Em 2008 a redação do Maisfutebol, em parceria com o cartoonista Ricardo Galvão, publicou na Prime Books o livro «Doze Euros no Bolso», que passava em revista, de forma bem-humorada, os momentos mais marcantes da história dos Campeonatos da Europa. São alguns desses textos, adaptados e atualizados, que recuperamos agora, para intervalar a atualidade do Euro 2016 com as memórias que ajudam a fazer a lenda da segunda maior competição internacional de seleções.

 

Desculpem, Thomas, Dieter e Hansi: eis o Müller original

A primeira vez da Alemanha num Europeu aconteceu ao ritmo do «Bombardeiro». Gerd Müller marcou quatro golos em dois jogos para o título de 1972. O «Kaiser» Beckenbauer, Maier ou mesmo Netzer eram referências de classe daquela grande seleção alemã, mas o toque final dava-o Müller, verdadeiro fenómeno de atração pela baliza. Mais tarde, outros craques com o mesmo nome (Dieter, em 1976, Hansi, em 1980, Thomas, na atualidade) representaram a Alemanha em Europeus. Mas o Müller original ainda não foi superado.

Foi o melhor marcador dessa edição, no intervalo dos dez golos no Mundial de 1970 e dos quatro de 1974 que lhe garantiram, durante anos, o título de melhor marcador de sempre em Campeonatos do Mundo (só foi ultrapassado em 2006, por um tal de Ronaldo e depois, em 2014, por um tal de Klose).

A primeira grande demonstração de força dessa Alemanha aconteceu nos quartos de final, numa vitória por 3-1 em Wembley, sobre a Inglaterra. Foi o primeiro triunfo da Alemanha em solo inglês e Müller contribuiu com um golo. Depois, os quatro jogos da fase final realizaram-se na Bélgica e a Mannschaft começou por dfrontar a seleção da casa. «Der Bomber» resolveu com dois golos, o primeiro de cabeça, o segundo com um toque entre os centrais. Em ambos a marca de Müller, forte a jogar de cabeça, rápido a desmarcar-se, capaz de transformar em vantagens as suas aparentes limitações físicas: era atarracado, de pernas curtas, a antítese do estereótipo de um avançado letal.

A final foi frente à URSS, que tinha afastado a Hungria na meia final e chegava à decisão pela terceira vez em quatro edições do Europeu. No embate entre as duas únicas equipas que não tinham perdido nessa campanha, o equilíbrio era uma ilusão que durou pouco. E Müller tinha ainda mais razões do que os outros para estar otimista: apenas três semanas antes desse 18 de junho, num particular de preparação, a Alemanha tinha goleado a URSS por 4-1. Adivinham quem marcou os quatro golos? Pois…

Em Bruxelas a Alemanha também se impôs cedo. Aos 20 minutos, Beckenbauer levou a bola até à área (mais sobre este tema já a seguir…), um primeiro remate de Netzer bateu na trave, o guarda-redes Rudakov fez uma grande defesa à recarga de Kremers, mas ainda faltava aparecer Gerd Müller. O número 13 da Alemanha aparou de peito, encostou o pé direito e transformou o bombardeamento alemão em golo. Um intervalo para o segundo, apontado por Wimmer, depois o derradeiro golpe. Dessa vez uma bela jogada coletiva da Alemanha, com Müller a trazer a bola e a combinar com os companheiros, para finalizar em estilo e selar aquela que era, então (e foi até 2012) a vitória mais dilatada de sempre em final do Europeu: 3-0.

«Kaiser» e inventor

Beckenbauer, pois. 44 mil no Heysel, em Bruxelas, contaram já 26 minutos. De peito feito, postura apoiada em régua e esquadro e olhos nos olhos de quem lhe aparecesse à frente, o «Kaiser» arranca. Elegante, leva a bola colada ao pé direito para a vitória. Está disposto a acabar com a resistência soviética e, sobretudo, do seu guarda-redes Rudakov, sucessor do grande Iachin, que já defendera umas quantas e vira uma outra esbarrar na trave. É ele quem leva a bola para a área, e a festa prossegue com a tal recarga vitoriosa de Müller. Foi Beckenbauer quem soltou finalmente os cordelinhos que prendiam os companheiros-marionetas. É o primeiro a abraçar o goleador: tinha finalmente direito ao cetro.

Capitão, mas também estratega. Defesa leal, mas igualmente avançado implacável. Franz Beckenbauer foi o inventor do líbero ofensivo, alargando os metros percorridos e as funções desempenhadas por Armando Picchi no catenaccio aplicado por Helenio Herrera. Foi nesse mesmo sistema do Inter na década de 60 que o alemão se baseou, mas não em Picchi. «No início da carreira era um médio convencional. Depois comecei a observar Facchetti, o defesa esquerdo desse Inter, e ele deu-me inspiração e sentido de aventura», contou, antes de aprofundar a ideia: «Naquela altura o futebol era muito estereotipado. Um defesa era um defesa, um médio era um médio. Ele, na esquerda, não tinha espaço para onde ir. Eu, jogando no meio, tinha-o.»

Para muitos, essa foi a melhor seleção alemã do século XX. E Beckenbauer era o seu líder em toda a linha. A primeira Bola de Ouro do «France Football» chegou no final desse ano, dois anos depois o «Kaiser» era campeão do Mundo e levava a «Mannschaft» a tornar-se na primeira seleção a acumular os títulos continental e planetário (seria imitada pela França, em 1998-2000 e pela Espanha, em 2008-2010-2012).

Beckanebauer voltaria a responder presente em 1976, mas o checo Panenka ultrapassaria as suas ambições com um chapéu da marca de penalti. O «Kaiser» nem marcou o último, no desempate. Ficaria a olhar desolado, de mãos nas ancas, para a baliza e para Maier. Uma segunda Bola de Ouro nesse mesmo ano compensaria o relativo fracasso – um desfecho que viria a repetir no Europeu de 1988, como selecionador de uma Alemanha que, apesar de jogar em casa, se deixou surpreender na meia-final pela Holanda de Marco Van Basten.