Choveu muito naquela semana de início de abril de 1990, chuva que pairou como uma ameaça no Jamor e deu origem a uma das muitas histórias que fizeram esta história. São tantas as memórias, para quem viveu todos estes anos por dentro. Djokovic e a camisola do Benfica, a imagem religiosa que virou tradição, um troféu partido, uma aula de Marcelo Rebelo de Sousa nas bancadas, uma entrevista em campo que virou meme. Momentos para a eternidade, do court às bancadas e aos bastidores, da terra batida do Estádio Nacional ao Clube de Ténis do Estoril.

O Estoril Open tem desde 2015 uma nova vida, com o nome original e o estatuto de único torneio português do circuito ATP a fazerem a ligação histórica de 34 anos. E está de novo numa encruzilhada, para já fora do calendário para a próxima época, em negociações para o futuro. Agora vai começar a edição de 2024 da competição onde passaram os Big Three - Roger Federer, Novak Djokovic e Rafa Nadal. Onde jogaram líderes do ranking mundial e jovens que eram só promessas antes de se tornarem grandes. Onde venceu um português, João Sousa, que assinalará o fim da carreira precisamente na edição deste ano. Mais de três décadas e histórias sem fim.

Quem as conta esteve lá todos os anos, desde aquela semana do início de abril de 1990. Miguel Seabra foi árbitro na primeira edição, antes de se tornar jornalista e comentador. Agora a trabalhar na organização do evento, responsável por exemplo pelas entrevistas no court, chega a uma conclusão, no início da conversa com o Maisfutebol: «Acho que sou a única pessoa que esteve em todos os dias em todas as edições do Estoril Open. Incluindo qualifying.»

Pedro Keul, também a colaborar atualmente com a organização do torneio, começou a seguir o torneio ainda como espectador, antes de passar a acompanhá-lo como jornalista. Tal como Miguel Seabra, nota que o torneio que começou nesse ano no Jamor e aquele que se joga agora são diferentes, da organização ao local e à própria identidade. E guarda memórias ainda anteriores ao Estoril Open, do primeiro grande torneio internacional em solo português, em 1983. Hugo Ribeiro, igualmente jornalista e comentador, também começa por comentar precisamente como a história do ténis de topo em Portugal começa aí, nesse torneio de 1983 no Estádio Nacional. E recorda que nos anos 90 também o torneio da Maia teve duas edições integradas no circuito ATP. Além de Portugal ter chegado a receber um Masters, hoje ATP Finals, em 2000.

As memórias passam também por aí, mas focam-se no Estoril Open. Nas escolhas de cada um deles há grandes momentos desportivos, histórias caricatas ou sensações mais pessoais. Juntas, fazem uma grande viagem.

Miguel Seabra

A chuva e a tradição desde a primeira semana

Logo na primeira edição, o primeiro grande impacto foi uma semana muito chuvosa. Era mais ou menos esta semana, final de março. O 1 de abril calhava sempre em cima do torneio, até me lembro de haver piadas e nós mesmo na rádio inventávamos coisas que tinham a ver com o 1 de abril. Dizíamos por exemplo que o Estoril Open ia ser promovido a Grand Slam… Na primeira edição choveu muito e passados os primeiros dias aquilo estava a assumir quase foros de catástrofe. Lembro-me que o João Lagos pôs uma imagem de Nossa Senhora num dos topos do court e as coisas melhoraram. Isto foi logo na primeira edição. E depois ficou lá. Ficou uma tradição.

Nuno Marques até aos quartos

O trajeto do Nuno Marques até aos quartos de final de 1995 foi muito entusiasmante, porque ele começou por ganhar ao Alberto Berasategui, que era vice-campeão de Roland Garros e nº 7 mundial. Na altura foi a melhor vitória de sempre de um jogador português. O Nuno Marques tinha um jogo muito entusiasmante, galvanizou muito o público e depois perdeu com o Emílio Sanchez, também num duelo muito equilibrado. Em 1995 ganhou o Thomas Muster, que no ano seguinte ganhou o Estoril Open como nº 1 mundial.

As lágrimas de um campeão

Em 2000 aconteceu uma coisa que me marcou muito. O Carlos Moyá, que tinha sido número 1 mundial em meados de 1999, teve uma lesão muito grave nas costas, que quase lhe dava cabo da carreira. Regressou em 2000 e ganhou. E depois na conferência de imprensa após a vitória, ao recordar todos aqueles meses de incerteza em que pensava que a carreira tinha acabado, ele irrompeu num pranto. Quebrou ali emocionalmente. Nós ficámos todos sem saber o que fazer, depois começámos a bater palmas. Foi um momento muito marcante.

Um Marcelo-Portas e a génese do Masters em Portugal

Em 1998 há um almoço no Jamor entre o João Lagos e o Miranda Calha que foi um bocado o início da candidatura do Masters. O João Lagos fala com elementos do Governo na altura a dizer: ‘Estão à procura de candidaturas para o Masters e eu candidatei-me só para ver o processo de candidatura’. E eles disseram: ‘Então vamos ver isso mais de perto.' Foi o lançamento para a candidatura do Masters Cup, que foi o maior evento desportivo em Portugal antes do Euro 2004. Também há uma ocasião muito engraçada, agora que estamos aqui no meio deste ciclone político, que foi um encontro numa altura em que o Marcelo Rebelo de Sousa e o Paulo Portas andavam de candeias às avessas. Em 1999 houve um encontro entre o Marcelo Rios e o Albert Portas. Portanto, um duelo Marcelo-Portas no Estoril Open. E acho que o Marcelo até estava na bancada, ele era presença assídua.

Djokovic à Benfica em 2007, as vaias sportinguistas e Eusébio

Naquele ano o Novak Djokovic disse-me que gostava de ir ver o Benfica-Sporting. Eu disse ‘Ouvi dizer que já estava esgotado mas vou ver’. Conseguimos arranjar lugar na tribuna presidencial, na primeira fila. Apresentei-o ao Dias da Cunha, que era o presidente do Sporting, e ao Vieira, que era o presidente do Benfica. O Dias da Cunha disse: ‘Eu sei que você gosta do Benfica…’ Em cada país ele gosta da equipa de futebol que veste de vermelho, por causa do Estrela Vermelha de Belgrado. Depois, o Benfica preparou uma camisola e deu-ma para lhe entregar. Eu pendurei-a no players lounge, nem lha dei pessoalmente. Ele ia a passar, olhou, olhou outra vez e viu a camisola com o nome dele. E vestiu-a, antes de entrar para o court. Eu tinha falado com ele da importância do Benfica, que é o clube com mais apoiantes. Só que ele foi muito assobiado. No ténis há muitos sportinguistas. Ele teve muitas dificuldades em ganhar essa primeira ronda, 7-6 no terceiro set. E eu pensei, ‘Ui, esta história da camisola do Benfica ainda vai fazê-lo perder’. Mas ele conseguiu ganhar à justa. E depois disse-me: ‘Ah, pensei que toda a gente fosse do Benfica’. E eu disse-lhe que aquele era um ‘posh environment’, que em português será qualquer coisa como queque. Disse na brincadeira, não quer dizer que o Sporting não seja um clube popular. Depois ele conseguiu chegar à final e ganhou ao Gasquet. Foi a final mais jovem de sempre, um tinha 19 anos e o outro 18, creio. E foi o Eusébio a entregar o troféu. O Novak Djokovic posou com uma camisola vermelha, que era da Sérvia. Houve quem pensasse que era do Benfica, mas era da Sérvia. E depois deu uma raqueta ao Eusébio.

Federer, a vitória antes do dilúvio

Em 2008 o Roger Federer tinha tido mononucleose e tinha falhado vários meses. Eles não podem jogar todas as semanas, se não ficam rebentados quando chegam a Roland Garros. Os melhores jogadores jogam sempre os torneios de topo e nos outros aproveitam para descansar. Mas ele como precisava de rodagem veio e ganhou o torneio. Ganhou por 7-6 para ele e 2-1 para o Davydenko. O Davydenko lesionou-se nas costas e a final acabou aí. Logo depois caiu um dilúvio durante horas e horas, toda a noite. Até no dia seguinte choveu muito, portanto não sei se a final tivesse sido interrompida pela chuva e adiada para o dia seguinte se conseguiria acabar.

Frederico Gil, a final e a desconcentração

Em 2010 o Frederico Gil esteve muito perto do título. Foi um ano em que o Roger Federer também veio, só que num dia muito chuvoso foi eliminado pelo Albert Montañés, quando tinha set points para levar ao terceiro set. Enfim. Perdeu nas meias-finais. E o Frederico Gil depois jogou a final com o Montañés e chegou a ter 3-1, 4-1, mas depois desconcentrou-se. Ele depois contou-me que começou a pensar: ‘Como é que eu vou celebrar? Vou cair de joelhos? Vou-me deitar de bruços?’ Não se manteve no presente e quando acordou já o outro tinha dado a volta.

O fim no Jamor e o «milagre» do novo Estoril Open

A edição de 2014 foi a última do Estoril Open. Na altura o João Lagos quis-lhe chamar Portugal Open, para ter um nome mais abrangente. Por causa da crise, enfim, havia muita poupança, já não havia a tranquilidade que havia quando os orçamentos são maiores. Depois em 2015 foi anunciado o novo torneio, já no início de fevereiro, ou seja, já com a época em curso e a poucas semanas do arranque. Foi quase um milagre. Quando se soube que o Estoril Open tinha perdido a licença e ia sair do calendário houve um conjunto de empresários que se juntaram, houve muitas negociações com o ATP e com o apoio da Câmara de Cascais e do Millenium BCP conseguiu-se apresentar o torneio. Logo essa primeira edição foi um bom torneio, com a final entre o Richard Gasquet e o Nick Kyrgios, que na altura estava a emergir e era um fenómeno de talento.

O dia mais feliz do ténis português

Em 2018 foi a vitória do João Sousa, que talvez tenha sido o dia mais feliz do ténis português. O João Sousa começou por ganhar ao Daniil Medvedev, que hoje é campeão de títulos do Grand Slam, foi agora vice-campeão na Austrália e é um grande jogador. Depois, salva dois match points com o Pedro Sousa, um deles em que o ponto estava completamente feito, uma coisa milagrosa mesmo. Depois voltou a ganhar em três sets ao Kyle Edmund. Nas meias-finais, com o Stefanos Tsitsipas, um jogador de grande qualidade e emergente na altura, ganhou no tie break do terceiro set. Depois a final foi uma coisa… Ele estava incrivelmente preparado para a final. Logo no início espontaneamente começaram a cantar o hino e eu pensei: ‘Epá, a pressão vai ser ainda maior.’ Mas não. Quem acusou foi o Frances Tiafoe, que nunca tinha representado os Estados Unidos na Taça Davis, portanto aquilo era uma coisa completamente diferente para ele. O João Sousa estava preparado para essa pressão. Dominou aquela final, acabou com uma combinação serviço/direita e foi o dia mais feliz do ténis português, um português ganhar aquele título ATP.

Uma entrevista que virou meme

Ainda em 2018, na primeira ronda o Pedro Sousa jogou com o Gilles Simon, que era um ex-top 10. O jogo teve para aí três horas de duração, e quando o Pedro Sousa ganhou no tie break do terceiro set atirou uma bola para o ar e ficou com caibras no campo. Quando eu fui entrevistá-lo no fim ele disse: ‘Vais ter de me entrevistar comigo no chão.’ Então ele deitou-se e pôs os pés em cima da cadeira. E eu entrevistei-o. Foi uma loucura, fizeram uma série de memes. O próprio Pedro Sousa, que se retirou no final do ano passado, quando recorda os momentos altos da carreira dele fala disso. Foi uma experiência surreal, todo o estádio a rir-se. Esse pessoalmente até foi o momento mais marcante. Até porque depois, com as redes sociais, atingiu uma repercussão enorme. Foi considerada a melhor entrevista on court.

A edição «fantasmagórica» de 2021

Também foi marcante a edição de 2021. Em 2020 não houve torneio por causa da Covid e em 2021 jogou-se sem público. Foi fantasmagórico, mas também teve ténis muito bom, porque era um mano a mano puro. Não havia ruído, era só um contra um. Depois em 2022 houve também uma grande felicidade com o título do Francisco Cabral e do Nuno Borges nos pares. Também com o estádio cheio e com o Marcelo Rebelo de Sousa na bancada geral, porque ele comprou bilhete e foi para a bancada, não quis ir para o camarote. No ano passado também tivemos um excelente vencedor nesta nova era do torneio, o Casper Ruud, que era o jogador melhor classificado a jogar neste Millenium Estoril Open, de 2015 até agora. Na altura ele era vice-campeão de Roland Garros e do Open dos Estados Unidos, era nº 4 mundial. É um tipo muito inteligente. É uma espécie de Roger Federer, muito assertivo, tem sempre a palavra justa.

Pedro Keul

1990: o início, depois da recordação «boa e longínqua» de 1983

Para quem acompanhava o ténis em Portugal desde o boom nos anos 80, a oportunidade de ver alguns dos melhores tenistas do mundo era imperdível. Foi a segunda vez que aconteceu no nosso país depois de uma esporádica prova em 1983, a qual também tive o privilégio de assistir, mas que se arriscava a tornar-se numa recordação boa e longínqua. Neste primeiro Estoril Open, tive a oportunidade de ver muitos mais encontros e aprender bastante com os grandes especialistas da terra batida. E ver ao vivo, pela primeira vez, um jogador do top 10: Jay Berger.

1992: um jornalista «verdinho» e dois grandes nomes

Foi a primeira edição do torneio que cobri na condição de jornalista (ainda muito verdinho) e isso deu-me a oportunidade de ver os melhores tenistas do mundo mais de perto, em particular nas conferências de imprensa, nas quais se revelava melhor a personalidade de cada um. E logo nesse ano, pude «conviver» com dois grandes nomes: Ivan Lendl e Andres Gomez, ambos campeões de torneios do Grand Slam. Inesquecível.

1994: o concurso de prognósticos ali tão perto

Esta edição ficou-me na memória por causa de uma brincadeira. Como já era habitual, realizava-se um concurso de prognósticos entre os representantes dos media; diariamente, a organização escolhia um encontro, sobre o qual tínhamos de indicar o vencedor e, para efeitos de desempate, o número de jogos realizados e o tempo total. Pois a semana correu-me bem e, no início do derradeiro dia, estava bem posicionado para terminar no primeiro lugar. Apontei como vencedor da final Andrei Medvedev, em dois sets, o que, a acontecer, me daria a vitória final no concurso. Infelizmente, o campeão foi Carlos Costa, mas acho que nunca sofri tanto no Jamor como nesse dia, pois Medvedev desperdiçou dois match-points, no segundo set. E se concretizasse um deles, eu teria acertado no vencedor, número de jogos e falharia o tempo total por dois ou três minutos.

1995: Nuno Marques e a dupla mais famosa à FC Porto e Sporting

Ninguém acreditou quando, após o sorteio, eu defendi que Nuno Marques tinha hipóteses de vencer Alberto Berasategui, espanhol que chegava ao Jamor como número sete do ranking, muito graças à presença na final do torneio de Roland-Garros no ano anterior. E duplamente orgulhoso fiquei quando Marques se tornou no primeiro português a derrotar um top 10 e eu tive a confirmação de que já percebia umas coisas de ténis. O percurso de Marques nesse torneio foi inolvidável e terminou nos quartos-de-final – imitando João Cunha e Silva em 1992 –, diante de Emilio Sanchez, detentor de 15 títulos no circuito ATP, a quem ainda roubou um set. A aula nas bancadas dada pelo professor universitário Marcelo Rebelo de Sousa e a entrada no court dos irmãos Mike e Luke Jensen com as camisolas do FC Porto e Sporting também marcaram esta edição.

1996: o primeiro nº 1 mundial em Portugal

Foi a primeira vez que Portugal recebeu um número um mundial. Thomas Muster trouxe essa aura de campeão e revalidou o título, tornando-se no primeiro a bisar na prova portuguesa. Yvegeny Kafelnikov foi o outro top 10 presente e, embora tenha se despedido prematuramente do torneio, acabou por iniciar uma campanha na terra batida que o levaria ao título em Roland Garros, sucedendo a Muster.

2008: Federer, o momento mais alto

Pelas 12 edições anteriores, passaram pelo Estoril Open excelentes jogadores, como Tim Henman, Gustavo Kuerten, Carlos Moya, Hicham Arazi, Marcelo Rios, Juan Carlos Ferrero, David Ferrer, Nikolay Davydenko, Marat Safin, Goran Ivanisevic, Gael Monfils, Rafael Nadal, Novak Djokovic… das quais guardo muitas memórias, de dentro e fora do court. Mas a presença de Roger Federer em Portugal foi, para mim, o momento mais alto das 25 edições que decorreram no Jamor. O estádio esteve sempre cheio para ver ao vivo aquele que, na altura, já era apontado como um dos melhores de sempre. O suíço só não foi incondicionalmente apoiado quando defrontou Frederico Gil, o terceiro português a atingir os quartos-de-final no Estoril Open, depois de vencer, na segunda ronda, o emergente João Sousa e repetindo o feito de 2006. A nova geração do ténis português começava a afirmar-se e a popularidade do ténis em Portugal disparou.

2010: Gil a roubar as atenções no regresso de Federer

O regresso de Roger Federer ao rebaptizado Portugal Open poderia ter marcado esta edição, mas foi Frederico Gil a roubar as atenções ao tornar-se no primeiro tenista luso a chegar à final. Depois de um quarto-de-final emocionante com o compatriota Rui Machado, Gil embalou para final com uma vitória sobre Guillermo Garcia-Lopez, num centralito completamente cheio e ao rubro. Ao mesmo tempo, Federer desiludia na outra meia-final, mas essa derrota não teve o meu testemunho. Na memória sim, ficou a afirmação de Gil entre os melhores do mundo (chegaria a 62.º) e a demonstração da possibilidade de um português ganhar um torneio ATP; Gil perdeu o terceiro set da final por 5-7.

2015: o ano de todas as mudanças

Nas últimas das 25 edições organizadas por João Lagos no Jamor ainda pude ver outros campeões e finalistas do Grand Slam, como Juan Martin del Potro, Stan Wawrinka, Milos Raonic e Tomas Berdych. Mas 2015 registou uma dupla mudança: de cenário com a passagem para o Clube de Ténis do Estoril e sob uma organização diferente (3 Love); e da minha passagem para o outro lado, para fazer parte de uma pequena e excelente equipa, colocando um curto e anual parêntesis na minha carreira de jornalista. Recebi o inesperado convite três meses antes do seu início, quando houve a certeza que o torneio do ATP Tour iria continuar em Portugal. Foi e tem sido uma experiência inédita para mim, a qual desempenho apaixonadamente todos os anos.

2018: os sonhos que João Sousa cumpriu

Das oito edições já realizadas do agora Millennium Estoril Open, obviamente, destaco a do triunfo de João Sousa. Oito anos depois, os adeptos nacionais puderam voltar a apoiar um compatriota na final da etapa portuguesa do ATP Tour, mas Sousa até fez melhor e cumpriu o sonho de conquistar o maior torneio de ténis realizado em Portugal. O sonho dele, dos fãs e, claro, meu, que há mais de 30 anos acompanho o ténis nacional.

P.S. – Uma nota final para o torneio feminino que se realizou entre 1998 e 2014 e trouxe até nós grandes jogadoras com Anke Huber, Svetlana Kuznetsova, Victoria Azarenka, Francesca Schiavone ou Caroline Wozniacki. Das várias recordações dessas edições, a mais presente na minha memória é a final de 2006, ganha por Jie Zheng a Li Na; foi a primeira final 100% chinesa no WTA Tour.

Hugo Ribeiro

1983 e uma final de luxo, história antes da história

Começo pela final do torneio de 1983, entre o Mats Wilander e o Yannick Noah. O Wilander tem três match points e consegue ganhar. Aquilo estava completamente cheio. Dois meses depois estavam a discutir a final em Roland Garros e o Noah ganha. Não havia nenhum francês a ganhar em Roland Garros desde que o ténis se tinha tornado profissional e toda a gente falava da final de Lisboa, como tinha sido exatamente ao contrário. Foi um grande torneio e provavelmente só voltámos a ter um torneio desse nível em Portugal quando o João Lagos em 2000 trouxe o Masters a Portugal. A revolução de 1974 não tinha sido assim há tanto tempo, o ténis ainda era muito encarado como… Nem era um desporto para elite, era quase um desporto para fascistas. Embora já estivéssemos com o primeiro Governo da AD, ainda havia muito esses resquícios e de repente mostrou-se que o Estádio Nacional estava cheio, que as grandes estrelas do ténis vinham cá. No ano anterior o João Lagos tinha trazido o Bjorn Borg a Cascais, numa exibição. Em duas noites o Borg encheu o Pavilhão de Cascais, que foi icónico em concertos de música e de repente enchia-se também com o ténis. Foram momentos muito importantes para o ténis porque foram momentos fundadores. Isso deu lastro a que em 1990 tenha aparecido uma prova do ATP Tour.

João Lagos no meio da revolução no ténis internacional

Estava a haver uma revolução internacional, com a Federação de ténis a deixar de organizar o circuito mundial, que passava para uma nova entidade chamada ATP Tour. O João, que era um visionário, percebeu que os tempos estavam a mudar, que era preciso aproveitar o movimento de jogadores que queriam tomar conta do seu desporto, meteu-se no meio e trouxe uma prova para Portugal. Todo o envolvimento da equipa nessa prova foi incrível, toda a gente percebeu que estava a fazer qualquer coisa de fundador. Lembro-me de a mulher do João Lagos, a Maude Queiroz Pereira, que na altura se dizia que era a mulher mais rica do país, estar de fato-macaco a ver as montagens da publicidade e as pinturas dos painéis. Foi um ambiente muito giro.

A chuva, as lonas «caríssimas» e a imagem de Fátima

Nesse primeiro ano choveu como provavelmente nunca voltou a chover. O torneio esteve constantemente em perigo de não terminar. Ainda há três semanas o João Lagos contou-me uma coisa que eu não sabia. Ele soube poucas semanas antes de o torneio começar que a meteorologia ia estar muito má e andou a saber como se faziam aquelas lonas que tapavam os courts de terra batida, que se viam em Roland Garros e noutros torneios. Diz que foi muito difícil tentar que alguma fábrica em Portugal as fizesse, mas conseguiu. E que foram caríssimas, mas que foi dos maiores investimentos que fez na vida, se não o Open não tinha terminado. E não tinha mesmo. Veio daí a história que depois se tornou famosa de ele pintar a Nossa Senhora de Fátima no court central. Ele é muito devoto e acreditou mesmo que foi uma ajuda divina para terminar a primeira edição. Ninguém sabe o que teria acontecido com aqueles patrocinadores todos se a chuva tivesse impedido uma primeira realização e aquilo tivesse dado prejuízo. Assim foi um sucesso e foi o início de uma história lindíssima.

Bruguera e um troféu em cacos

Em 1992 há a história do Sergi Bruguera perder a final e partir o troféu em cacos. Ele depois negou, mas quem estava no balneário viu mesmo a situação. Ele ganhou o Estoril Open em 1991 e depois vinha defender o título e jogou a final com o Carlos Costa, que na altura poucos conheciam. Era uma final entre espanhóis, aquilo tinha muita tensão entre eles. O Carlos Costa, não sei porquê, teve desde o início muito apoio do público nacional, enquanto o Sergi Bruguera foi um bocadinho o mal-amado. Ele ficou furioso e quando chegou ao balneário agarrou no troféu de finalista e partiu-o. Os troféus eram Vista Alegre, eram muito bonitos. Nós levámos aquilo muito a peito por se partir uma peça da Vista Alegre. Quem estava no balneário até levou alguns pedaços como recordação.

Carlos Costa e o que tem o Estoril Open de especial

O Carlos Costa torna-se top 10 ainda em 1992 e volta a ganhar em 1994. É um dos poucos jogadores a ter ganho em dois anos e tornou-se um dos símbolos desse Estoril Open do João Lagos. Ainda hoje é amigo e é o agente e empresário do Rafael Nadal. Ninguém o conhecia, ganha aqui e depois começa uma carreira sensacional. De facto, há qualquer coisa nos torneios de ténis em Portugal, que não sendo grandes torneios - são equivalentes ao que hoje se chama ATP 250 - têm grandes campeões. O Maia Open só teve duas edições como ATP Tour e ganharam dois jogadores que eram ou vieram a ser top 10. Há qualquer coisa aqui, que tem a ver com organizações muito boas, que têm muita capacidade de perceber que jogadores, mesmo quando estão no início das suas carreiras, têm grande potencial. Se pensarmos que o Estoril Open do Estádio Nacional teve as três maiores figuras da história do ténis, é quase inconcebível. O Djokovic e o Federer até ganharam, mas o Nadal também passou por lá (em 2004). Aliás, lesionou-se lá, uma lesão grave num pé, e acabou por não ir jogar em Roland Garros.

Quando a casa veio abaixo por Nuno Marques

A primeira grande vitória de um jogador português talvez tenha sido quando o Nuno Marques ganhou ao Albert Berasategui, que era nº 7 e no ano anterior tinha chegado à final de Roland Garros. O Berasategui vem cá com essa aura de finalista de Roland Garros, tinha feito um ano incrível, e de repente apanha o Nuno Marques pela frente e perde. A casa veio abaixo. Não era a primeira vez que um português ia aos quartos, o João Cunha e Silva já tinha ido, mas também tinha tido sorte, porque havia um jogador que estava lesionado e isso facilitou. Mas ali sentiu-se que pela primeira vez havia um português com capacidade de bater o pé a grandes jogadores. Ele fez uma exibição fantástica, depois joga os quartos de final com o vencedor da primeira edição do Estoril Open, o Emilio Sanchez, e quase ganha. Houve uma movimentação nacional muito especial à volta do Nuno. Isso só voltou a viver-se com a final do Frederico Gil em 2010. O Frederico Gil esteve quase, quase a ganhar aquilo, esteve com um break à maior no terceiro set e depois perde a final com o Montañés.

A aula do professor Marcelo

Houve episódios fantásticos. O Marcelo Rebelo de Sousa, que na altura era professor universitário, pediu autorização para fazer uma aula, creio que de direito constitucional, no court central. Levou os alunos para lá e numa altura em que não havia jogos, claro, deu ali uma aula, aproveitando a bancada como um anfiteatro.

O plano especial de viagem para Thomas Muster

O Thomas Muster foi o único jogador que ganhou um torneio do ATP Tour em Portugal sendo nº1 mundial. Depois aconteceu o Masters, em que o Guga (Gustavo Kuerten) ganhou a final ao Andre Agassi e ao ganhar tornou-se número 1. Em 1996, o Thomas Muster tinha ganho Roland Garros e o Estoril Open no ano anterior. Para o convencer a vir o João Lagos teve de chegar ali a um acordo em que arranjava-lhe uma viagem privada que o levasse imediatamente de Lisboa a Monte Carlo. Envolveu uma viagem de avião e depois de helicóptero. E assim conseguiu-se trazê-lo cá.

A «romaria» e o discurso de Federer por um estádio definitivo no Jamor

Quando o Roger Federer veio em 2008 foi uma peregrinação. Já era uma super-estrela, já se percebia que ia ser o melhor jogador de todos os tempos, aquilo foi uma romaria louca. Gente da política, da sociedade, do desporto, toda a gente queria vê-lo jogar, toda a gente metia cunhas ao João Lagos para conhecê-lo. Ele depois voltou em 2010, mas aquele ano foi muito especial. Foi muito interessante ver, no discurso de campeão, sempre muito simpático, o Federer quase a reclamar para que os poderes públicos permitissem a construção de um estádio permanente no Estádio Nacional. Era a grande batalha e havia uma guerra muito grande entre o João Lagos e a Federação Portuguesa de Ténis, ambos queriam ter um estádio permanente. A Federação perdeu essa corrida, que vinha dos anos 90, quando o presidente da Federação era o Paulo de Andrade, que mais tarde foi dirigente do Sporting e depois comentador. Ele teve um projeto muito interessante de construção de um estádio permanente, que depois seria cedido durante duas semanas ao Estoril Open. O João Lagos manteve viva a hipótese. Era muito difícil, porque o nosso património nacional tem muitas dificuldades em permitir que o Estádio Nacional, que tem arquitetura do Estado Novo, possa ter ali qualquer coisa que não seja temporária. Tem havido muitas dificuldades políticas para que isso se ultrapasse e acabou por nunca ser possível. Mas foi interessante ver um jogador que já era uma estrela vir cá, perceber o drama que era um torneio que queria crescer mais e não podia, e ter esse cuidado de dizer: ‘Vocês têm aqui um grande torneio, mas isto precisa mesmo.’

João Sousa e o hino nas bancadas que intimidou Tiafoe

Da era Millenium Estoril Open não há nada comparável à vitória do João Sousa. Toda a gente tem os seus momentos do Estoril Open e eu acho que para o presidente Marcelo deve ser entrar no balneário e de repente o João Sousa sair todo molhado do chuveiro, meter uma toalha à volta da cintura e dar-lhe um aperto de mão com a mão completamente encharcada. Para mim, nem é tanto o momento da vitória. Esse é muito especial, mas a entrada do João no court e de repente o estádio, sem se saber porquê, começar a cantar o hino nacional, é um momento único. O Francis Tiafoe, na conferência de imprensa, é disso que fala. Quando entrou, começa a olhar para umas bancadas completamente cheias a cantarem uma música que ele não sabe o que é mas depois percebe que é o hino, porque está toda a gente de pé. Ele disse que não compreendia o que se passava. Ficou intimidado e diz que é muito difícil jogar contra um herói nacional de igual para igual a seguir a um momento daqueles. Foi completamente espontâneo, o público canta o hino e de alguma forma agiganta o jogador português e diminui o norte-americano, que era o grande favorito. O João ganha ao Tsitsipas, ganha ao Medvedev, ganha ao Tiafoe. Como é que foi possível ele ganhar aquilo? É um momento único. 

O «circo» com Kyrgios e Tiafoe adotado pelo público

Destes últimos anos houve momentos bonitos. O encontro em sessão noturna entre o Tiafoe e o Korda é dos melhores da história do Millenium Estoril Open. No início dos anos 90, o João Lagos tentou sessões noturnas, mas aquilo era na primeira semana de abril, era muito chuvoso, fazia muito frio, e abandonou-se a ideia. Numa das primeiras o grande Ivan Lendl, contrariado por ser colocado numa sessão noturna, foi jogar de calças de fato de treino. Os portugueses levaram muito a mal, acharam aquilo uma falta de consideração. Mas estava mesmo frio. Depois volta a haver sessões noturnas, porque o João Zilhão quis fazer a experiência e deu resultado. Houve uma que foi uma loucura, do Kyrgios com o Albert Ramos, que teve uma confusão de todo o tamanho com a arbitragem e o Albert Ramos quase a exigir que o Kyrgios fosse expulso. Não foi, ganhou e acabou por ir à final. O público estava em delírio. Se não me engano é a primeira final dele, e o público jovem, sobretudo, a aderir em massa às loucuras do Nick. Anos mais tarde o Federer a seguir a jogar com o Nick Kyrgios, também com uma situação dessas, teve uma frase muito engraçada, que foi ‘cada circo tem de ter o seu palhaço’. E eu lembrei-me logo daquele encontro no Estoril Open. Mas pela qualidade do jogo, a sessão do Tiafoe com o Korda é excecional. O Tiafoe já tinha perdido a final com o João Sousa, mas depois o público adotou-o quase como se fosse um filho da casa. Eu estava a comentar e lembro-me que não parei de gritar, foi tão bom que estava sempre aos berros. O Korda, que era favorito, esteve quase a ganhar mas perdeu. Na conferência também disse que o público foi essencial, que não compreendia porque é que num encontro entre dois americanos havia um que era quase português. Depois o Tiafoe torna-se um jogador símbolo do torneio. Ele perde a final em 2022 com o Báez, já não se aguentava nas pernas, mas viu-se que o público adotou-o. Jogava como se estivesse em casa. Ele próprio disse: ‘Eu se pudesse agarrava neste público e levava-o para os Estados Unidos, porque nunca tive um público assim.’