Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

Esta semana fomos falar com um verdadeiro «traquinas» da margem sul que, na infância, chegou a estar proibido de jogar à bola pelos pais, devido ao mau comportamento na escola, mas que acabou por convencer os progenitores que tinha nascido mesmo para jogar futebol. Começou no Cova da Piedade, passou por Almada, deu um salto para a Madeira, onde deu nas vistas no Nacional do professor Manuel Machado, com uma passagem marcante pelo Mirandela pelo meio. Agora joga no competitivo Championship, em Inglaterra, onde tenta salvar o Blackburn Rovers da despromoção e, ao mesmo tempo, dar uma mãozinha ao Sheffield Wednesday de Carlos Carvalhal com quem tem contrato e onde já teve um cântico, dedicado ao mister, mas no qual também era mencionado. Vamos percorrer o rico trajeto de um jovem avançado que tem a ambição de estar entre os eleitos de Fernando Santos para o Mundial2018.

Vamos começar pelo início e por um erro que, por tantas vezes repetido, marca o currículo de Lucas João de forma enganadora. Em quase todos os perfis que entramos de Lucas João na internet, dizem que o avançado nasceu em Luanda. Falso. «Nasci em Portugal, em Lisboa, no Hospital Dona Estefânia», começa por destacar o nosso interlocutor, com um ar enfadado. É que é uma questão que Lucas João teima em corrigir, mas ninguém lhe parece prestar atenção. Mesmo quando foi chamado pela primeira vez à Seleção Nacional, em 2015, o avançado fez questão de dizer que sempre quis representar o país onde nasceu, mas, mesmo nessa altura, foi corrigido pela comunicação social, que se referia ao estreante como tendo nascido em Luanda. «Já disse isto mais de uma vez, mas continuam a dizer que nasci em Luanda, queria simplesmente que prestassem mais atenção quando digo que nasci em Portugal. Não teria mal nenhum se tivesse nascido em Angola, os meus pais são de lá, a minha irmã mais velha também nasceu lá, mas eu e a minha irmã mais nova já nascemos em Portugal. Gostava que prestassem mais atenção e corrigissem, mas isso já vem de há muitos anos», lamenta.

Nasceu na Pontinha e começou cedo a jogar à bola. Começou na rua, entre miúdos, mas aos seis anos já estava as escolinhas do Cova da Piedade. «Bons tempos. Lembro-me de correr, correr e rir demasiado com os amigos e muitas brincadeiras», conta Lucas João, num regresso à infância em que tinha Ronaldo, o «fenómeno», e Ibrahimovic, «que ainda joga», como principais referências. «Estive lá até aos infantis, mas depois fiquei dois ou três anos sem jogar devido a mau comportamento na escola». Como assim? «A minha mãe não me deixava jogar. Tinha faltas, era rebelde na escola, fiquei proibido de jogar à bola».

Um castigo penoso para o jovem Lucas João que vivia com a bola nos pés, mas um castigo que o jovem, aliado à sua rebeldia, acabou por contornar. «A minha mãe queria que eu me focasse mais nos estudos e menos na bola, mas, nas costas dela, acabei por ir jogar para o Beira-Mar de Almada no meu segundo ano de iniciados. Fiquei lá até aos juniores de primeiro ano». A aventura no novo clube começou em segredo, mas a popularidade de Lucas João foi crescendo à medida dos golos que marcava. «Nessa altura eram golos atrás de golos». O nome de Lucas já ecoava por toda a margem sul e os pais acabaram por ir ver um jogo e conhecer um novo Lucas. «Os meus pais acabaram por consentir, desde que conciliasse com os estudos. No Almada era muito acarinhado, pela equipa que tínhamos, era um grupo de qualidade e em tudo o que era na margem sul tínhamos sucesso», recorda.

Com quinze anos, Lucas começava a abrir os olhos e a levantar a cabeça. Queria ir mais longe. Havia captações no Sporting e no Benfica e Lucas tentou a sua sorte. «Foram umas semanas loucas. Acabei por treinar numa semana num, depois outra semana noutro. Ia às captações, corriam bem, corriam mal, mas no final acabaram por não ficar comigo. No Sporting queriam que fosse participar num torneio no estrangeiro, mas na altura não pude ir. No Benfica pediram-me para voltar na época seguinte, nunca deu nada de concreto». Entre as viagens a Alcochete e Seixal, Lucas acabou por ser surpreendido à saída de um treino do Almada. «Um empresário convidou-me para ir para o Nacional. Era a única coisa que tinha de concreto. Em vez de ficar à espera, acabei por aceitar. Foi a minha primeira ilha e uma oportunidade de jogar num clube da I Liga, tinha de aproveitar», revela. Lucas João não hesitou em viajar até ao Funchal, até porque, no ano anterior, já lá tinha ido. «Isto é uma coisa que ninguém sabe, mas no ano anterior tinha estado no Marítimo. Fui lá fazer uns treinos, mas depois os clubes não se entenderam e acabei por voltar ao Almada», conta.

Lucas João chega à Choupana numa altura em que o Nacional é comandado por Ivo Vieira, mas, ainda com 18 anos, é integrado na equipa de juniores. A jovem equipa madeirense terminou o campeonato na quinta posição, naquela que é, ainda hoje, a melhor prestação de sempre na prova desde a entrada em vigor do formato atual. Além de Lucas João, que terminou a época como segundo melhor marcador da equipa com nove golos, brilharam, nessa campanha, Nuno Campos, Edgar Abreu e João Camacho. «Correu muito bem», recorda Luca em relação ao seu último ano de formação.

Na passagem para sénior, Lucas João ainda fez a pré-época com Pedro Caixinha, mas, perante a concorrência de Keita e Mário Rondon (ainda havia Eliandro), acaba por ser cedido ao Mirandela que evoluía no Campeonato de Portugal. Um passo atrás que remetia o jovem avançado do meio do Atlântico para a pequena cidade de Trás-os-Montes. Um novo choque na carreira de Lucas, rapidamente superado pela simpatia e hospitalidade com que foi recebido. «Uma grande cidade, um povo muito acolhedor. Para mim era um mundo desconhecido, não conhecia nada de Mirandela, mas depois de lá chegar foi tudo diferente. Fui muito bem recebido, a comida era espetacular». A boa receção permitiu a Lucas voltar a fazer o que sabe fazer melhor: golos. «Foi uma época que quase correu bem ao clube, ficámos muito perto da subida, e, em termos individuais, correu-me muito bem a mim. Marquei doze golos e tive a primeira oportunidade de ir à Seleção». Uma primeira chamada aos sub-20, para mais tarde progredir para os sub-21 e chegar mesmo à seleção principal. Mas já lá vamos.

No regresso à Madeira, Lucas João conhece Manuel Machado, um treinador que vai deixar uma marca bem vincada na sua carreira. «É uma excelente pessoa. No primeiro ano em que ele lá esteve, tínhamos um grupo espetacular, fui aprendendo, o mister foi-me dando confiança e as coisas corriam-me bem. No segundo foi ainda melhor, chegou o Marco Matias, tínhamos um plantel forte», recorda. Nessa primeira época, Lucas estreia-se na I Liga. «É um treinador que marca a minha carreira. Foi o primeiro que me deu oportunidade para jogar na I Liga, só por aí já é marcante. Mas também pelas palavras que me dava, pelas indicações que me ia dando, estava sempre a dar-me na cabeça. O professor teve uma grande influência na minha carreira», acrescenta. Manuel Machado destaca-se no panorama nacional, pelo discurso elaborado com que faz as análises dos jogos, com uma linguagem rebuscada, repleta de palavras caras. Também é assim que fala com os jogadores? «É igual. É um homem completamente transparente e fazia-se entender. Explicava-nos as coisas com muita calma e tinha uma linguagem que era tope. Às vezes provocava algumas risotas, mas ele não levava a mal», lembra, comentando, com alguma amargura, a atual temporada do treinador que, depois de ter sido afastado do Nacional, também foi dispensado pelo Arouca. Quem fica a perder, na visão de Lucas, são os clubes. «Vi que as coisas não lhe correram muito bem no Nacional e no Arouca. Mas uma das coisas que eles nos disse no primeiro ano, numa altura em que estávamos a obter maus resultados, no início da época, foi que nenhuma equipa com ele tinha descido. Foi a isso que nos agarrámos e depois espevitámos. Estivemos quase a ir à Liga Europa», recorda.

No primeiro ano como sénior no Nacional, Lucas soma os primeiros minutos, mas em janeiro tem a possibilidade de rumar a Angola. Surgem propostas do Petro de Luanda e do Recreativo de Libolo. «Nessa altura estava a jogar pouco, o mister queria trazer novos jogadores e alguns iam ter de sair. Eu estava a jogar pouco e o clube tinha feito um grande investimento pelo Suk. Um dos dois tinha de sair. Tinha propostas para ir para Angola, mas eram propostas que não me agradavam e acabei por ficar no Nacional». Uma decisão difícil, mas o futuro viria a demonstrar que foi a mais correta. Uma lesão de Suk abre as portas da titularidade a Lucas João que, a partir de janeiro, desata a marcar golos, num final de temporada que incluiu, em março, sua primeira convocatória para a Seleção A, para um particular com Cabo Verde. «O mister acabou por me dar uma oportunidade que felizmente consegui agarrar e correu bem».

Lucas João subia de patamar. Agora era internacional e as propostas que chegavam à Choupana subiam de nível. Já no arranque da pré-temporada seguinte, Lucas João recebeu a visita de Carlos Carvalhal que, em três tempos, convence-o a mudar-se para Sheffield. O projeto do histórico clube inglês era o rápido regresso à Premier League. Lucas João apanhou o avião e aterrou num mundo novo. Depois de Almada, Funchal e Mirandela, Lucas João cheirava a Premier League. «Senti logo que era um clube grande, só pelo facto de andar na rua e as pessoas virem ter comigo para me cumprimentar, pedir autógrafos, sélfies e coisas do género. Logo aí vi que não era um clube pequeno e, depois de ver os primeiros jogos e de entrar nos primeiros jogos, já não tinha dúvidas. O Sheffield tem uma massa associativa enorme».

Estádios cheios não eram propriamente uma novidade para Lucas, que já tinha jogado na Luz, no Dragão e em Alvalade, mas estádios cheios todas as semanas era definitivamente algo de novo. «Ali é em todos os jogos, seja contra o último ou contra o primeiro, o estádio está sempre cheio. Isso também é importante, quando mais apoio um jogador tem, mas confiante se sente». Lucas João, numa equipa que contava ainda com José Semedo e Marco Matias, partiu para uma época empolgante. Depois dos primeiros sucessos e dos primeiros golos, o jovem avançado é surpreendido por um cântico que era dirigido ao treinador Carlos Carvalhal, mas que também fazia referência ao seu nome. «Eu acho que começou num jogo em Bristol em que começamos a perder e demos a volta com um golo meu. Não sei de onde é que veio a música, mas os adeptos saíram-se com ela, em que se referia a mim e ao mister. Obviamente foi uma surpresa», recorda. A letra do cântico (veja o vídeo abaixo) dizia o seguinte: «O Carlos tinha um sonho; Construir uma equipa de futebol; Não tínhamos jogadores, então tivemos de os pedir emprestados; Jogamos a partir da defesa; Com o [Lucas] João no ataque; Somos o Sheffield Wednesday, estamos a regressar [à Premier league]».

A música dava bem conta da popularidade que Carlos Carvalhal, em poucos meses, tinha conquistado em Sheffiled. «É muito popular por tudo o que tem conseguido no clube», reforça Lucas João, que fala ainda nas comparações que foram feitas com José Mourinho. «Há comparações pelo sucesso que tem e por ser português». Uma época em cheio que terminou com uma enorme desilusão. O Sheffield chegou ao play-off de promoção, mas falhou o último obstáculo para subir à Premier League. Ainda assim, é uma temporada que Lucas recorda como «muito positiva». Uma época com um golo marcante, na taça da Liga, na surpreendente vitória sobre o Arsenal de Arsene Wenger por 3-0. «Foi um golo especial não só por ser contra o Arsenal, mas porque no dia a seguir nasceu o meu filho», lembra com um sorriso sempre presente, mas agora ainda mais rasgado.

Lucas adaptou-se bem ao futebol inglês, a começar pela língua. «Já lá estou há dois anos, não posso dizer que o meu inglês seja mau, porque comunico com as pessoas, não me perco, está muito melhor», conta. Ao mesmo tempo, o avançado procura ganhar massa muscular, para fazer frente a um futebol mais físico exigente. «É um processo contínuo, não se pode fazer tudo de uma vez. Se fizer tudo muito rápido fora, depois será difícil adaptar-me dentro. Vou fazendo e tenho tido algum sucesso. Já me sinto mais preparado para enfrentar este campeonato. É preciso ter um físico muito bem preparado e descansar muito bem porque é um campeonato muito duro».

No arranque da presente temporada, Lucas João começa por marcar um golo, na Taça da Liga, mas depois fica afastado da equipa devido a um estiramento na zona abdominal inferior que o afasta da competição por três meses. Perde tempo e perde espaço no onze de Carlos Carvalhal. Em janeiro surge a possibilidade de seguir para o Blackburn Rovers, que procurava um avançado para lutar contra a despromoção. Um acordo que agradava a todas as partes, incluindo a Lucas João que queria jogar com maior regularidade. «Um jogador quer é jogar, ainda por cima eu, com a idade que tenho, mais ainda. A minha ambição passava por aí, de querer jogar». Lucas manteve a casa em Sheffield, mas foi viver para Manchester onde os Rovers lhe alugaram um apartamento. «O Blackburn é um clube com condições espetaculares, é um clube com nome, pena estar na posição em que está, mas é um nome forte em Inglaterra», conta.

De Manchester a Blackburn, são 40 minutos pela autoestrada. Ao início, Lucas João tinha receio em conduzir do lado dieito, mas agora já está habituado. «É uma questão de prestar atenção, não é muito difícil. Aqui em Portugal, uma pessoa com pressa, é capaz de te ultrapassar pela direita, mas lá é muito raro veres uma coisa assim, mesmo com pressa, as pessoas esperam e mantêm a calma», conta. Nos Rovers, Lucas João não teve vida fácil para entrar no onze. «O clube já tinha uma estrutura, já tinha um onze-base. Tive de esperar por uma oportunidade. Felizmente surgiu e as coisas estão a correr bem. Estou ali para ajudar». O Blackburn continua em zona de despromoção, mas nos últimos três jogos somou três empates com três golos e uma assistência decisiva de Lucas João. «Pode-se dizer que é o meu melhor momento desta época. Tenho aproveitado as oportunidades, felizmente está a correr bem, espero que continue. Espero fazer mais e melhor para conseguirmos o nosso objetivo. Acreditamos sempre, enquanto houver jogos e for matematicamente possível», destaca.

Três empates que ajudaram o Blackburn Rovers, mas também o Sheffield Wednesday de Carlos Carvalhal que luta para manter o sexto e último lugar que dá acesso ao play-off de promoção à Premier League, uma vez que a equipa de Lucas travou os mais diretos perseguidores do Sheffield. Primeiro empataram com o Norwich (2-2), com dois golos de Lucas, depois com o Fulham (2-2), com mais um golo de Lucas nos descontos, e depois ainda com o Preston North End (2-2), desta feita com uma espetacular assistência do avançado português mesmo a acabar o jogo.

«Foi um dois-em-um: poder ajudar a equipa onde estou atualmente e a equipa com quem tenho contrato». Carlos Carvalhal, que nesta sequência, somou apenas um ponto, agradeceu o apoio de Lucas. «Não me ligou. Obviamente acredito que o mister esteja atento, mas acabou por me mandar uma mensagem. O Sheffield está numa fase em que as coisas estão a correr menos bem, mas se puder ajudar o Blackburn e o Sheffield, irei ajudar».

A verdade é que tanto o Blackburn como o Sheffield têm ainda o futuro indefinido e, por arrasto, Lucas João também não sabe onde vai jogar na próxima época. «O meu único objetivo para já é fazer melhor do que a época passada. Acho que é assim que uma pessoa tem de pensar. No final da época tenho de voltar ao clube com quem tenho contrato. Vou ter de lá estar na pré-época, fazer o que sei, depois cabe ao mister decidir».

Mas é óbvio que o ideal era Lucas João voltar ao Sheffield para jogar na Premier League. «É um desejo meu e de toda a gente que joga no Champioship. Ainda não é altura de pensar nisso. Estamos a lutar pela permanência e, enquanto houver esperança, temos de estar focados nisso. O resto vem depois», conta ainda.

Lucas João, seja com que camisola for, quer fazer uma grande temporada para a próxima época de forma a voltar a merecer a confiança de Fernando Santos que já o tinha chamado para três jogos [além de Cabo Verde, foi chamado para os jogos com Rússia e Luxemburgo]. Numa temporada que vai ditar quem vai ao Mundial2018, na Rússia, Lucas João promete dar o máximo para convencer o selecionador a dar-lhe nova oportunidade. «Voltar à seleção é um grande objetivo, defender o meu país passa por isso. Tenho de trabalhar, recuperar o tempo perdido e quero ser mais uma opção para ajudar a defender as cores nacionais. Vai ser uma época muito importante. Espero que me corra bem, espero lá estar. Jogar um Mundial é o expoente máximo de uma carreira», destaca.

Portugal vai chegar ao Campeonato do Mundo com o estatuto de Campeão da Europa, mas continua com poucas alternativas para o ataque. Lucas João diz que não é bem assim. «Se formos ver, os avançados que lá estão fazem bastantes golos. É uma questão de oportunidade, estar no sitio certo, ter um pouco mais de sorte, porque os avançados que temos em Portugal são avançados de grande qualidade», destaca ainda.

Um miúdo traquinas feito homem e que, aos 23 anos, tem ainda o mundo pela frente. Ambição e vontade não lhe faltam.