Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

Mais de quinhentos anos depois da marcante passagem de Afonso Albuquerque por Mascate, há outro português a dar cartas no Omã. Chama-se Manuel Ramos, em Portugal é mais conhecido por Nené, e está há cinco anos no sultanato no sul da península da Arábia Saudita. Já passou por três clubes, já foi adjunto da seleção olímpica e, nesta altura está a lutar pelo título no campeonato local. Fomos conhecer a vida deste português que já é figura pública no Omã e que tem um presidente que entra pelo treino a dentro a oferecer relógios aos jogadores.

Mascate é uma cidade muito grande e populosa, flanqueada em ambos os lados por altas montanhas e a frente está perto da borda do mar; para trás, para o interior, há uma planície tão grande como a praça de Lisboa, toda coberta com panelas de sal. Aqui se encontram pomares, hortas, bosques de palmeiras com poços para regá-las por meio de noras e outros engenhos. O porto é pequeno, no feitio de uma ferradura e abrigado de todos os ventos».

Esta descrição de Mascate foi feita por Afonso de Albuquerque, em 1507, logo depois dos portugueses conquistarem a atual capital do Omã ao império persa. Um capítulo negro na história portuguesa, uma vez que depois da conquista, os portugueses massacraram a população sobrevivente, incluindo mulheres e crianças, e saquearam a cidade. Mas a verdade é que os portugueses estiveram em Mascate por quase século e meio e o dia em que saíram, a 23 de janeiro de 1650, ainda é festejado como o dia da independência do sultanato do Omã, o mais antigo estado independente da região.

Agora, mais de quinhentos anos depois de Afonso de Albuquerque, há outro português proeminente no sultanato que fica a meio caminho entre África e a Índia. Fomos conhecer o percurso de Nené Ramos que, desde muito cedo, meteu na cabeça que «quando fosse grande» queria ser treinador de futebol. «Ainda joguei à bola, mas nada de especial. Também experimentei outras modalidades, como o voleibol que, sendo natural de Esmoriz, é perfeitamente normal, mas o futebol sempre foi a minha paixão», começa por nos contar Manuel Ramos desde Salalah, a cidade do seu atual clube, o Dhofar.

O sonho do pequeno Manuel começou a ganhar forma assim que acabou o liceu e começou o curso de «Metodologia Futebol – Alto rendimento» na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. Ainda no primeiro ano do curso, tirou o curso de I grau de treinador e começou, desde logo, a trabalhar na formação do Esmoriz, na sua terra natal. «Sempre esteve na minha cabeça o que queria fazer e, felizmente, as coisas têm corrido bem». Terminada a licenciatura, Manuel Ramos seguiu, aos 23 anos, para a formação da Sanjoanense. Começou nos miúdos e acabou nos seniores. «Passei por todos os escalões menos os juvenis. Comecei nos infantis, estive lá três anos, depois dois anos nos juniores e acabei nos seniores.

Uma primeira experiência que serviu para colocar na prática tudo o que aprendeu e para ganhar estofo para o que aí vinha. «Fizemos algumas coisas engraçadas. Fomos campeões distritais com os infantis, subimos nos juniores e subimos nos seniores. Conseguimos projetar alguns miúdos, como o Gil Dias que agora está no Rio Ave. Também tivemos outros que agora estão na II Liga, como o Rúben Neves [não, não é o do FC Porto] que agora está no Salgueiros, mas também já jogou na II Liga».

Terminado o vínculo à Sanjoanense, Manuel Ramos decidiu tirar «uma semana sem pensar no futebol», mas o telefone tocou. Do outro lado estava Ricardo Silva, antigo colega de curso do Manuel, que já tinha sido adjunto de Erwin Sanchez no Boavista e já tinha passado pelo Vietname e Omã. Tinha um convite para Manuel ir para o Omã, «havia uma vaga para adjunto». Manuel ficou desconfiado. Não sabia bem onde era o Omã, sabia apenas que era um país muçulmano e pouco mais. Aceitou viajar até Mascate para conhecer a realidade do país, mas com uma condição. «Exigi ter um bilhete de volta para, caso as coisas não corressem bem, poder voltar. Passados cinco anos ainda tenho esse bilhete que nunca cheguei a utilizar», conta  bem-disposto. «Confesso que mesmo em termos geográficos não sabia bem para onde ia. A perceção que temos da realidade daí de Portugal, pelo que vemos na televisão, é uma realidade mascarada. Acabei por encontrar um sítio seguro, com montes de problemas de organização, mas muito seguro. As pessoas são afáveis, é possível viver-se bem aqui. Além disso, confiaram logo no meu trabalho e deram-me liberdade para trabalhar», conta.

Manuel Ramos viajou com muitas reticências, mas acabou por ser rapidamente conquistado pela amabilidade com que foi recebido e, sobretudo, pela liberdade que lhe deram para trabalhar e pelo reconhecimento dos resultados do seu trabalho. «Sempre gostei de viajar, mas para esta zona do globo foi a primeira vez. É um país muçulmano, é preciso algum cuidado. Como se costuma dizer, em Roma sê romano». Mais do que a religião, Manuel Ramos teve de se adaptar a uma cultura diferente. «Não podemos entrar num elevador com uma mulher que vá sozinha», «tudo o que vá do umbigo ao joelho é sagrado» e «toda a gente come com as mãos, apesar de haver grande preocupação com a higiene». «É preciso respeitar algumas coisas, mas é um país muito menos fechado do que aquilo que estava à espera. Consigo fazer a minha vida normal aqui, sem ninguém me estar a chatear. É preciso algum cuidado, respeitar as pessoas, mas basicamente são as regras normais de educação», reforça.

Além da amabilidade, Manuel Ramos ficou, inicialmente, surpreendido por toda a gente conhecer Portugal. «A história que eles estudam na escola tem bastantes referências a Portugal, eles conhecem Portugal. Mesmo em termos de arqueologia e arquitetura ainda há aqui alguma coisa. Existem dois fortes aqui em Mascate [os fortes gémeos Al Jalali e Al Mirani; no tempo dos portugueses, eram conhecidos como o Forte de São João e o Forte do Almirante]. E agora, há poucos meses, também foi encontrada uma nau portuguesa [um navio de 1503 que fazia parte da armada de Vasco da Gama] e eles estão a restaurá-la. Mesmo a história dos nossos Descobrimentos e do caminho para Índia são coisas que eles conhecem bem, porque também fazem parte da história deles».

Para a maioria dos portugueses, Omã é apenas um país com petróleo e muita areia, mas não é bem assim. «Há de facto muita areia, mas tem a capital, Mascate, que é muito agradável para se viver. As outras cidades são mais pequeninas, portanto, tirando o trabalho, nos dias de folga, não há realmente muita coisa para se fazer. Mas a vida de treinador também não é fácil, há sempre muitas coisas para se fazer. Estamos sempre a pensar no futebol 24 horas por dia e o tempo vai passando».

Um país em pleno desenvolvimento, mas ainda longe do poder económico dos poderosos vizinhos, como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos ou Qatar. «É um país que, em comparação com os que estão à volta, é mais pobre, mas de qualquer forma está a desenvolver-se a olhos vistos. Estou aqui há cinco anos e o país está completamente diferente do que estava quando cheguei. As pessoas também estão a mudar um bocadinho, estão a ocidentalizar-se um bocadinho, as infraestruturas estão melhores. Ainda não estão ao nível dos vizinhos, mas estão a caminhar para isso. A crise do petróleo abrandou um pouco o desenvolvimento, mas o país está a tentar crescer e está a procurar alternativas para não estar completamente dependente do petróleo», conta o nosso interlocutor.

A primeira missão de Manuel Ramos, no Omã, foi ser adjunto de Hamad Al Azzani no Al Nahda. «Cheguei na altura do calor intenso em que treinávamos de madrugada, às duas ou três da manhã, em pleno Ramadão. Foi complicado, mas eles têm três, quatro, cinco meses de muito calor, mas depois o resto do ano vive-se bem, com 25 ou 30 graus de temperatura, é uma temperatura agradável. Mas quando chega aos 50 graus é complicado». Os métodos de Manuel Ramos começaram a dar resultados imediatos. «Rapidamente deram-me liberdade em termos de treino e em termos de análise de jogo. Dessa forma fui podendo mostrar o meu trabalho. As pessoas gostaram e isso também me permitiu conhecer o que é um jogador de Omã. Há algumas coisas que fazemos em Portugal e na Europa que aqui têm que ser diferentes».

Uma das maiores dificuldades para Manuel Ramos é passar noções táticas aos jogadores. «O jogador aqui é um bocadinho mais preguiçoso, é muito menos profissional. Muitas vezes não conseguimos controlar as situações de treino, eles escondem-se demasiado. Temos de ter atenção a isso, eles estão mais habituados a coisas analíticas. A complexidade dos exercícios tem de ser muito gradual. A questão da língua e da compreensão daquilo que se pede também não é fácil. Mesmo em termos de estágio e rotinas, as regras, as horas de almoço, é tudo novo para eles».

A língua já foi um obstáculo, mas ao fim de cinco anos, Manuel Ramos já arranha o árabe. «Em ternos de linguagem do treino, já consigo falar algumas coisas em árabe, mas um dos meus adjuntos é local e faz o papel de tradutor no treino. Também é treinador, mas a sua grande função é assegurar, em termos de comunicação, aquilo que quero passar aos jogadores». Na segunda temporada no Al Nahda, Hamad Al Azzani foi convidado para treinar a seleção olímpica e fez questão de levar o adjunto português. «Fui também como adjunto do mesmo treinador. Tinhamos feito uma grande temporada, fomos campeões, fomos à final da taça e fomos às meias-finais da UAFA Cup, a Liga Europa lá do sítio. Depois fomos para a seleção olímpica e estive lá dois anos».

Uma experiência gratificante, mas o jovem Manuel Ramos precisava de mais ação. A seleção olímpica de um pequeno país, em termos de futebol, não proporciona muito trabalho e Manuel Ramos considerou que estava na altura de dar o salto e de ser treinador principal. «Eles queriam renovar, mas achei que estava na minha hora. Sempre quis ser treinador principal, surgiu um projeto que me interessou e abracei o projeto».

O novo projeto era aliciante. Tinha chegado do Fanja o maior cube de Omã e campeão nacional em título. Mas a experiência foi curta. «Estive lá três meses. O Fanja tinha sido campeão no ano anterior, mas houve uma grande reestruturação na equipa. O clube tinha alguns problemas financeiros, tentámos reduzir o orçamento com uma equipa mais jovem e muito mais barata. As coisas até começaram a correr bem, mas houve ali uma altura em que os resultados não apareceram e o presidente não conseguiu resistir à pressão dos adeptos. O presidente saiu e eu saí com ele».

A primeira experiência no Omã como treinador principal não foi propriamente positiva, mas a verdade é que, nesta altura, Manuel Ramos já era reconhecido no país e, menos de um mês depois de ter deixado o Fanja já estava a trabalhar, agora mais a sul, em Salalah, a cidade do seu atual clube, o Dhofar. Em termos classificativos, Manuel Ramos está bem melhor. O Dhofar está no segundo lugar, a apenas quatro pontos do líder Al-Shabab Seeb, enquanto o campeão Fanja, com a tal equipa «mais barata», está no sexto lugar, a doze pontos do primeiro.

«O objetivo é ser campeão, estamos no segundo lugar, perdemos o último jogo e há uma grande pressão para sermos campeões. Também estamos nas meias-finais da taça, eles dão muita importância à taça porque é a Taça do Sultão, mas o clube quer é ser campeão, o que já não acontece há onze anos. Houve algum investimento este ano e eles querem dar essa satisfação aos adeptos», conta Manuel Ramos a poucos dias de defrontar o…Fanja. «A pressão é muito grande a nível externo, aqui é muito difícil blindar a equipa, toda a gente dá opiniões, em termos de organização não é fácil. Vamos defrontá-los e precisamos dos três pontos. Estamos a trabalhar para isso, mas não é fácil manter os jogadores concentrados», conta.

Nesta nova equipa, Manuel Ramos tem um internacional sírio, um jogador croata e dois pontas de lança africanos, um do Gana e outro da Tanzânia. Não há espaço para jogadores portugueses no Omã? «Já houve, tivemos cá o Edgar Marcelino, mas não é muito comum termos portugueses por aqui. Eu próprio tentei trazer alguns, mas a adaptação não é fácil. Normalmente a pré-época é na altura do calor intenso. É preciso algum tempo para um jogador conseguir adaptar-se e, como eles aqui só podem ter três estrangeiros [quatro mas um tem de ser asiático], eles não têm muita paciência para esperar. Têm de ser estrangeiros que façam logo a diferença ou então vão logo embora. Nesta altura, não é fácil um português entrar aqui», explica.

Ao fim de cinco anos, Manuel Ramos, além da seleção olímpica, já vai no terceiro clube no Omã – Al Nahda, Fanja e Dhofar. Um percurso que já lhe dá alguma notoriedade em termos de reconhecimento público. «Vamos sendo reconhecidos, mas consegue-se estar bem, não há gente a chatear de forma constante, mas há aquelas situações de virem falar, pedir uma fotografia, um autógrafo. É como na Europa, mas de forma muito mais afável até porque eles respeitam muito as hierarquias e muitos deles têm medo de chegar à figura de um treinador, porque é uma figura diferente».

Um país com muitas diferenças culturais que proporciona alguns episódios caricatos. «Há tantas histórias, mas posso contar-lhe uma que aconteceu ontem. Estávamos no treino, o presidente estava muito preocupado, a dizer que tínhamos de ganhar o próximo jogo. Já no final do treino, nos últimos vinte minutos fazemos uma situação de jogo. Nessa altura entra-me o presidente em campo, desesperado, com dois relógios na mão a dizer que a equipa que vencesse o jogo tinha direito a dois relógios. Foi a forma que o homem encontrou para tentar colocar mais intensidade no treino. Nunca me tinha acontecido na vida», destaca Manuel Ramos que, com o prolongar da conversa, já estava preocupado com a hora do treino. Até logo Manuel e boa sorte!