Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.
 
 
O futebol asiático está a crescer e a chamar treinadores e jogadores com outra «estaleca», entre os quais alguns portugueses. 
 
Um deles, Raul Costa treinador-adjunto que chegou ao Qatar em agosto de 2016, venceu logo a Supertaça e se tornou campeão há poucos dias pelo Lekhwiya Sports Club, ao lado de Bruno Oliveira que é também adjunto de Djamel Belmadi, «roubando» o título ao Al-Sadd de Jesualdo Ferreira.
 
Depois de 16 anos no FC Porto, onde trabalhou desde as escolinhas até aos seniores e ao lado de nomes como André Villas-Boas, Vítor Pereira, Julen Lopetegui, José Peseiro e Nuno Espírito Santo, tendo começado precisamente com Jesualdo Ferreira, Raul Costa decidiu mudar de ares.
 
«Não foi fácil ao fim de tantos anos, mas quis alargar a minha experiência e sair da minha zona de conforto. Percebi que, ao fim de vários convites, seria uma boa escolha visto que o Lekhwiya é um dos melhores clubes do golfo», começou por dizer ao Maisfutebol, depois do empate com o Al-Shahaniya (2-2) e já com o título de campeão na mão.
 
 
«Por vezes há 50-100 pessoas a ver os jogos, algumas até pagas para apoiar»
 
Depois de alguns meses, o treinador diz-se satisfeito com a opção e garante que o futebol no Qatar não é tão básico como quem não o vê teima em achar: «Nada disso, embora não seja uma Liga atrativa.»
 
«Tal como qualquer campeonato do mundo, tem equipas com um futebol muito elementar e outras com um futebol muito atraente, com qualidade e com o seu grau de dificuldade. A diferença pontual entre os primeiros classificados comprova isso mesmo: é muito competitiva e difícil de ganhar.»
 
Mas, é certo, ainda tem muito para crescer. Segundo Raul Costa, «há jogadores em alguns clubes, não no Lekhwiya, que não encaram o futebol como uma opção profissional, chegam atrasados ou não vão aos treinos» e, por exemplo, «por vezes estão 50 a 100 pessoas a ver os jogos, algumas até pagas para apoiar a equipa». Algo que em Portugal não acontece e a que o treinador não estava habituado: «Foi um choque para mim esta realidade. Parte da emoção do futebol vem do apoio dos adeptos e, sem eles, falta mesmo qualquer coisa.»
 
Só que não é tudo, Raul Costa admite também que no FC Porto tinha tudo e agora a realidade é outra: «No início não foi fácil. Vim de um clube como o FC Porto, super profissional, super organizado, no qual o detalhe faz parte do dia a dia. Aqui não encontrei essa organização e, no início, claro que não foi fácil. Também tive as minhas batalhas, mas aos poucos vamos tentando mudar rotinas, vamos tentando que o Lekhwiya seja cada dia mais forte, mais profissional do que os outros.»
 
Ainda assim, falando mais sobre a sua equipa, o técnico diz que há qualidade e jogadores que poderiam perfeitamente jogar na Europa, «nos três grandes de Portugal ou até numa Liga mais competitiva»: «Nam Tae-Hee (Coreia do Sul), Youssef Msakni (Tunísia), Ismail Mohammad (naturalizado Qatar), Luiz Mairton Ceará (naturalizado Qatar) e o Youssef El-Arabi (Marrocos, ex-Granada).»
 
O preparador físico com o filho após a conquista do campeonato do Qatar
«Vive-se a um ritmo lento e a sensação de segurança é incrível»
 
Natural de Vila Nova de Cerveira, Raul Costa encontrou obviamente também diferenças a nível cultural e gastronómico, mas diz-se completamente integrado: «Há aspetos religiosos e culturais a nível de hábitos diários, vestuário, horários, entre outros que, ao fim de umas semanas, já não nos causam qualquer estranheza e só temos de respeitar.»
 
«Se excetuarmos a pressa que se vê nos condutores na estrada, vive-se aqui num ritmo até bem lento, a aproveitar a companhia da família, dos amigos, da comida, das paisagens e do bom tempo.»
 
«A sensação de segurança é incrível, não preciso de estar com 30 olhos em cima do meu filho se estivermos numa esplanada ou em qualquer lugar da rua. Posso abandonar a carteira ou o telemóvel numa mesa de café para fazer qualquer coisa e, quando volto, continuam lá. Posso deixar o carro com o motor ligado por causa do ar condicionado enquanto vou buscar o meu filho à escola, com a certeza absoluta de que não vai desaparecer», acrescentou ainda e alertando para uma realidade que por cá, nem mesmo no Porto, uma cidade até tranquila, acontecia.
 
Há saudades da família, da gastronomia e da vida em Portugal, mas Raul Costa diz que conhecer portugueses ajuda a ultrapassar isso e até já se sentiu em casa numa situação caricata.
 
«Estava com a minha esposa num sítio extremamente confuso e labiríntico - o Souq Waqif - à procura de um restaurante. Demos voltas e voltas para encontrar um e quando, já com falta de paciência, ela ligou ao Francisco, um português amigo nosso aqui no Qatar, para perguntar indicações, ele estava com a família a escassos metros de nós», comentou, pormenorizando: «Eram naturais da minha terra. Quatro pessoas de Vila Nova de Cerveira no mesmo sítio foi uma maravilhosa coincidência.»
 
 
Passado azul e branco e quando Atsu lhe quis comprar o gato para comer
 
A experiência asiática ainda agora começou e Raul Costa quer continuar no Qatar, mas não esquece o FC Porto. O treinador cresceu profissionalmente no emblema azul e branco e abraçou vários desafios.
 
Começou na época de 2000/2001, percorrendo vários escalões da formação, desde os sub-12 até aos sub-18, como treinador adjunto e treinador principal e foi também coordenador e monitor da escolinha Artur Baeta e escolinha do Dragão.
 
Na equipa principal esteve durante sete anos como recuperador/preparador físico, começando na última temporada de Jesualdo Ferreira, seguindo depois com André Villas-Boas, Vítor Pereira, Paulo Fonseca, Luís Castro, Julen Lopetegui, Rui Barros, José Peseiro e Nuno Espírito Santo.
 
De entre estes nomes, Raul Costa destaca três: «Todos eles me abriram horizontes e me fizeram repensar o meu trabalho em muitos aspetos, todos me puseram a experimentar aquilo que deveria ou não fazer no presente e no futuro para ter o maior êxito possível, mas saliento o professor Jesualdo Ferreira, André Villas-Boas e Vítor Pereira.»
 
«Jesualdo pela forma detalhada como orientava o exercício e os jogadores, pela forma como os corrigia. Muitos deles devem-lhe ainda hoje o sucesso que alcançaram. E André Villas-Boas e Vítor Pereira porque nesses três anos respirava-se futebol 24 horas por dia e não se andava tão preocupado com outras componentes, a não ser o jogo.» 
 
«Hoje penso que estão a dar demasiada ênfase a dados estatísticos e a outros pormenores que, na verdade, sempre trabalhámos no FC Porto, mas de forma mais invisível», justificou.
 
Já jogadores, entre dezenas de «fantásticos e muito profissionais» é mais difícil dizer quem o marcou mais, mas entre nomes como Helton, Varela, Hulk, James, Bruno Alves, Bosingwa, Alex Sandro, Moutinho, Danilo, Otamendi, Fernando Reges, Guarin, Raul Meireles ou Casemiro, Raul Costa escolhe «Lucho Gonzalez pela inteligência e liderança dentro e fora de campo; e Falcão e Jackson Martinez pela capacidade de superação, de quererem mais e melhor a cada dia e do trabalho diário meticuloso para serem melhores».
 
Raul Costa entre Rúben Neves e Iker Casillas num treino do FC Porto
Em tantos anos com as cores do FC Porto, o técnico ganhou títulos, amizades e «muitas histórias para contar, umas boas outras menos boas, algumas que se podem contar e outras que são segredo».
 
A mais engraçada foi com Cristian Atsu e mete o gato de Raul Costa no meio. «Quando viu fotografias e viu que era obeso mandou um grito e perguntou-me de quem era. Quando lhe disse que era meu, perguntou-me se lho vendia. No país dele - Gana - gato é uma das melhores iguarias e ele queria-o para comer», começou por contar.
 
«Depois disso, todos os dias me perguntava pelo gato e dizia que me dava 500 euros por ele. Num dos dias estava mais uma vez a perguntar-me por ele e quando o Maicon ouviu a conversa perguntou-lhe se a esposa também não tinha um gato de estimação, ao que ele prontamente respondeu que sim e que o comeria quando crescesse. Nova risada total.»
 
Por isso, um pouco por tudo isto, regressar ao FC Porto seria sempre de bom grado: «Voltar seria, literalmente, ouro sobre azul. Penso que o percurso que traçar cá fora me aportará, certamente, experiência e conhecimentos importantes para partilhar.»
 
Mas, agora, é tempo de viver a experiência no Qatar, que começou há poucos meses e que já tem títulos e também histórias para um dia mais tarde recordar.
 
«No aquecimento de um jogo com os exercícios já sistematizados, reparámos que um jogador de colete azul estava completamente desintegrado do exercício. Quando devia pressionar fazia campo grande e quando fazia campo grande pressionava os colegas. Nós sempre a chamá-lo à atenção, sem sucesso. Só ao final de minuto e meio, e com um raspanete de um colega com colete da cor do dele a quem roubou a bola, é que o jogador reparou que estava de colete azul e completamente desintegrado no exercício. Foi uma grande risota.»