Há um rapaz calvo e de farta barba loira que desce a degradada escadaria junto ao túnel de acesso ao relvado do «velhinho» Mário Duarte, em Aveiro, de olhos postos no tipo impecavelmente vestido que está no relvado, de mãos nos bolsos. Inevitavelmente, os olhares de ambos cruzam-se e a primeira reação do homem de fato é dirigir-se ao adepto que se o encara, envergando uma antiga camisola do Beira-Mar com um 9 amarelo estampado no peito, atirando-lhe: «essa camisola já foi minha».

Do outro lado do gradeamento, enquanto ambos se vão aproximando, há um sorriso que se rasga, perante o ídolo. «Espera, tu és o Nuno! Conheci-te pelos olhos!», desfaz-se Fary Faye, o «tipo impecavelmente vestido» de quem se fala, enquanto envolve o adepto num demorado abraço, acompanhado de gargalhadas e «meu menino» para cá, «já és um homem», para lá.

A imagem passou-se ao final da tarde desta terça-feira, e recorda os tempos em que o futebol era outro. O tempo em que o adepto comum não tinha dificuldades em chegar e até em conviver com jogadores profissionais. O tempo em que o futebol era feito de relações entre os artistas e aqueles que os seguiam para todo o lado.

É desses tempos que vem a relação de Nuno Loura, hoje com 30 anos, e de Fary que era, então, a estrela de um Beira-Mar que chegou a disputar jogos europeus, independentemente de os seus jogadores se relacionarem com os adeptos.

«Eu tinha nove ou dez anos e vinha ver muitos treinos do Beira-Mar. E muitas vezes, como ficava à espera que os jogadores saíssem, era o Fary que me levava a casa, porque morávamos mais ou menos para o mesmo lado», justifica Nuno Loura ao Maisfutebol, que presenciou parte do reencontro marcante para ambos os intervenientes.

Nuno, hoje já com filhos – informação que nos foi dada por... Fary – recorda-se de ter estabelecido relação com vários jogadores que passaram pelo Beira-Mar, ainda assim, assume que aquela que tem com o senegalês que é o melhor marcador da história do clube aveirense é mais especial.

«Como jogador e como pessoa, ele é excepcional. Não há palavras que o descrevam. Por isso, quando soube que ele ia estar aqui, decidi que tinha mesmo de vir procurá-lo. Vesti estas duas camisolas que ele me deu na altura em que jogava cá, e agora levo-as autografadas», relatava, emocionado.

Honrar a história para conquistar o futuro

Ora, emoção, foi mesmo o prato forte de uma tarde de reencontros. Contextualizando: no âmbito da preparação para a nova época, em que o clube aveirense aposta forte na subida aos campeonatos nacionais, o Boavista foi convidado para um jogo-treino, que decorreu esta quarta-feira, terminou empatado (1-1), mas cujos momentos em que a bola não esteve a rolar trouxeram muito mais história para contar do que a partida propriamente dita.

E tudo porque o Beira-Mar aproveitou a visita do conjunto axadrezado para homenagear duas figuras da sua história, que deixaram marca também de pantera ao peito: Fary e Ribeiro.

«Temos a certeza que da conquista do nosso futuro fará sempre parte a honra dos que, pela sua história, nos tornaram tão grandes», justificou o clube, numa mensagem lida com os antigos jogadores no centro do relvado.

Mas, se Ribeiro é um homem que manteve sempre a sua ligação a Aveiro (já lá vamos), o regresso de Fary à cidade deixava antever uma grande festa.

E foi isso mesmo que aconteceu. O atual diretor-desportivo do Boavista foi incansável na distribuição de abraços por todos quantos lhe estenderam os braços. E foram muitos, não só os meninos que entretanto se tornaram homens, mas também adeptos mais velhos, ex-jogadores, antigos dirigentes. Quase todos, com uma história para recordar e ir às lágrimas de tanto rir.

E mesmo aqueles que não estiveram presentes, quiseram dar uma palavra, nem que fosse por telemóvel que alguém fazia chegar ao homem que marcou 65 golos em sete épocas vestido de aurinegro e que até conquistou uma bota de prata (02/03), numa época em que o golo que lhe valeu esse título serviu também para salvar o Beira-Mar da descida de divisão.

«Sinto uma enorme alegria em voltar a pisar o relvado do Mário Duarte, um lugar de onde só tenho memórias de coisas bonitas», descreveria depois, em declarações ao Maisfutebol. «É um orgulho ver a emoção das pessoas de Aveiro neste meu regresso, que também me deixa muito emocionado por ver meninos que guardam recordações de histórias que passaram comigo e que hoje, já são pais de família, mas ainda recordam e quiseram vir mostrar que o amor que têm por mim permanece, tal como aquele que sinto por eles», sublinhou, de sorriso no rosto.

O «menino que sonhava» e chegou a capitão

A tarde, porém, não foi só de Fary. A homenagem estendeu-se a Pedro Ribeiro – Ribeiro, no mundo do futebol – antigo lateral formado no Beira-Mar, onde jogou 20 épocas, desde a formação aos séniores, e que jogou durante dois anos no Boavista.

Natural de Aveiro, a presença de Ribeiro junto da equipa do Beira-Mar nunca deixou de se fazer notar, em no momento da descida aos distritais. Tendo isso em conta, foi normal perceber que Fary fosse alvo de maior atenção por parte dos adeptos.

E quando se fala da relação de Ribeiro com o Beira-Mar, é também de uma relação de adepto que tem de se referir. «O meu sonho começou aqui no relvado do Mário Duarte, quando era um menino de 9 anos e foi alcançado mais tarde, quando me tornei capitão da equipa sénior do Beira-Mar», assumiu ao nosso jornal, declarando-se «agradecido e honrado pelo gesto do clube» onde cresceu «como homem e jogador».

E porque com o crescimento não têm de se esquecer os sonhos de menino, voltamos a dar a palavra a Nuno Loura, que foi um dos adeptos que, à boleia das homenagens prestadas pelo seu clube a duas antigas figuras, também teve oportunidade de recordar muitas histórias.

«O Ribeiro? Também me lembro de o ver jogar e até posso dizer que já cheguei a sofrer alguns golos dele no campeonato da Superliga, que jogo com uma equipa aí nos sintéticos de Aveiro, onde já me cruzei muitas vezes com o Ribeiro».