Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

Seyoisfjorour. O mais certo é nunca ter ouvido falar nesta aldeia de 700 habitantes, mas, pelo nome, talvez desconfie que se situa na Islândia. E é precisamente no leste da Islândia que pode encontrar aquela que durante uma temporada foi a casa de Ivan Silva enquanto jogou no IF Huginn.

Aos 25 anos, o lateral mudou-se para esta pequena comunidade onde a população é como uma grande família, não há polícia, mas também não há muito o que fazer. Longe do solarengo Algarve natal, viveu um verão com «dois ou três dias de sol» e acompanhou de perto o entusiasmo dos islandeses num europeu em que os vikings foram a sensação.

«Chaves dentro dos carros, casas todas abertas»

Ivan Silva estava no Castrense, formação alentejana do Campeonato de Portugal, quando chegou a proposta para sair para a Islândia e juntou-se a fome com a vontade de comer porque a sua intenção já era sair.

«Tive alguns problemas com a equipa no mercado de janeiro, porque tinha propostas melhores para sair, mas não me deixaram», contou ao Maisfutebol. «Em abril surgiram alguns contactos para jogar na Escandinávia, Noruega e Islândia, cujos campeonatos começavam em abril e maio. Vi ali uma oportunidade», explicou.

Seyoisfjorour

A proposta do IF Huginn, da segunda divisão da Islândia, chegou por intermédio de um treinador com quem tinha trabalhado na Noruega. «Foi ele quem me apresentou a este treinador que precisava de jogadores para a equipa. E como confiava nele, falei com o tal treinador. Expliquei-lhe os meus medos. Disse-lhe que era uma mudança para muito longe, que as pessoas tinham que ser sérias, e ele pareceu-me ser uma pessoa fiável e eu decidir ir para a Islândia», recordou. «Já não estava muito bem aqui no clube e foi mesmo uma mudança perfeita para mim».

O facto de já ter jogado dois anos na Noruega, outro país escandinavo, tranquilizou-o. «Identifico-me um pouco com a cultura deles e por isso não tive muito medo». Só que a realidade em Seyoisfjorour era bastante diferente do que esperava, e pouco tinha a ver com a agitação de Oslo, onde tinha vivido na Noruega.

«A Islândia é um país com poucos habitantes e a capital, Reiquiavique, é onde há um bocadinho mais de movimento. Eu estava a 500 quilómetros e era um sítio muito remoto. Uma aldeia pequena, que se alimentava sobretudo de caça e pesca, com uma população muito unida», contou.

«Eu chamo àquilo uma comunidade. Toda a gente dizia que eram todos primos e tios… tudo família. Todos se entendem naquela comunidade. Raramente vi polícia. Onde vivi não vi nenhum e não fazia falta. As pessoas são muito pacíficas. As chaves estão dentro dos carros, as casas estão todas abertas. Muito diferente do que eu estava habituado», explicou.

«O treinador confidenciou-me que na época anterior tinha estado um jogador lituano e um dia numa festa desapareceu um computador onde estava a música. E, apesar de ele não ter admitido e não terem conseguido provar, chegaram todos à conclusão de que foi a lituano a roubar porque não se lembram de alguma vez ter acontecido nenhum roubo. Nunca conseguiram encontrar o computador nas coisas dele e então diziam que ele o tinha enterrado ou deitado ao mar porque toda a gente se conhecia e não daria para sair da ilha com ele», recordou.

A comunicação não se revelou um problema. «Islandês é muito complicado, mas todos falam inglês fluentemente. Não conheci nenhuma pessoa que não falasse», explicou Ivan, que ainda foi falando espanhol com os dois companheiros ibéricos que tinha no clube.

Um verão com «dois, três dias de sol

Na Islândia, a pré-época começa em fevereiro e vai até maio. «Nesse período ainda é muito frio e não são todas as equipas que levam os estrangeiros logo de início. Começam a chegar a meio de março, abril», contou Ivan Silva. E foi o caso dele, que chegou mesmo em cima do início da época.

«O campeonato é no verão… naquilo a que eles chamam verão, que não é como o nosso, entre maio e final de setembro», explicou. «No tempo em que lá estive contei dois ou três dias de sol. Mas eu já estava preparado e até pensei que seria mais frio. Na Noruega apanhei mais frio porque vivi o ano inteiro», lembrou.

«Muitas equipas têm campos sintéticos com cobertura por causa do frio. A nossa não tinha, mas nessa altura do ano o frio não é muito intenso. O pior que apanhei foi quando cheguei, uns três, quatro graus. Não era nada que não se pudesse suportar e nós treinávamos em exterior e relvado natural», garantiu.

A relva é que se mostrava mais sensível. «O treinador dizia sempre para torcermos para que a relva recuperasse rapidamente. Nos primeiros três, quatro jogos não pudemos jogar em casa e jogámos num sintético até que a relva recuperasse».

O relvado enquanto ainda não estava em condições

Ocupar os tempos livres com tarefas

«Em Seyoisfjorour não havia literalmente nada para fazer nos tempos livres», assegurou Ivan Silva. «Tirando umas festas em casa dos estrangeiros» e ver a vista «que é lindíssima», contou. «Por trás da minha casa tinha uma cascata enorme no meio de duas montanhas. Quando cheguei estava tudo branco e, de repente, em junho, ficou tudo verde. Era muito bonito».

Além disso, os jogadores ocupavam-se a trabalhar para o clube. «Os jogadores de fora podiam ganhar um extra ao fazerem tarefas no clube e sempre dava para ocupar o tempo. Por exemplo, quando o treinador ia fora ver um jogo de outra equipa, era preciso alguém para fazer anotações. Às vezes era preciso ficar algumas horas na receção do ginásio, que era aberto. De resto, o tempo era passado em casa. E quando havia sol aproveitávamos e íamos para a rua», disse o lateral.

«Havia muitas viagens e quase sempre de avião porque as estradas eram muito montanhosas e as deslocações eram sempre de avião e quase todas as semanas estávamos na capital, onde já havia mais que fazer», explicou.

«Não têm maldade»

No que diz respeito ao futebol, Ivan Silva encontrou «condições a nível de profissionalismo diferentes do que estava habituado». «Em termos de valores, é mais bem recompensado do que em Portugal, mas eles encaram o futebol de forma mais amadora, não estão tão desenvolvidos como nós», contou, frisando: «Não têm maldade, jogam o jogo pelo jogo».

E os adeptos? «As pessoas não interagem muito na rua, mas durante os jogos está toda a aldeia no estádio a ver e a apoiar. É um apoio fantástico».

«Chegamos a jogar numa ilha na outra ponta do país para a taça e tivemos que apanhar um voo, um barco e um autocarro no mesmo dia e quando chegamos ao jogo tínhamos tantos adeptos como a outra equipa. 150 pessoas atravessaram o país para irem ver-nos jogar. E o apoio deles era uma grande ajuda».

Adeptos

A loucura do Europeu

Ivan Silva viveu na Islândia o entusiasmo do Europeu. «Aquilo foi uma loucura. O treinador ia mandando umas bocas a dizer que iam fazer um brilharete, mas eu acho que era só para se meterem comigo e com os espanhóis».

«Algumas pessoas da aldeia já tinham ido a França ver jogos na fase de grupos e tinham regressado. Mas voltaram para ver o jogo com a Inglaterra e com a França, dos quartos de final».

Nesse jogo com a França até o plantel do IF Huginn esteve presente. «Uns dias antes, o treinador disse-nos: ‘É só para avisar que eu já comprei o bilhete e quem quiser vir comigo está convidado’. Foi uma razia na equipa. Uma coisa que acho que nunca ia acontecer em Portugal. Acho que só os estrangeiros é que ficaram. Os outros foram, e alguns sem bilhete, mas era para viverem aquele momento. Não podiam estar mais felizes», recordou Ivan.

Um entusiasmo que promete dar frutos. «Durante e depois do Europeu, os islandeses ficaram muito mais empolgados com o futebol no país e mesmo a federação pretende melhorar as infraestruturas e investir mais».

Festejos no balneário

Noruega, Angola, Grécia, e Islândia: uma carreira sempre de malas feitas

Começou cedo a aventura internacional de Ivan Silva. Com apenas 17 anos, o jogador formado no Internacional de Almancil recebeu uma proposta do Valerenga e rumou à Noruega, após o clube da capital norueguesa ter reparado nele num particular realizado num estágio no Algarve.

«Em Portugal não ganhava nada, os estudos também não andavam muito bem, por isso quando me ofereceram um contrato profissional, decidi arriscar», contou.

Com o vínculo de dois anos assinado, partiu então para Oslo. «O clube era totalmente diferente do que eu estava habituado, é uma das grandes equipas da Noruega. Em termos de futebol, foi muito bom para mim, e eu estava preparado para a mudança», recordou. Mas nem tudo foi fácil. «Só quando lá cheguei é que percebi que ia ser um pouco difícil habituar-me aos costumes deles, fazer novas amizades… era a primeira vez que saía do país».

Por isso, no final do primeiro ano, pediu para regressar a casa. «Eles perguntaram-me o que me poderia fazer mudar de ideias. Eu disse que queria ter um familiar perto e então eles ofereceram um emprego à minha irmã. Ela mudou-se para a Noruega e está lá até hoje», explicou.

A vida da irmã de Ivan continuou então na Escandinávia, mas a dele, terminado o segundo ano de contrato, voltou a ser feita em Portugal. Só que por pouco tempo.

Começou a temporada no Quarteirense, do Campeonato de Portugal, mas foram só dois, três meses até voltar a fazer as malas. Próximo destino: Angola. Aos 19 anos foi representar o Benfica de Luanda.

«Nasci em Portugal e como o meu pai é angolano, quando fui para lá jogar, pedi também nacionalidade angolana e agora tenho dupla nacionalidade. Nunca lá tinha ido e é um país muito diferente do que eu estava habituado», explicou. Foi uma temporada recheada de episódios curiosos. «Podia ficar aqui a tarde toda a contar…»

No IF Higinn

«Quatro ou cinco horas para fazer 20 quilómetros» e os «banhos de copo»

O facto de ter família que passa parte do ano em Luanda, que lhe explicou como funcionava o país, e uma casa onde podia ficar, «foi o empurrão que precisava para arriscar», mas, ainda assim, Ivan Silva admitiu: «Angola foi um choque». «É por isso que já não há quase nada que me choque nessas coisas do dia a dia».

«Eu vivia mais nos arredores e estava a 20 quilómetros do centro de treinos, mas para chegar a tempo do primeiro treino da manhã, que era às 8:00, que ainda não estava muito calor, tinha que sair de casa às 4:30. Se saísse às 5:00 ou 5:30, já me atrasava», explicou. «Assim saía de casa às 4:30, chegava lá às 5:30 e ficava a dormir no carro. Era um stress. Ao final do dia, para regressar a casa, eram quatro ou cinco horas no trânsito para fazer esses 20 quilómetros».

«Houve um dia em que estava num engarrafamento e lá, quando chove, chove a sério. Não conseguia andar para a frente, nem para trás, e nesse dia tinha levado um carrinho pequenino em vez do jipe. Com a chuva, a água começou a subir, a subir, até que começou a passar a maçaneta da porta e eu tive que sair pela janela e pôr-me em cima do capô do carro», recordou, já acompanhando o relato com gargalhadas.

«Liguei para as pessoas do clube para me virem ajudar. Mas depois era preciso pôr um cabo por baixo do meu carro para puxar e eu não queria mergulhar naquela água cheia de barro. Eles, claro, a brincarem comigo, a fazerem piadas e a chamarem-me ‘Patricinho’», contou. «Eu acho isto tudo muito engraçado porque sou uma pessoa muito positiva», explicou.

«Aconselharam-me a não partilhar muito do meu dia a dia porque não se sabia em quem se podia confiar. Mas um dia fui a casa de um colega e vi que ele tomava banho de copo, a certas alturas do dia não tinha luz… mas estava super contente com o que tinha porque outros jogadores angolanos tinham ainda menos», recordou. «Depois eu levei-o a minha casa e ele acabou por ficar lá até final da época».

Terminada essa temporada, Ivan Silva regressou novamente a Portugal, desta vez para o GD Lagoa, quando faltavam três meses para terminar a temporada, por causa das diferenças de calendário com o campeonato angolano. Chegado o mercado de verão, adivinhe-se, nova mudança de país, desta vez para jogar no Anagennisi Epanomis, da segunda divisão grega.

«Fiquei lá uma temporada e comecei a segunda, mas depois devido a vários problemas, até por causa da situação financeira do país, vim embora».

«Resolvi voltar a Portugal e queria ficar algum tempo porque as equipas portuguesas não me conheciam. Eu fazia dois, três meses e voltava a sair do país», explicou. «Joguei então no Campeonato de Portugal uma época, comecei a época seguinte noutra equipa, também do Campeonato de Portugal, e foi então que surgiu a oportunidade da Islândia.

Na Grécia

A contas com uma lesão

Mas a temporada na Escandinávia terminou mal. «Nunca tinha estado lesionado e acabei a época na Islândia com um problema no abdominal e nas virilhas, uma pubalgia que estou desde setembro a tentar debelar».

O contrato terminou em outubro e o futuro é incerto. «Curiosamente foi o ano em que tive mais e melhores ofertas, inclusive para voltar para a Islândia, mas ainda não consegui resolver. Já me passou tudo pela cabeça porque já são seis meses sem fazer o que mais gosto. E nesta altura é que vejo como as coisas são difíceis. Ando a tentar tratar-me e recuperar, até para o meu dia a dia», frisou.

«Já tive previsões de recuperação, tentei, estive quase a assinar por uma equipa, mas não me senti em condições e não os quis enganar», explicou.

Apesar de admitir que «a família, é o ponto mais complicado de sair do país com esta idade», até porque, apesar de ter «namorada de longa data», foi «sempre sozinho», Ivan Silva não descartou fazer as malas novamente.

«Como eu tenho jogado pouco em Portugal, as equipas não têm muitas referências de mim e as que têm, os salários que praticam… lá fora consigo encontrar um salário que me agrade. Portanto, se conseguir recuperar, acredito que a opção mais viável seja voltar a sair».