Esta é uma história feliz. Uma história de uma conjugação de acasos que levaram a que Pedro Felício Santos, um treinador jovem que até abril passado tinha trabalhado essencialmente com escalões de formação, assumisse a condução de um dos maiores clubes da América Latina, o «assustador» América Cali, que conta com quase sete milhões de adeptos. Um clube gigante, que se assume orgulhosamente como o representante do povo, que nos últimos tem estado arredado da luta pelo título na Colômbia e dos grandes palcos da América do Sul, depois de ter perdido competitividade para os rivais Atlético Nacional, Independiente Medellín, Millonarios, Once Caldas e mesmo para o vizinho Deportivo Cali. Era preciso reabilitar a imagem manchada pelo narcotráfico, era urgente adotar as novas metodologias de treino que chegavam da Europa, era imperativo tirar proveito da formação e voltar a crescer. Pedrito de Portugal, como agora é conhecido o nosso interlocutor na Colômbia, estava ali ao lado e é agora o comandante do clube que representa os pobres e desfavorecidos de Cali, do país e um pouco por toda a América.

Um clube que já foi treze vezes campeão da Colômbia e que já esteve em quatro finais da Taça Libertadores, mas que se afundou quando se envolveu profundamente com o narcotráfico dos cartéis de Cali. O America Cali chegou a integrar a Lista de Clinton, uma lista publicada pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos com os nomes de pessoas e empresas que foram contemplados com o dinheiro proveniente do tráfico de drogas. A verdade é que, nos últimos dez anos, o presidente da câmara de Cali, com a supervisão da Direcção Nacional de Narcóticos da Colômbia, tem procurado limpar as contas e, sobretudo, a imagem do clube. Mas a nível desportivo, a temporada começou outra vez mal, com derrotas atrás de derrotas, sobe o comando de Carlos Asprilla. Foi nessa altura, em finais de março deste ano, que o presidente do clube, Túlio Gomez, decidiu que era imperativo adotar um modelo europeu, como aliás os rivais já tinham feito com sucesso. Não havia dinheiro para ir buscar um treinador à Europa, mas a solução estava mesmo ali ao lado.

É nesta altura que a história do America Cali se cruza com Pedro Felício Santos. O jovem treinador, de 38 anos, já estava na Colômbia, a treinar a equipa de sub-17 dos Millonarios. Tinha chegado ao país pela mão de António Carraça que, em 2017, assumiu o cargo de diretor desportivo do clube de Bogotá. António Carraça é uma espécie de mentor de Pedro Felício Santos, desde que os dois se cruzaram na formação do Benfica. «Trabalhei com o António Carraça no Benfica, ele depois veio para o Millonarios como responsável do futebol profissional e do futebol de base. Ele já cá estava há oito meses quando me convidou para pegar na equipa de sub-17. Vim com o Ricardo [Andrade] e o Mauro [Bastos] que já estavam comigo nos seniores do Pinhalnovense».

Depois de tirar o curso de treinador, nível 1, logo aos 19 anos, Pedro Felício Sousa fez estágios no Sporting e no Benfica. Chegou a trabalhar nas academias dos leões e na formação das águias. «Estive no Benfica, quatro anos, na formação. Fiz um estágio com os juniores, depois também fiz um estágio profissional no Sporting, com o José Peseiro. Também passei pelas academias do Sporting, fui para o Futebol Benfica e depois Real Massamá onde estive quatro/cinco anos».

No Real Massamá, Pedro Felício Santos acentua a relação com Carraça que, na altura, trabalhava num projeto que procurava formar jovens jogadores chineses e integrá-los em clubes portugueses para ganharem experiência antes de regressarem à China. «No Real estive em todos os escalões dos campeonatos profissionais, juniores, juvenis, iniciados. Pelo meio, tive um projeto à parte com um empresário da China. Fui quatro vezes à China, tínhamos um intercâmbio de experiências. Treinávamos em Portugal e duas vezes por ano íamos à China fazer jogos. Trabalhava com jovens chineses com idades entre os 17 e os 20 anos. O objetivo era treiná-los e metê-los a jogar em equipas do Campeonato Nacional de Seniores (CNS)», conta.

A verdade é que a primeira experiência de Pedro Felício Santos com uma equipa senior tem pouco mais de um ano. Foi na época passada, no Pinhalnovense, mais uma vez, pela mão de António Carraça. Em outubro, no entanto, como já dissemos, o treinador estava a caminho da Colômbia, com dois elementos da sua equipa técnica: Ricardo Andrade, antigo guarda-redes brasileiro do Moreirense, e Mauro Bastos, antigo jogador do Gil Vicente, que eram agora os seus adjuntos. Os novos métodos da equipa portuguesa produziram resultados quase imediatos nos escalões de formação do Millonarios e chamaram a atenção de Tulio Gómez, o presidente do America, que procurava «europeizar» o America. «O presidente observou o trabalho que estávamos a fazer no Millonarios e contactou-nos. Já tínhamos falado com ele pessoalmente, ele gostou das nossas ideias que passavam por desenvolver a formação, implementar as nossas ideias nas bases e transformar a equipa profissional numa espécie de montra da formação».

No início de abril, para surpresa geral, Pedro Felício Santos e os seus adjuntos são apresentados como a nova equipa técnica do America Cali em substituição do colombiano Carlos Asprilla. Uma aposta que surpreendeu os adeptos e a comunicação social colombiana que estranhava a aposta num treinador que não tinha qualquer experiência em grandes clubes. «No início desconfiavam muito. Com a grandeza do clube, viram chegar um estrangeiro, ainda por cima sem experiência, foi um pouco complicado. O que eu lhes dizia era que se ter experiência é treinar, eu treino futebol há dezoito anos, desde os dezanove que sou treinador de futebol. Agora se ter experiência é treinar um clube grandioso como o America, aí não tinha, mas também há poucos clubes com esta magnitude, com tantos adeptos, no Mundo. Foi isso que lhes disse».

A alcunha de toureiro

A verdade é que Pedro Felício Santos ganhou logo os dois primeiros jogos e a equipa impressionou, ostentado uma elevada posse de bola, impondo o seu jogo com autoridade, exibindo segurança na defesa e desenvoltura no ataque. O novo treinador mostrava trabalho e, acima de tudo, resultados. «Mudámos o modelo de treino e o modelo de jogo. Entrámos logo com a nossa metodologia de treino, depois tivemos oito jogos em trinta dias. Tivemos uma semana de treino boa, depois tivemos sempre dois jogos, viagens, dois jogos, viagens», conta. O treinador desconhecido, ganha rapidamente popularidade entre os adeptos e, como é habitual na Colômbia, teve direito a uma alcunha e tudo: «Pedrito de Portugal». «Eles têm uma grande admiração pelo Pedrito, o toureiro, tem a ver com isso», conta.

O America de Cali voltava a rugir, a expor a sua grandeza e a encher o Estádio Olimpico Pascual Guerrero, com capacidade para 40 mil adeptos. «O America quando vai jogar fora, não enche só os estádios, enche as ruas. É o clube com mais hinchas  [adeptos]. A qualquer lado que vás na América, tens adeptos do America, é o clube dos pobres, o representante dos desfavorecidos e do povo. É um bocado à imagem do Benfica em Portugal».

Os resultados abafavam a desconfiança inicial, mas ao terceiro jogo, o America perdeu e Pedro Felício Santos também perdeu a compostura. Apresentou-se irritado na conferência de imprensa [veja o vídeo abaixo] e anunciou que não estava disponível para responder aos jornalistas que tantas vezes tinham colocado em causa a sua capacidade para dirigir a equipa. Afinal o que se passou nesse jogo com o Rionegro? «Naquele jogo fomos roubados, muito roubados. Estávamos a defrontar o Rionegro, que é um clube difícil, em termos de presidente, aqui na Colômbia. Foi um golo anulado, duas expulsões diretas logo a abrir e nos últimos quinze minutos não se jogou. desde bolas para dentro do campo, valeu tudo. Nessa atura eles estavam a lutar connosco para ficar nos oito primeiros», recorda.

O America Cali acabou por falhar a qualificação para a fase a eliminar do campeonato (apuram-se apenas os oito primeiros para os quartos de final], mas o registo de Pedro acaba por ser positivo. Em pouco mais de um mês, fez oito jogos, somou três vitórias, três empates e consentiu apenas duas derrotas. Em poucos jogos, fez metade do total dos pontos o America. «Nos oito jogos que fizemos, fomos superiores em todos eles, merecíamos ganhar todos, menos o jogo com o Independiente Medellín, foi o único em que não fomos superiores, mas também tínhamos muitas lesões e muitos jogadores condicionados. Só o primeiro jogo é que contámos com a equipa toda, depois os outros tivemos sempre de improvisar», explica. A equipa já estava praticamente condenada quando chegou a equipa portuguesa, mas a verdade é que deixou boa impressão. Pelo meio desta série, o America bateu o vizinho rival, Deportivo Cali, o que não tinha acontecido nos últimos anos. «Que festa! Ganhámos ao Deportivo, há dois anos que não ganhávamos o dérbi, mas agora ganhámos. Foi uma grande festa dos adeptos», recorda.

«É um clube assustador com sete milhões de hinchas»

Os objetivos estavam a ser alcançados. «Foi o que nos foi pedido. Mexer nas bases da formação, implementar uma boa metodologia de treino, um bom modelo de jogo. Montar isso tudo nas equipas de base para depois a equipa profissional mostrar isso a toda a Colômbia», comenta. Matéria-prima parece não faltar ao treinador português. «O jogador colombiano tem muita qualidade individual. Têm alguns defeitos, mas têm muita qualidade que procuramos potencializar de forma coletiva, em benefício da equipa. É mais ou menos isso que queremos», acrescenta.

Os jornais colombianos referiam-se a Pedro como uma solução de recurso, como interino, insistiam que tinha chegado só para terminar o Torneio de Abertura, até maio, e que depois chegaria uma nova equipa técnica. No entanto, a direção já veio a público anunciar que Pedro Felício Santos vai continuar, pelo menos, até dezembro, e vai estar a orientar a equipa que vai disputar o Torneio Clausura que começa já em junho. «Este é um projeto a longo prazo e de nada serviria afastarmos os portugueses para vir outro treinador. Vão ficar até dezembro. Eles têm uma ideia clara de jogo. Em tão pouco tempo, a equipa está a jogar bom futebol. Esperamos que com a pré-temporada e com a continuidade, os jogadores estejam mais consolidados», referiu Hárold Lozano, antigo jogador e atual diretor desportivo do America Cali, depois do último jogo do Torneio de Abertura. «Vamos ficar até ao final do ano. É um voto de confiança da direção, gostaram do trabalho que desenvolvemos na base e na equipa profissional e vamos seguir. A ideia que estávamos aqui a prazo foi uma ideia quisemos transmitir cá para fora. Nós, no fundo, queríamos manter-nos até dezembro», conta Pedro ao nosso jornal.

O America é um clube enorme, com milhões de adeptos, muitos deles exigentes, mas para já Pedro e os seus companheiros têm sido acarinhados. «O América tem 7 milhões de hinchas na Colômbia. É um clube assustador, é um clube grande mesmo. Agora está a passar uma fase mais complicada. A maioria dos adeptos nas ruas vem ter connosco e dizem-nos obrigado por tudo, vamos seguir por este caminho. Gostam muito do futebol que a gente está a praticar, que é um futebol com muita posse de bola, com muita pressão. Eles aqui adoram futebol e estão a gostar muito daquilo que a gente fez», destaca o «tranquillo» Pedro.

«Cali é como uma aldeia gigante»

Cali, aos olhos dos europeus, continua a ter uma forte ligação ao crime e ao narcotráfico, mas Pedro Felício Santos transmite uma imagem bem diferente de Santiago de Cali, a terceira maior cidade da Colômbia, encravada entre a cordilheira dos Andes e o rio Cauca. «É uma cidade fantástica, muito acolhedora, é como se fosse uma aldeia grande, uma aldeia gigante. Os prédios são todos baixinhos, o clima é fantástico, as pessoas na rua são muito simpáticas. Vêm ter connosco, falam, estão muito gratas pelo trabalho que estamos a fazer. Têm muita esperança no futuro, com este tipo de futebol. Os jogadores também nos receberam muito bem, temos jogadores que já treinaram na Europa e receberam-nos muito bem», conta.

O plantel do America é composto por um misto de jogadores veteranos, alguns com experiência europeia, e outros muito jovens, acabados de sair da formação. «Temos vários jogadores bons, com muito potencial. São projetos de jogadores, temos de trabalhar bem, com objetivos a longo prazo, e, aos poucos, ir lançando-os na equipa principal para serem potencializados».

Pedro Felício está na Colômbia desde outubro e em Cali desde abril. «Estamos bem integrados, gostamos de estar aqui. Queremos desenvolver um bom projeto, tanto no futebol profissional, como no futebol de base, que é muito importante. Isto é uma mina de jogadores, tem muitos talentos individualizados. Têm é de ser potencializados com treino de alto nível, com treinos bem estruturados», destaca, referindo também as boas condições de trabalho que encontrou no America. «As condições de trabalho são fantásticas. Temos um centro de estágios, com três campos de relva fina, temos todas as condições. Claro que não está ao nível da Europa, nem do Benfica, Sporting ou FC Porto, nisso ainda estão um pouco atrasados, precisam de mais investimento, mas tenho condições boas para fazer um bom projeto e um segundo torneio com nível», acrescenta.

Pedro vai agora aproveitar a pausa entre os dois torneios que dividem a época na Colômbia, Apertura e Clausura, para dar um saltinho até Portugal, para umas curtas férias, mas volta logo a seguir para preparar a sua primeira pré-época, uma vez que o Torneio Clausura arrranca já a 10 de junho. «Agora vamos começar o segundo torneio mais à nossa imagem, vamos entrar com muito mais ambições. Queremos ficar nos oito primeiros lugares e ir aos quartos de final. O America é um clube muito grande, tem de trabalhar sempre com o objetivo dos oito primeiros lugares. É isso que queremos», conta ainda o «tranquillo» Pedrito de Portugal desde Cali.

Artigo original: 14/05, 10h40