*Enviado-especial ao Euro 2016
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Eu estava lá, e ainda é difícil de acreditar.

Escrevo ainda em França, com o eco das buzinas nos ouvidos, a caminho de Portugal. Estou a muitos quilómetros da festa que acredito que ainda se faz por aí, anda de boca em boca nas conversas e nos debates do dia. Não é todos os dias que um país se sagra campeão da Europa. E, para Portugal, esse foi apenas um, o de ontem.

Escrevo ainda a pensar como é que os deuses do futebol deixaram que uma ideia repetida várias vezes sem que tenha tornado verdade se concretizasse por fim. A ideia de que Portugal foi sempre candidato a alguma coisa.

Tivemos gerações fantásticas desde a década de 90 e ficámos sempre aquém. Faltou-nos sempre qualquer coisa. Sofremos com o chapéu de Poborski, e os penáltis de Zidane, o poder de salto de Charisteas, os misseis de Schweinsteiger. Perdemo-nos na pressa de Batta, na irreverência coreana, no crescimento do soccer. Desperdiçámos uma oportunidade única, entrámos em depressão com a nossa própria versão de Maracanazzo, que aparentemente calha a todos.

O contraste com o passado de artistas

Já jogámos muito à bola, enormidades. Fomos classe. Levados no pé direito de Rui Costa, nas arrancadas de Figo, nos ângulos desenhados por Paulo Sousa, nas certezas de Pauleta, nos pequenos monumentos levantados por um Nuno Gomes com uma vontade enorme, nos voos de João Pinto. Tivemos Bento, Baía, Damas. Fernando Couto, Jorge Costa, absorvemos o melhor do melhor entre os melhores Ricardo Carvalho. Vibrámos com Deco. Um Maniche imparável, que marcou um golo que apenas um estádio viu. Se alguém pestanejou… A garra de Conceição, as gincanas de Futre, a esperteza de Rui Barros. E falhámos, uma vez após outra, como sempre.

Fomos os melhores do mundo que jamais ganharam alguma coisa. E aprendemos a viver com isso. Tornou-se natural, normal. Até hoje.

Havia de jurar que ouço daqui os foguetes em Lisboa. A festa ainda em Paris. Sei que existem.

Jogar bem é estar mais perto de ganhar algo. É uma daquelas regras não escritas, mas com que toda a gente concorda. E foi quando menos bem jogámos – não acho que tenha sido nojento, mas andámos longe daquela ideia que nos aproximava do joga-bonito brasileiro – que ganhámos. Quando menos expetativas tínhamos, quanto mais parecíamos incapazes de marcar, de vencer jogos, a equipa portuguesa uniu-se em torno de si mesma e levou o caneco para casa. Com um jogo ganho em 90 minutos, dois no prolongamento e um nos penáltis. E três empates.

Convencer todos os jogadores foi o primeiro grande passo

Tivemos de ser um pouco Grécia e trocar a bola como se não houvesse balizas, à espera do momento certo. Do lado de fora desesperámos por passes de rotura, por um futebol de ataque continuado. Fernando Santos teve de convencer os jogadores que só dava assim: fechadinhos atrás, sem nunca se desequilibrarem, com a obrigação de começarem a aproveitar as oportunidades criadas. Fomos obcecados pelo controlo.

Teve de convencer Nani a aparecer nos espaços perto da baliza, a lutar pelo ar, Renato a não embalar e a sair curto, João Mário a ir muitas vezes sozinho. Quaresma a não sair em dribles e cruzamentos sem critério. André Gomes lutou corpo a corpo. Adrien focou-se primeiro no outro, do lado de lá, do que em si próprio e na bola. Moutinho só passou a aparecer nos momentos finais para aquele passe de morte. Todos eles acreditaram e foram enormes, incansáveis.

Fernando Santos ou o momento, ou ambos, foram responsáveis pela maior transformação de todas: Cristiano Ronaldo começou também a acreditar que era essa a única via. A olhar para o braço e ver lá finalmente a braçadeira. A chamar Moutinho para marcar penáltis, a voltar a coxear para o relvado para motivar Quaresma, a gritar que nem um Diego Simeone nos seus dias mais frenéticos, a apontar o caminho, a tomar decisões. Viram quem mandou Raphäel Guerreiro assumir o livre direto? Dou-vos uma pista: não foi o selecionador. Vimo-lo festejar cada corte como um golo marcado por si, cada bola para o quintal, cada falta ganha a meio-campo. A coxear, depois de secar as lágrimas, fez a diferença. Foi enorme.

A felicidade premiou o trabalho

Claro que houve felicidade. O golo, tantas vezes repetido, da Islândia, nos descontos. Os três falhanços de Vida. A bola no poste de Gignac. Mas foi procurada até à exaustão pelos jogadores em todos os muitos minutos que jogaram. Uma atitude incrível. Uma confiança impressionante, que nem abanou quando Ronaldo saiu de maca do Stade de France. Uma confiança carregada às costas por Éder, o mais improvável dos heróis, aos 109 minutos.

O mérito de Fernando Santos é enorme. Até nessa decisão, inesperada, de lançar o avançado do Lille para o golo de uma carreira.

Confesso que faz-me alguma falta a magia de alguns craques de antigamente na Seleção. Aquele futebol rendilhado, de filigrana, apaixonante nas combinações e talento individual. Esta Seleção deixou de ser poesia, como se se tivesse apercebido de que ninguém pode subsistir apenas da vida de artista. É preciso foco, organização, concentração e sacrifício. É preciso que todos corram para o mesmo lado.

As novas gerações que aí vêm trarão ainda mais talento, e novas soluções. Portugal continuará forte, e pode crescer, mantendo estas chaves como base, e juntando-lhe, se possível, umas pitadas de magia.

No entanto, agora, o momento é outro. Façamos-lhes uma vénia. Merecem tudo. Foram enormes!

Não perdemos, Cristiano. Ganhámos! Querias acrescentar alguma coisa?

LUÍS MATEUS é subdiretor do Maisfutebol e pode segui-lo no TWITTER. Além do espaço «Sobe e Desce», é ainda responsável pelas crónicas «Era Capaz de Viver na Bombonera» e «Não crucifiquem mais o Barbosa» e pela rubrica «Anatomia de um Jogo».