Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

Manuel Fernandes conquistou a segunda Taça da Rússia esta temporada ao serviço do Lokomotiv Moscovo, depois de já ter conquistado outras taças na Turquia (Besiktas), Espanha (Valencia) e Portugal (Benfica) onde, diga-se, também foi campeão em tempos bem mais difíceis do que nos dias de hoje em que o clube da Luz celebra o «Tetra».

Um jogador que andou ali na corda bamba entre uma carreira proeminente e a queda num vazio sem fundo. Acabou por encontrar um equilíbrio a leste, primeiro em Istambul, agora em Moscovo onde está nomeado para a eleição de melhor jogador da liga russa.

A um ano do Campeonato do Mundo fomos ao encontro de um médio que contribuiu para que Portugal estivesse em quatro fases finais, mas acabou por não jogar nenhuma. Um jogador que chegou a ter a ilusão de ter um papel mais proeminente na seleção, mas que, aos 31 anos, diz que «a melhor oportunidade já passou». O internacional português falou sobre tudo. Desde o primeiro treino no Sporting, os tempos com Koeman - «uma pessoa rancorosa» - até à amargura que teve com Paulo Bento. 

Esta é a primeira parte, na qual o médio fala da nova vida na Rússia, que vai receber a Taça das Confederações no próximo mês. Pode ler sobre os antigos clubes de Manuel Fernandes aqui e sobre a seleção neste artigo.

Encontrámos um Manuel Fernandes espirituoso, satisfeito consigo próprio e, acima de tudo, com sentido de dever cumprido. Mesmo poucas horas depois de ter perdido em casa diante do Zenit de Neto e de Danny [belo golo a fechar a temporada, por sinal], e ainda a menos horas de embarcar, de férias, rumo a Portugal. Encontrámos um Manuel Fernandes satisfeito, solto, desinibido e, repetimos, satisfeito consigo próprio. Num ano em que, no futebol russo, Moscovo voltou a falar mais alto do que São Petersburgo, com o Spartak a suceder ao CSKA como campeão e o Dínamo a regressar ao primeiro escalão, o Lokomotiv de Manuel Fernandes conquistou a Taça da Rússia e a inerente qualificação para a Liga Europa. Dever cumprido, apesar de um modesto oitavo lugar no campeonato.

«Foi uma época difícil. Conseguimos salvar a temporada com a vitória na Taça porque, se não fosse isso, com o orçamento que tínhamos, com um oitavo lugar ficávamos aquém das expetativas. Pelo menos conseguimos a qualificação para a Liga Europa que é algo muito importante para o clube», começa por nos contar o nosso interlocutor, ao início da noite em Lisboa, mais duas horas em Moscovo. Mais importante do que o título, para Manuel Fernandes, foi a possibilidade de voltar a jogar com liberdade, depois de uma época atípica em que tinha somado mais jogos na Liga Europa do que na liga russa, por meros motivos contratuais.

«Foi uma situação de bastidores com a antiga direção, só por isso é que não tive oportunidade de jogar com regularidade na época passada. Nunca me deram uma explicação, tinham lá as teorias deles, mas nunca me pareceu que quisessem resolver. Se quisessem resolver o problema tinham falado comigo e tínhamos posto de lado qualquer mal-estar que pudesse existir. Como não quiseram, foi uma situação chata porque, na altura, tinha mais três anos de contato com o clube e por algum motivo não queriam que eu ficasse. Não houve consenso e há conta disso acabei por jogar muito pouco. Tirando os jogos da Liga Europa, não competi quase nada. Foi um bocado chato, por mais que respeite as decisões das pessoas, queria era jogar».

Um conflito que levou a que Manuel Fernandes realizasse uma época atípica em 2015/16 com apenas quatro jogos na liga russa e quase o dobro na Liga Europa (7 jogos). Poucos jogos, mas bons, porque o caprichoso sorteio da UEFA colocou no caminho do Lokomotiv o Sporting, o primeiro clube de Manuel Fernandes [já lá vamos…], e o Besiktas, o último antes da aventura russa. «Por acaso saiu um grupo curioso. Saiu o Besiktas, tinha saído de lá há um ano e estava a jogar com eles outra vez, além do Sporting que era uma equipa portuguesa. Achei super-curioso». O Lokomotiv venceu na primeira jornada em Alvalade por 3-1 e acabou em primeiro do grupo, com onze pontos, enquanto o Sporting foi vencer a Moscovo (4-2) e ficou em segundo, com dez pontos. O Besiktas ficou pelo caminho. «Acabámos por conseguir passar, com um bocado de sorte à mistura, mas lá conseguimos», recorda.

Conflito sanado, Manuel Fernandes voltou a jogar com regularidade esta época e a ganhar preponderância no Lokomotiv e no campeonato russo, estando, inclusive, selecionado para a eleição do melhor jogador da liga. «Felizmente este ano as coisas voltaram à regularidade, tive a oportunidade de fazer as coisas bem. O mais importante foi ter uma continuidade, ter a possibilidade de competir todos os fins-de-semana. No ano anterior não tive essa possibilidade. Basicamente é poder lutar pelo meu lugar e de mostrar que tenho capacidade para poder jogar e ajudar a equipa», contou.

A verdade é que Manuel Fernandes não só recuperou a titularidade, como também o estatuto na equipa, conseguindo impor a sua forte personalidade em campo, como aliás já o tinha feito no Besiktas. «É verdade, foi difícil, demorou o seu tempo, mas consegui. Andei a treinar à parte com a segunda equipa, mas para meu bem e da equipa fui voltando. Nos últimos dois meses tive esse sentimento, as boas exibições vieram umas atrás das outras e isso foi-me dando confiança. Não acabámos o campeonato da melhor forma possível porque perdemos, mas a nível geral a época foi boa», avalia. Manuel Fernandes somou 27 jogos na liga russa e marcou sete golos [mais três na taça], alguns deles bem vistosos e outros decisivos, como aquele, na meia-final da Taça da Rússia, frente ao Ufa (1-0), que acabou por abrir caminho para a salvação da época do Lokomotiv. «Esse foi definitivamente o golo mais importante, porque foi um jogo difícil diante de uma equipa que defende muito bem. Não queríamos ir a penaltis, foi um jogo muito fechado a meio-campo, com poucas oportunidades de golo. Por isso é que digo que foi o golo mais importante», recorda.

«Falso extremo» na final da Taça

Um golo que valeu a qualificação para a final onde o Lokomotiv fez a festa com uma vitória por 2-0 sobre o FK Ural, num jogo que ficou fechado com um passe de Manuel Fernandes para o segundo golo em tempo de compensação. «Não foi bem uma assistência, vi um colega dentro da área, meti-lhe a bola, mas ele depois fez o resto, acabou ainda por driblar um adversário e depois é que chutou. Mas consegui encontrá-lo numa situação difícil», recorda o nosso interlocutor, num jogo em que jogou mais deslocado para uma das alas. Nova faceta? «No último mês e meio tenho jogado mais encostado à linha, mas pode-se dizer que sou um falso extremo. Cumpro com as minhas obrigações como extremo a defender, mas depois para atacar tento jogar entre linhas para ter mais possibilidades de jogar no um-para-um ou procurar mais situações de remate».

Na etapa final da época, entre abril e maio, Manuel Fernandes marcou cinco golos e fez outras tantas assistências. «Dentro do nosso esquema de jogo, a mudança de posição acabou por ser boa porque passei a jogar numa zona onde não há tantos jogadores, onde o campo não está tão congestionado. Tenho a oportunidade de ter bola sem ter tantos adversários à minha volta e posso tentar dribles, cruzamentos ou fazer aquele último passe. Tento jogar mais próximo do último terço», conta.

O Lokomotiv chega ao final da taça, já com o campeonato comprometido, com os vizinhos Spartak e CSKA, além do Zenit, bem longe no topo da classificação. «Foi o jogo mais importante da temporada. Sabíamos que valia a entrada direta na Liga Europa, sabendo que na altura já estávamos completamente arredados do campeonato. Vínhamos de três resultados negativos e a final da Taça acabou por nos aliviar um pouco». O momento mais importante da temporada do Lokomotiv acabou por ser abafado pela enorme confusão no relvado já perto do final do jogo, já depois do segundo golo do Lokomotiv. Tudo começa com uma agressão a Manuel Fernandes, seguindo-se a consequente reação dos companheiros, acabando com duas expulsões para cada lado. Feio, muito feio.

«Infelizmente começou comigo, depois lá se montou uma carambola de situações pouco agradáveis. Acabou um bocado por tirar um pouco importância à nossa vitória e ao facto de termos sido muito superiores à equipa rival. Fico-me com a boa exibição da equipa e a minha exibição a nível pessoal», recorda.

Esta foi a segunda taça conquistada por Manuel Fernandes em três anos na Rússia. A primeira, dois anos antes, tinha sido contra o Kuban Krasnodar de Hugo Almeida, antigo companheiro no Besiktas e um dos melhores amigos de Manuel Fernandes. «Exatamente, ganhámos-lhes por 3-1 no prolongamento! O Hugo é, sem dúvida, um grande amigo. Criámos amizade, sobretudo, no Besiktas antes de nos irmos embora. Ainda hoje falo frequentemente com ele, temos uma excelente relação», conta.

Além das duas taças na Rússia, Manuel Fernandes já tinha conquistado uma Taça de Portugal [2003/04], ao serviço do Benfica de José Antonio Camacho [perdeu outra final no ano seguinte, com Trapattoni], uma Taça do Rei [2007/08], com o Valencia de Ronald Koeman, e ainda uma Taça da Turquia [2010/11], com o Besiktas, numa final em que também jogaram Simão Sabrosa, Hugo Almeida e Ricardo Quaresma que também marcou um golo. Manuel Fernandes tem apenas um título de campeão, no Benfica, mas conta já com cinco taças. «Acho que não tem muito a ver comigo, tem mais a ver com as equipas onde tenho jogado que, infelizmente, não têm conseguido lutar pelo campeonato, quer aqui, quer no Besiktas».

Depois de já ter jogado na liga portuguesa, na liga espanhola, Premier League e liga turca, Manuel Fernandes está há três anos na fria Rússia. Um forte contraste depois de ter «provado» o entusiasmo exacerbante que os turcos têm pelo futebol. Manuel Fernandes demorou a adaptar-se à maior frieza dos eslavos em relação à modalidade. «É um futebol diferente, temos de perceber um pouco a cultura deles que é especial. Temos de ter paciência para procurar entendê-los da melhor maneira possível porque, se não for assim, fica uma sensação de frustração e as coisas podem ficar mais complicadas».

A verdade é que, com exceção do Valencia e dos clubes ingleses, Manuel Fernandes volta a encontrar uma cidade dividida em termos clubísticos. Já tinha conhecido a rivalidade lisboeta entre os dois clubes da Segunda Circular, em Istambul passou a conhecer uma cidade com três cores [Besiktas, Galatasaray e Fenerbahçe] e, agora, em Moscovo, a cidade está dividida em quatro [Lokomotiv, Spartak, CSKA e o Dínamo, este último já com regresso garantido ao primeiro escalão]. «Sim, o Dínamo foi campeão na II Divisão e está de volta. Ótimo, são menos viagens», refere. A rivalidade entre clubes existe, mas não é como no futebol português e pouco tem a ver com o turco. «Eles aqui não vêm o futebol como nós portugueses ou como é vivido na Turquia. Aqui os jogadores passam do Lokomotiv para o CSKA ou para o Spartak e fazem esse tipo de transições sem qualquer tipo de problema. Os adeptos não se incomodam assim tanto, o futebol não é o desporto-rei, nem é uma grande atração no país neste momento. Não tem nada a ver com a Turquia, lá pensam futebol 24 sobre 24 horas, até a dormir vêm futebol», conta.

Ao fim de três anos, Manuel Fernandes está completamente adaptado à Rússia e até já fala russo. «Com o turco sabia algumas palavras, mas não falava, infelizmente depois arrependi-me um bocado disso. Não conseguia ter uma conversa fluente em turco, mas com o russo é diferente, falo russo, não diria fluentemente, mas consigo manejar-me sozinho. A língua é complicada, mas é como tudo, é preciso paciência, neste caso estudar um bocadinho e ir praticando todos os dias com as pessoas à nossa volta», destacou ainda.

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