Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

No mesmo país, mas separados por quase dois mil quilómetros. Os gémeos Tiago e Rodolfo Simões são dois dos muitos treinadores portugueses a trabalhar na China. Cada um na sua academia, tentam polir talentos e formar uma nova geração de atletas no futebol chinês.

«A minha família, principalmente o meu avô, sempre trabalhou no estrangeiro. Isto já vem de família. Então nunca tivemos problemas para sair do país», começa por contar ao Maisfutebol Rodolfo, que está em Shenzhen desde novembro, a trabalhar na academia Shenzhen Football Warriors.

Tiago acabou de chegar a Pequim, para integrar a Ole Football Academy e, apesar de já ter estado dois anos em Macau, o irmão já o foi preparando para uma realidade diferente. «Macau era muito mais suave. O que lhe digo sempre é: ‘A experiência que tiveste em Macau não tem nada a ver com o que se vive aqui’», explica Rodolfo.

«Por ter estado em Macau, já estou habituado a que na China todos os dias pode haver novidades. Lá, no primeiro mês sentimos muito, mesmo havendo muitos portugueses. Ainda por cima, chegámos na altura do Natal e Ano Novo», recorda Tiago, que não experimentou esse choque nesta semana em Pequim. «China é China e tem as suas regras bastante rígidas, mas a cidade é gigantesca, cosmopolita. Acabei por não sentir tanto».

Tiago Simões no Benfica de Macau (direitos reservados)

Formado, tal como o irmão, em Gestão de Desporto no ISMAI, Tiago começou primeiro a trabalhar. Foi na época 2009/10, tinha na altura 26 anos. «Surgiu a oportunidade de ir para o Arouca com o mister Henrique Nunes e com o professor José Carlos», recorda. E agarrou essa oportunidade. Começou como treinador de guarda-redes e não mais deixou de trabalhar com os guardiões das balizas.

Mais tarde, depois de passagens pelos escalões jovens de Nogueirense, União de Lamas, e Leixões, três clubes onde trabalhou com o irmão, o reencontro com Henrique Nunes no Benfica de Macau. «Estive lá dois anos e ganhámos tudo o que havia para ganhar. No campeonato só tivemos uma derrota em duas épocas. E conseguimos o apuramento para a fase de grupos na taça AFC, equivalente à nossa Liga Europa, que está a ser disputada este ano», explica.

Os irmãos no União de Lamas (direitos reservados)

E porquê fazer as malas e rumar a oriente? «Por motivos financeiros», esclarece. Os mesmos que agora o fizeram deixar o Rio Ave, onde, desde o início da época, treinava os guarda-redes da equipa B e sub-18, para voltar a emigrar.

«Da primeira vez, como o contacto foi feito através de um amigo de infância, e como o clube (Leixões) na altura estava numa situação delicada eu nem pensei duas vezes. Ia no contexto sénior, para uma equipa bicampeã, que tinha como objetivo voltar a participar numa competição asiática… tudo isso era um estímulo», recorda.

Agora foi mais difícil a decisão. «No Rio Ave tinha condições excelentes, estava num contexto competitivo bastante interessante e gostei muito de lá trabalhar. Custaram-me muitos os últimos dias. Gostava de ter terminado a época e de os ter ajudado, mas tinha de tomar decisões», lamenta. Valores mais altos se levantaram.

«Em Portugal, os clubes acabam por não nos proporcionar a qualidade de vida que desejamos», afirma, garantindo: «Se fosse equivalente ou próximo não mudava».

Tiago no Leixões (direitos reservados)

Rodolfo, que no início da época era treinador principal dos sub-18 do Leixões, conta que nem pensou «duas vezes quando apareceu a oportunidade».

«As pessoas do clube perceberam, não dava para não perceberem. Financeiramente, Portugal e China não se podem comparar. Do Leixões para aqui, em termos de vencimento, estamos a falar de dez vezes mais, mais ou menos», conta.

Em Shenzen, Rodolfo treina crianças até aos 13 anos, na academia fundada pelo português Filipe Maia. «O clube tem três anos e neste momento temos à volta de 200 atletas», conta.

«A adaptação nos primeiros tempos não foi fácil. Saí do meu país, sozinho, apesar de ter cá outros portugueses», conta, explicando que Shenzhen lhe foi mostrando os seus encantos com o passar do tempo. «Toda a gente me diz que é das melhores cidades da China para se viver».

Rodolfo no Shenzhen Football Warriors (direitos reservados)

«Em Shenzhen não há praia como em Portugal, mas há praia, há mar, não tem a comida portuguesa, mas tem muitos sítios para comer comida estrangeira. Não é igual, mas na China nada é igual. Ainda assim, como tenho isto tudo, não sinto tanto essa falta», assegura.

O grupo de amigos que juntou também ajuda. «Tenho amigos italianos, brasileiros, chineses, um australiano», conta, revelando que dois dos amigos «agora vão de férias a Portugal».

«Quase todos os dias nos juntamos, todas as semanas fazemos jantares, de vez em quando assamos um chouriço ou comemos um queijo para lembrar a comida portuguesa», conta. É que a comida é das coisas que ainda não cativaram Rodolfo.

«É se calhar o maior problema. Hoje estou mais adaptado, mas há coisas que não como. Carne como alguma, mas não de tudo. Frango, às vezes vaca. Eu tento fazer uma alimentação mais à base de vegetais, arroz, massa... não experimento muita coisa», garante. Por exemplo?

«Onde eu moro, tem um restaurante só de cão. Dizem-me que eles são criados como as vacas, os cordeiros… só para comer. Mas para mim é impossível. Nem sequer lá passo perto. Chego a passar para o outro lado da rua. É a realidade deles, mas para mim não dá».

Rodolfo no Shenzhen Football Warriors (direitos reservados)

Tiago tem uma vida mais caseira, mas também não se mete em aventuras culinárias. «Em Macau, grande parte das vezes, fazia as refeições em restaurantes portugueses e a maioria dos produtos do dia-a-dia eram portugueses. Aqui não há restaurantes, mas temos supermercados com produtos internacionais e a maior parte das refeições acabámos por fazer em casa».

Os vários conterrâneos que encontrou na capital chinesa têm ajudado na adaptação. «Vivo com um treinador português, Rui Gaivoto, e o coordenador da academia, Ricardo Ferreira, é português. Na cidade onde estamos também tem um grupo com alguns portugueses que já conhecia, da minha terra, da Figueira da Foz, com quem eu já tinha conversado antes de vir para perceber como era a cidade», conta.

«A única dificuldade são as deslocações para os treinos. O metro está sempre lotado. E como a Academia tem vários centros na cidade, ao fim de semana às vezes temos que caminhar sete quilómetros e fazer 20 a 25 minutos (depende do centro onde damos treino) de metro, para chegar. É uma aventura», frisa. «Se estivesse sozinho e tivesse que ir para algum sítio talvez tivesse problemas porque as estações de metro são muito grandes e podia ter que mudar de linha e andar perdido».

Tiago a caminho dos treinos (direitos reservados)

Tiago ainda não se perdeu, mas o irmão já. «Foi logo quando cá cheguei. Um dia vinha do treino, era de noite, e não tinha bateria no telemóvel e perdi-me a caminho de casa. Não estava longe, mas não conseguia encontrar o caminho. Andava para um lado e para o outro até que encontrei um polícia. Ele não falava inglês. Disse-me para esperar, mandou-me sentar na mota e trouxe-me para perto de casa, e eu lá consegui encontrar o prédio», recorda Rodolfo.

Agora garante que já não acontece, até porque também já tem mais familiaridade com o mandarim. «Já percebo algumas coisas e no treino falo o essencial para explicar alguns exercícios, mandar parar, mandar beber água».

E no trabalho, que dificuldades encontraram? «Na China não se aposta muito no treino específico», conta Tiago, treinador de guarda-redes, que na academia trabalha com atletas entre os 6 e os 15 anos. «Estão a tentar mudar um pouco o paradigma, por isso cada vez mais contratam europeus. Vai ser um desafio bastante grande os atletas conseguirem perceber as ideias e a metodologia que vou tentar implementar, porque não são culturalmente evoluídos a esse ponto, mas com trabalho espero conseguir», frisa. «Já tive esse desafio em Macau porque ajudei nas escolinhas do Benfica e as coisas correram benzinho. Vamos esperar que aqui também corram».

Os irmãos no União de Lamas (direitos reservados)

Para Rodolfo, o obstáculo maior é cultural. «Eles não acham que vão ser jogadores de futebol, bem, alguns acharão, mas geralmente não acham. Pensam: ‘Vou ali, divirto-me e se calhar daqui a dois anos estou no xadrez ou na música’».

«Temos casos de miúdos com 10 anos em que os pais dizem que agora não podem ir tantas vezes aos treinos porque têm que estudar, porque vão ser engenheiros, ou médicos. Têm 10 anos, são crianças, têm que se divertir», conta, lembrando que essa preocupação com o lado académico é tal que, «se houver um feriado durante a semana, no sábado ou no domingo têm aulas».

«Se a mentalidade mudar, não digo que vá aparecer um Ronaldo ou um Messi, mas possivelmente alguns dos miúdos podiam ter algum futuro no futebol», frisa.

Por isso a academia em que trabalha tenta mostrar outra realidade aos atletas. «Em julho vamos para Barcelona com as crianças. Já fizemos um summer camp em Portugal, em Londres no ano passado, e agora vai ser Barcelona para eles perceberem a realidade da Europa. Já foram ver o Estádio da Luz e viram o Benfica, viram o Chelsea, agora vamos a Camp Nou. Não sabemos se eles vão ser jogadores, engenheiros, doutores, mas tentamos pelo menos mostrar-lhes as diferentes realidades».

Questionado sobre se está arrependido da mudança, Rodolfo Simões garante: «Não estou. E aquilo que digo a quem me pergunta como são as coisas aqui é que, se tiverem oportunidade, que venham. Pela experiência, por motivos financeiros, e porque há oportunidades que não há em mais lado nenhum».

Artigo original: 07/05, 23h50