Em 2008 a redação do Maisfutebol, em parceria com o cartoonista Ricardo Galvão, publicou na Prime Books o livro «Doze Euros no Bolso», que passava em revista, de forma bem-humorada, os momentos mais marcantes da história dos Campeonatos da Europa. São alguns desses textos, adaptados e atualizados, que recuperamos agora, para intervalar a atualidade do Euro 2016 com as memórias que ajudam a fazer a lenda da segunda maior competição internacional de seleções.

Quando Toldo fecha a baliza

A 29 de junho de 2000, em Amesterdão, o sobrenatural aliou-se a um guarda-redes para ganhar um jogo. O estádio estava tingido de laranja, como sempre nos jogos da Holanda. Quatro dias antes, a equipa treinada por Frank Rijkaard despachara a Jugoslávia com uns inacreditáveis 6-1.

Mas agora tinha pela frente uma Itália dura de roer, fiel ao estereótipo do catenaccio que se lhe cola à pele tão facilmente. Nem sempre o futebol é a preto e branco, mas nesse dia não houve meios-tons. A Holanda fez 31 remates, a Itália quatro. E passou à final, apenas porque o destino vestiu de azul.

Deu os primeiros sinais aos 15 minutos, desviando para o poste um remate de Bergkamp qua já nascera golo. Aos 33, Zambrotta foi expulso e a Itália respondeu transformando o fantasista Del Piero em latera-direito. Aos 39, Nesta agarrou Kluivert na área. Frank de Boer cobrou o penálti ara a esquerda de Toldo, que adivinhou o lado e defendeu em grande estilo.

O guarda-redes da Fiorentina metia medo. Até ao implacável Kluivert, que aos 62 minutos, na segunda grande penalidade da tarde, esperou que Toldo se atirasse de novo para a esquerda para colocar a bola milimetricamente... no poste do outro lado.

Prolongamento. Nada de novo. A Holanda a atacar. A Itália a defender, amontoada em redor de Toldo e do sobrenatural. Juntos, encolhiam a baliza a cada minuto que passava.

Nada a fazer: penáltis. Os italianos já festejavam antes do primeiro remate, certos da vitória. Novamente Frank de Boer, paralisado pelo medo. Toldo defende pela segunda vez. Depois Stam. Intimidado, atira metro e meio por cima da trave. Só Kluivert recurepa o sangue-frio e consegue bater Toldo. Mas já era tarde: Totti, imitando Panenka, espeta a derradeira bandarilha.

Bosvelt avança para a marca. Sabe que vai falhar. Todo o estádio sabe que vai falhar. Toldo atira-se para a direita e defende. A Itália está na final, depois de a Holanda desperdiçar cinco penáltis em seis.

Nessas duas horas e meia, Toldo foi o melhor guarda-redes de todos os tempos. Saiu em ombros, claro. Com o sobrenatural a seu lado.

Quando a lenda vestia de negro

A estrela do primeiro campeão europeu estava na baliza. O talento da Jugoslávia esbarrou nas mãos de Lev Iachine. Na final, as defesas do guarda-redes evitaram golos e minaram a resistência do adversário, até a URSS se impor pela melhor condição física.

Os braços de Iachine pareciam chegar a todo o lado. O resto, fazia-o com o olhar. Do alto do porte imponente e da elegância tranquila, foi líder e primeira referência da equipa. Criou uma marca e elevou o papel de guarda-redes a outra dimensão.

O homem que vestia sempre de negro virou lenda. Com muitas histórias pelo meio, como os grandes heróis. E algumas inconfidências, como a de que aquecia para cada jogo com um trago de vodka.

No início, demorou para se impor. No Dínamo de Moscovo, estava tapado por Alexei Khomich e, para passar o tempo, chegou a jogar pela equipa de hóquei no gelo. Aliás, ganhou no rinque uma Taça da URSS.

O hóquei perdeu Iachine em 1953. O futebol ganhou um mito, alimentado por uma carreira de 20 anos em que foi senhor da baliza da União Soviética e do Dínamo. Começaram por lhe chamar «Pantera Negra», mas a alcunha que ficou veio da América do Sul. «Aranha Negra».

O primeiro título internacional chegou logo em 1956: a vitória no troneio olímpico. Dois anos depois atingiu com a URSS a fase final do Mundial, o primeiro de três Campeonatos do Mundo que disputou. Depois de muitas críticas ao seu papel na eliminação da URSS no Mundial 62, admitiu deixar a seleção, mas voltou.

Da campanha para o Europeu de 1964, onde chegou de novo à final, perdida para a Espanha, fica uma de muitas histórias das suas defesas miraculosas. Um espetacular mergulho negou um penálti de Mazzola, que levou o italiano a desabafar: «O Iachine joga futebol melhor do que eu...»

Por essa altura era o dono da Bola de Ouro, o único guarda-redes até hoje a vencê-la. O reconhecimento dos fãs e adversários foi unânime. Quando se despediu, em 1971, teve direito a um jogo de homenagem a que disseram presente muitos dos que o ajudaram a construir a lenda: Pelé, Eusébio, Beckenbauer.

Não é frequente e muito menos fácil ter guarda-redes que decidam jogos como aconteceu com o italiano e o ícone russo aqui revisitados. Nesta edição do Euro 2016, aliás, só dois guarda-redes ainda não foram batidos – não desprezando as muitas e importantes defesas que já forma feitas mesmo por aqueles que já forma biscar a bola dentro da sua baliza. Mas, no final da fase de grupos deste Europeu, só há duas seleções que ainda podem gabar-se de não ter sofrido golos: a Alemanha (Manuel Neuer) e a Polónia (Szczesny e Fabianski).