»

Num breve período após uma nova desvinculação prematura surgiu a oportunidade de realizar conferências em instituições de ensino superior e assumir o cargo de treinador no Leixões, mas a hipótese de rumar a território oriental afigurou-se como a mais apetecível. «Vivi um período muito interessante, em que fui convidado para dar conferências em universidades. Nunca imaginei fazê-lo. Fui também abordado por um empresário e um conjunto de investidores que tomaram conta do Leixões. Estávamos a trabalhar para iniciar um novo projeto mas, depois, surgiu o convite para rumar à China e as coisas ficaram pelo caminho. Estavam à procura de alguém com um perfil, que valorizasse o jogo e investisse em jovens.»

O convite para treinar o escalão de sub-19 do Shandong Luneng, na China, chegou inesperadamente, por intermédio de Luís Castro, atual técnico do Desp. Chaves. «Fui convidado pelo Luís Castro, que tinha sido abordado para orientar uma das maiores academias de formação chinesas. Foi uma surpresa e senti-me honrado. Perguntei se era mesmo eu quem queria contactar. Não faltavam treinadores. No entanto, foi à procura de alguém com um determinado perfil. Aliciou-me ajudar os jogadores a fazerem o salto para o futebol profissional. Ele, infelizmente, acabou por não seguir», relatou.

«Há, efetivamente, muitos problemas estruturais no futebol chinês»

A trabalhar há sensivelmente 18 meses em Jinan, Fernando Valente considera que já deixou uma marca na academia de formação, ao aliar uma proposta de jogo ambiciosa à conquista de numerosos títulos.

«Em termos desportivos, não era aquilo que estava à espera. Há, efetivamente, muitos problemas estruturais no futebol chinês. Somos cerca de nove portugueses e estabelecemos bases de resultados desportivos que nunca aconteceram no clube. Durante este período conquistámos 13 títulos. Faltam seis meses de contrato e vamos procurar acabar da melhor maneira.»

A comunicação constituiu a maior barreira enfrentada no período de adaptação à realidade chinesa e mantem-se até aos dias correntes. «Trabalhamos com um tradutor e não temos ideia do que traduz, até porque, muitas vezes, não percebe de futebol. Já nem digo que é meu tradutor: é meu assistente. Para quem, como eu, faz da comunicação uma arma, percebendo e desmontando muito daquilo que vai na cabeça dos jogadores, é complicado, mas as coisas têm funcionado», admitiu.

Ainda assim, a cultura desportiva e a valorização profissional decorrentes da presente aventura não dão lugar a qualquer arrependimento.  «Há uma cultura desportiva de grande respeito entre clubes, bem como entre as equipas e os árbitros. É algo que em Portugal não existe. Em termos de carreira, saio sempre valorizado, porque tudo aquilo que me ajuda a crescer em contextos diferentes é importante. Há sempre valorização, corra bem ou mal. Lá somos valorizados porque levamos ideias novas.»

Incutir novas ideias e introduzir conceitos distintos em jovens num patamar pré-sénior não se revelou uma tarefa simples. «Há sempre alguma resistência. Logicamente, na China é mais difícil. Com a comunicação e os exercícios vão começando a perceber que, realmente, há coisas vantajosas, e vão-se sentindo mais confiantes e seguros. Recorro a ferramentas de vídeo para passar mensagens e, assim, vão entendendo o jogo e aquilo que podem fazer. É gratificante perceber que vão evoluindo e crescendo com uma base que julgo ser fundamental para qualquer jogador, que é compreenderem o mais simples do futebol.»

A família, que assume uma importância vital, não colocou entraves ao desafio e demonstrou, desde o início, um forte apoio. «Quando este desafio apareceu, a família apoiou, porque sabia que seria importante para mim e que poderiam haver outras contrapartidas. Quem está no futebol a tempo inteiro tem de estar disponível, porque hoje não existem fronteiras. A família para mim é tudo. A distância começa-se a notar, mas nada que não consigamos aguentar», referiu.

O ponto alto da carreira, acima de qualquer conquista de títulos, é, para si, a criação de laços afetivos com as pessoas com quem contactou. «É sentir que deixei uma marca nas pessoas que lidaram comigo, que fez a diferença, que valorizou toda a gente, deu prazer, e que as tornou mais felizes e completas. Apenas em termos desportivos, foi disputar o ‘play-off’ de subida contra o Paços de Ferreira, mas ser campeão pelo Paredes numa época em que treinávamos na estrada e não tínhamos condições também foi algo que me marcou.»

«55 ou 60 por cento de posse parece uma anormalidade, quando deveria ser a normalidade»

Um dos traços distintivos de Fernando Valente é o futebol positivo executado pelos conjuntos que comanda, ao privilegiar uma gestão inteligente e racional da bola. «O treinador tem o papel de promover o jogo e o jogador. Essa é a minha bandeira. O futebol que preconizo é de equipa, onde os jogadores em diversos contextos estão ligados e constroem jogadas que terminam em golo, que é o exponente máximo da qualidade de jogo. Aquilo que entendo como um futebol de qualidade é precisamente um futebol em que existe uma preocupação na gestão da bola», indicou.

«Oiço um treinador dizer ‘hoje não fomos agressivos, não tivemos intensidade e a equipa deixou jogar’. Só valorizamos o esforço e parece que é tudo um sofrimento, quando, no fundo, temos esse sofrimento para ter a bola. É ela que enriquece o espetáculo. Quando, no futebol português, vejo um treinador que consegue 55 ou 60 por cento de posse parece uma anormalidade, quando deveria ser a normalidade. No meu tempo, quando acontecia um golo construído a dez ou 11 toques já era uma obra de arte. Nas minhas equipas temos aos 20 e tal, o que não quer dizer que não os tenha também a dois ou três toques.»

«Pressionamos para jogar e não jogamos para pressionar. Em Portugal joga-se para pressionar»

«Hoje fala-se muito em condicionar o adversário e jogar em função dele, mas há que perceber que pressionamos para jogar e não jogamos para pressionar. Em Portugal joga-se para pressionar. As equipas jogam em bloco baixo, pressionam, mas esquecem-se de que quando ganham a bola necessitam de saber fazer alguma coisa.»

«Andamos numa política resultadista e, quando somos apenas arrastados por isso, os resultados de uma época podem ser bons, mas, na seguinte, acaba por não haver tanto sucesso, porque é importante cimentar uma ideia que prevaleça. Faltam muitas ideias ao futebol português», considera.

«Nunca tive muitas possibilidades de escolher os jogadores que pretendia. As caraterísticas deles são importantes, mas posso fazer com que ganhem outras. Tive sempre a responsabilidade de respeitar aquilo que têm de bom e valorizar isso, mas também ajudar a desenvolver outras. Nem tudo é uma questão de dinheiro. Quando as ideias são fortes, cimentadas e envolvem realmente quem está connosco podem-nos levar a alcançar sucesso desportivo», atirou.

A recorrente impaciência dos adeptos não surte, de forma alguma, efeito sobre uma sólida ideia de construção que preconiza e, como tal, nunca motivou uma reformulação do processo do jogo. «Oiço muitos assobios em todas as épocas, mas, quando o treinador está seguro e tem a capacidade de preparar mentalmente os jogadores, não são os assobios que o travam. Há dois ou três que fazem barulho e pensamos que estão a assobiar quando não estão.»

«As ideias não têm idade»

Sente igualmente que, por vezes, são escassas as oportunidades concedidas aos técnicos que veiculam novas ideias a implementar em território nacional. «As ideias não têm idade. Investe-se num jovem, um jovem não dá, vai-se buscar um treinador experiente. Se no ano seguinte também não der, fica o adjunto, que é da casa… Depois, resolveu o problema a curto prazo, mas, na época seguinte, já sai... Noto que os dirigentes não sabem bem aquilo que querem. No futebol português conta a influência. Há uma lacuna muito grande na planificação e na escolha de quem realmente se quer para um clube. Quem escolhe um técnico é um alto quadro de uma empresa, que terá a responsabilidade da valorização do próprio clube. Isso não pode ser feito por intermédio de amigos», comentou.

O atual estado de crispação instalado fora dos relvados no panorama nacional deixa Fernando Valente profundamente desagradado, embora não abale a motivação de continuar, futuramente, a acrescentar algo ao desporto que tanto o apaixona. «Concordo com o Carlos Carvalhal quando diz que, fora das quatro linhas, é um nojo e não promove aquilo que deveria. Exceto um ou outro caso, continua a jogar-se muito mal em Portugal. Sou muito positivo, mas sinto que o futebol profissional ainda vai precisar muito das minhas ideias ou de parecidas com as que desenvolvo, porque se adaptam à realidade. Não temos de nos desculpar com aquilo que não há. Há sempre o essencial: jogadores, um espaço e bola. Acredito muito no futebol português, ainda que haja muito caminho a percorrer», perspetivou.