Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

«Honestamente, até me perco nos títulos que tenho nos Emirados». A frase de Rui Guimarães até pode causar estranheza a quem não conhece a carreira do treinador, mas a verdade é que, desde que em 2011 o português se tornou no primeiro técnico estrangeiro de futsal nos Emirados Árabes Unidos, não tem parado de ganhar troféus.

Nestas sete épocas no Dubai, o treinador de 32 anos foi quatro vezes campeão, por três clubes diferentes: Al Wasl (2012/13), Al Ahli (2015/16) e Al Dhafra (2016/17 e 2017/18). «E espero vencer na próxima época por mais um», revelou o técnico ao Maisfutebol, numa altura em que está prestes a assinar por uma nova equipa.

E não foi só. «Além dos títulos de campeão, tenho três supertaças, duas Federation Cup e três President Cup. E ganhei também por duas vezes o NAS tournament, que é o torneio mais famoso do mundo, que junta os melhores jogadores como Ricardinho, Falcão…»

E qual é segredo deste sucesso? «É trabalhar, ser competente, ser profissional, e ter ao meu lado as pessoas certas. E neste caso tenho que deixar uma palavra de apreço ao meu treinador adjunto, João Lino, que tem sido uma peça fundamental nestes últimos três anos».

Rui Guimarães e João Lino

Ganhar títulos foi algo que começou cedo para o vizelense Rui Guimarães, tal como a carreira de treinador. «Eu jogava futebol nos juniores do Vizela e, na época em que seguiria para os seniores, tive propostas de divisões inferiores, mas decidi deixar de jogar». Foi nessa altura que começou o seu percurso no futsal, «com um convite para ser diretor no Fundação Jorge Antunes». «Entretanto, os iniciados precisavam de treinador e pediram-me para assumir o lugar, só até encontrarem um treinador, mas as coisas correram bem e acabei por ficar».

Era muito jovem na altura. «Tinha 18 anos, e com 20 já era treinador campeão nacional de juvenis». E sem qualquer formação de treino. «Nem o nível I tinha», frisou o técnico.

«Na altura tive a sorte de ter na equipa sénior [no Fundação Jorge Antunes] dois grandíssimos treinadores: o Paulo Tavares, atualmente no Sp. Braga, e o Jorge Braz, da seleção nacional. São as minhas grandes referências no futsal e permitiram-me evoluir como treinador».

No Fundação Jorge Antunes, onde tudo começou

Depois de quatro anos nas camadas jovens do Fundação Jorge Antunes, e mais um título de campeão nacional (sub-18), Rui Guimarães, na altura com 22 anos, fez as malas e deixou o país graças a uma proposta que «não podia recusar». O destino foi a Suíça, onde, além do lugar de treinador do FC Cosmos Geneve, tinha também um trabalho a tempo inteiro numa empresa de revestimentos de exterior. «O salário era muito alto e nem pensei muito no futsal. Só pensei: ‘vamos’». Após o expediente na empresa, «fazia uma hora de comboio e ia treinar».

Foi uma experiência que não durou muito. «Quatro meses depois vim de férias a Portugal, e meti na cabeça que não ia voltar para a Suíça. Na altura havia propostas de Itália, República Checa, Grécia…».

Teve então uma passagem fugaz pelo ASD Real Toco, da Itália, seguida do Targu Mures, onde conquistou a taça da Roménia. Depois esteve uma época no Gypaetus da Grécia, e outra no Balticflora, da República Checa, até chegar ao Al Hamriya Club, a primeira experiência nas arábias.

O que o marcou mais neste percurso? «Todos marcam. São pessoas diferentes, experiências diferentes, enriquecedoras. Todos estes países e estes sete anos nos Emirados trazem um crescimento a um treinador jovem como eu. É uma aprendizagem constante».

Título de campeão conquistado com o Al Dhafra

Apesar de ter assentado arraiais no Dubai, Rui Guimarães já passou por quatro clubes (e vai para o quinto), por uma questão de estratégia. «Acho que, num país como os Emirados, um treinador não deve estar num clube mais do que dois anos. Vejo pessoas que não conseguem estar muito tempo no país. Eu estou há sete anos, e acho que esse é um dos segredos para me manter. Os árabes têm uma mentalidade muito diferente, são muito respeitadores, mas demasiado interventivos, e, para me proteger como treinador e evitar tensões, acho melhor assim. Evita-se o choque, a rutura, e as portas continuam abertas para o futuro», afirmou.

«Claro, também é importante trabalhar com jogadores diferentes, diretores diferentes. Foge-se à rotina e traz outra motivação», adiantou o treinador.

Rui Guimarães diz que o país «é um mundo à parte» no que à modalidade diz respeito. «Quando cheguei cá, o nível era muito baixo, mas tem evoluído bastante nestes sete anos e há jogadores, não muitos, mas há, em condições de jogar na primeira divisão em Portugal, disse o técnico, adiantando que «as constantes mudanças não beneficiam muito» o futsal.

Um exemplo disso é a política em relação aos jogadores estrangeiros. «A época passada foi a primeira em que se pode ter um jogador estrangeiro, desde que residente no país há mais de três anos, e três da região do Golfo. Mas agora a federação já disse que na próxima época já não podemos ter estrangeiros», explicou.

«Estamos em abril e ainda não há um calendário da próxima época, não se sabe quando começam os treinos… é sempre um bocado em cima do joelho. Aqui há infraestruturas, condições financeiras, mas falta organização ainda, que é muito importante», frisou.

Rui Guimarães com o príncipe do Dubai, Sheikh Hamdan


Mesmo tendo passado por vários países antes, Rui Guimarães só sentiu uma grande mudança quando se transferiu para o Dubai. «Na Europa é tudo muito parecido. Vir para os Emirados é que foi realmente uma diferença enorme em termos culturais, religiosos…»

Apesar de garantir que a adaptação ao Dubai «foi muito fácil», há pormenores que o treinador estranhou no início. «No primeiro jogo treino que fiz não tinha jogadores lá dentro porque estavam todos a rezar. Os centros comerciais estão sempre cheios e vemos as mulheres todas tapadas. Não sabia que eles rezavam cinco vezes por dia e acordei às 4 da manhã com um barulho infernal que eu pensava que era algo tipo uma feira, e era na mesquita, a rezarem para chamar as pessoas. Mas agora já estou habituado a tudo isso», assegura.

E claro, o luxo do Dubai não deixa ninguém indiferente. «No início foi um choque. Passar na Sheikh Zayed Road e ficar impressionado. Os habitantes locais gostam de mostrar riqueza e foi isso que me surpreendeu», confessou o treinador.

«Tenho um amigo, que é uma das pessoas mais ricas deste país, que tem um jardim zoológico em casa com leões, girafas… todo o tipo de animais. E há pessoas que andam com leões dentro do carro e até já vi um à solta», revelou Rui Guimarães, que já se deixou contagiar. «Eu tinha um macaco em casa. Também começo a ficar um pouco com a mentalidade árabe. Chamava-se Jordan, em homenagem ao jogador da seleção de futebol de praia».

E o clima do Dubai? «Adoro!», exclamou. «Tirando o verão, em que o calor é infernal e as temperaturas ultrapassam os 50 graus, o resto é maravilhoso. Eu adoro viver no Dubai, é um país que dá uma qualidade de vida muito boa», garantiu.

Rui Guimarães diz que já fez «praticamente tudo o que há para fazer no Dubai», incluindo skydiving, que considera ter sido a sua maior extravagância. «Gosto de usufruir, de me divertir. Não tenho um Ferrari, gostava, mas nisso sou mais controlado. O que eu gosto é de viajar», contou.

«Viajo todos os meses, às vezes duas vezes por mês, porque estou perto de tudo. Maldivas já fui duas vezes, Egito, Tanzânia, Gana, mesmo Turquia são só quatro horas. Na Ásia conheço praticamente tudo».

O treinador a fazer skydiving

E com esta qualidade de vida, regressar a Portugal é uma possibilidade? «Não digo que vou ficar nos Emirados toda a vida, mas Portugal, a curto/médio prazo é impossível. Portugal tem um nível muito bom em termos de qualidade de treino, de treinadores, mas em termos financeiros é uma diferença abismal. Caso saia dos Emirados, no continente asiático tenho várias portas abertas por ter criado um bom currículo».

Mesmo ao longe, Rui Guimarães não perdeu a conquista portuguesa no Europeu de Futsal. «Vibrei muito com o título da seleção. Fiquei feliz, orgulhoso, acho que Portugal mereceu». «Tenho uma relação próxima com alguns jogadores e muito respeito pelo Jorge Braz, que tem feito um trabalho fantástico e ele, mais do que ninguém, merece este título. É persistente, competente, e mudou um pouco o chip do futsal em Portugal em termos estratégicos».

Artigo original: 09/04/18, 23h50