O método de Descartes adaptado ao pensamento de Andrea Pirlo. O mágico trequartista troca a reflexão sobre a existência e resume-a à urgência de jogá-la. E assim o treinador da Juventus olha a vida e o jogo, sempre a uma distância de segurança que lhe permita agarrar o prazer. O prazer de  ganhar com um sorriso nos lábios. 

O FC Porto-Juventus é uma oportunidade de ouro para redescobrir Pirlo. Uma personagem cool, o homem que olhava o compromisso de cima para baixo e trocava-o pela possibilidade de brincar e gozar com os que o rodeavam. 

O Maisfutebol folheia a biografia do antigo internacional italiano, escrita por Alessandro Alciato, e mergulha num punhado de episódios que podiam perfeitamente ter saído da loucura benigna de Fellini ou Pasolini.  

Há humor, muito humor, e uma vítima preferida: Gennaro 'Rino' Gattuso. Mas há também Sérgio Conceição, ou não tivesse sido ele um adversário de muitas batalhas em Itália. De sete batalhas, mais em concreto. Vale a pena começar por aí. 

Sérgio Conceição venceu três vezes, Andrea Pirlo ganhou uma e houve ainda três empates: 

. 21 de fevereiro de 1999: Lazio-Inter, 1-0 (golo e vitória de Conceição)
. 16 de janeiro de 2000: Reggina-Lazio, 0-0
. 14 de maio de 2000: Lazio-Reggina, 3-0 (vitória de Conceição)
. 14 de dezembro de 2000: Inter-Parma, 0-0
. 18 de fevereiro de 2001: Parma-Brescia, 3-0 (golo e vitória de Conceição)
. 23 de novembro de 2001: Milan-Inter, 1-0 (vitória de Pirlo)
. 13 de maio de 2003: Inter-Milan, 1-1

«O treino sem bola é uma masturbação para alguns treinadores»

Em outubro de 2020, meses após a entrada de Andre Pirlo no comando técnico da Vecchia Signora, o Maisfutebol publicou partes da sua tese de mestrado, «O calcio que eu quero». É uma boa porta de entrada para os pensamentos táticos do adversário do FC Porto, uma boa forma de perceber o que pretende implementar na sua Juventus. 

Se é essa a informação que procura, despedimo-nos aqui e já nos vemos nesse artigo. Se, o que pretende, é mergulhar numa das mentes mais prodigiosas do futebol italiano, então continuamos por aqui abaixo. 

Arrogante? Talvez. Desinteressado? Só aparentemente. Genial? Em absoluto. Andrea foi assim desde os primeiros anos. Sempre detestou treinar, principalmente sem bola. E nunca percebeu os treinadores que levam o plantel a correr na mata. 

Em 2014, na biografia oficial, apresenta um bom argumento em sua defesa. «Se tens a Bar Refaeli [modelo israelita] nua à tua frente, não lhe piscas o olho e dizes 'espera só 15 minutos e já volto'. O aquecimento e o treino sem bola é uma masturbação para alguns treinadores. Eu prefiro ir direto ao assunto, a bola.»

Fantasia, primeiro; resultado, a seguir. Era assim o Andrea Pirlo médio. Não era rápido, não era agressivo, não jogava bem de cabeça. O jogo resumia-se a uma palavra, vociferada vezes sem conta: passe, passe, passe, passe. 

A mãe, Livia, talvez seja a melhor pessoa para explicar o que vai na cabeça de Andrea. «Sempre foi calmo, silencioso, mas nunca introvertido. Esperava os momentos certos para dizer a piada certa. E adorava desafiar o irmão [Ivan Pirlo], tanto em casa como na praia de Viareggio, onde passávamos férias.»

«No dia da final dormi e joguei Playstation; à noite fui campeão do mundo»

Ter o timing certo para fazer rir. Afrontar todos com uma bola de futebol. O retrato bate certo com o perfil desenhado pelo próprio Andrea ao longo de Penso, logo jogo. O menino de Flero, Brescia, construiu um mundo inexpugnável, de desejos, de segredos, e de completo alheamento relativamente ao passado e aos monstros do jogo que amamos. 

«Toda a gente me dizia que o meu estilo de jogo era parecido com o de Gianni Rivera [melhor jogador do mundo em 1969]. Para ser sincero, não sei. Nunca o vi jogar. Nem ao vivo nem em cassetes de vídeo. Nunca olhei para outro jogador. Suponho que tinha tempo de sobra para fazê-lo, mas nunca estive interessado. Seja como for, a Dolly não era certamente igual à ovelha clonada.»

Num instante muito acessível, no minuto seguinte capaz de desfazer o recetor. Pouco paciente para comparações, insinuações e más sensações. Pirlo nunca lidou mal com a pressão e nunca permitiu que a pressão domasse o seu futebol de régua, compasso e esquadro. 

Pirlo entre Totti e Lippi no Mundial de 2006



Aos 13 anos decidiu um torneio na Dinamarca com um penálti 'à Panenka'. Aos 16 anos estreou-se na equipa principal do Brescia. Aos 19 era titular do Inter de Milão. Aos 33 levou a Itália à final do Euro2012 com mais uma panenkada. Frio, insensível, alheio ao que o rodeava. 

«Pressão? Hmmm, nunca senti por aí além. Digo isto proque tenho um exemplo perfeito: no dia da final do Mundial-2006, um domingo, 9 Julho, passei a tarde a dormir e a jogar PlayStation; à noite, saí do hotel e levantei a taça do mundo. Depois da roda, a maior invenção foi a PlayStation. Passava horas a jogar, sempre com o meu grande amigo Nesta», relata na biografia de 2014. 

«Senhor Braida, se me pagar o que quero pode ficar com a minha irmã»

116 vezes internacional, campeão do mundo, dez épocas no AC Milan e quatro na Juventus. Uma carreira invejável, com direito à presença em três Mundiais e três Europeus. É este homem, este agora treinador, o protagonista de alguma das partidas mais famosas no mundo do futebol. 

Pobre Gennaro Gattuso. A mais famosa é contada e replicada pelos protagonistas e figurantes. Rino negociava uma possível renovação de contrato com o Milan, quando teve a má ideia de deixar o telemóvel na mesa durante uma ida à casa de banho. Quando voltou, reparou que tinha acabado de enviar uma mensagem a Ariedo Braida, homem forte do futebol rossonero.

«Senhor Braida, se me pagar o que quero pode ficar com a minha irmã.» Claro que Gattuso bateu a Pirlo, antes de pedir desculpas ao dirigente. «Valeu a pena», conta Andrea. «Adorava meter-me com o Rino de Janeiro. Ficava vermelho como um tomate e levava tudo a sério. Era a motivação que eu precisava.»

A panenkada de Pirlo no Euro2012

Há mais, claro. Esta aconteceu durante uma noite de folga no estágio da seleção, em Florença. «Fomos jantar a Florença e o Rino ficou no hotel. Quando chegámos ao hotel, estávamos bêbados. Bastante bêbados, aliás. Eu e o Daniele [De Rossi] começámos a cantar no lobby do hotel e fartámo-nos rapidamente. Queríamos emoção.»

A emoção estava, como não podia deixar de ser, no quarto de Gattuso. «Fomos chateá-lo. A caminho, o De Rossi viu um extintor e agarrou-o com a promessa de despejá-lo até à última gota no Rino. Assim foi. Tocámos à porta do quarto do Gattuso, ele levantou-se e, mal abriu a porta, o De Rossi não foi de modas. Tudo para cima do Rino. O De Rossi pisgou-se e deixou-me ali, sozinho.»

A cena acabou com uma cena de pugilato mais ou menos amistoso «entre Terence Hill e Bud Spencer». «E o De Rossi, já trancado no quarto, resmungava e gritava cá para fora: 'parem com isso, queremos dormir!'»

«Parecíamos zombies no balneário, Istambul é a capital do diabo»

O treinador da Juventus envelheceu, começou certamente a olhar com mais rigor para o futebol. Mas um homem é aquilo que a vida lhe dá e o que as experiências lhe fazem. E Andrea Pirlo, muito seguramente, ainda terá um lado de calciatore.

«A minha pior experiência no futebol? A derrota em Istambul, com o Liverpool [o Milan ganhava 3-0 ao intervalo e perdeu a final da Champions nos penáltis]. Aquilo foi como se déssemos as mãos na ponte de Bósforo e nos atirássemos. Um suícidio maciço.»

Andrea Pirlo fez a assistência para o golo de Paolo Maldini logo no início, mas mais teria de lidar com um dos raros penáltis falhados na carreira. 

Andrea Pirlo a festejar um golo pela Squadra Azzurra

«O jogo acabou e a tortura ainda nem tinha começado. Parecíamos zombies no balneário. Ninguém falava, ninguém olhava em frente, só para o chão. Eles destruíram-nos mentalmente. Nós inventámos uma nova doença: Síndrome de Istambul. Nem dormimos bem nos dias seguintes. Nesse período, não me senti futebolista nem homem. Para mim, Istambul é a capital do diabo.»

Pirlo fecharia a carreira de futebolista com duas Champions. Em 2003 e em 2007, sempre com o AC Milan. É isso que ambiciona repetir como treinador, mas para já tem de afastar um competitivo FC Porto. Um clube com tanta história como a Juventus no planeta UEFA. 

É este o técnico que estará esta quarta-feira. O homem que um dia recusou 40 milhões de euros para jogar no Qatar. Um homem diferente. 

«Estava no Milan e o meu empresário ligou-me e pediu-me para vestir uma gravata porque íamos ter uma reunião com uns emissários do Qatar no Hotel Principe di Savoia, onde o Beckham morou quando jogou no Milan. Cheguei lá e foi assim: 

Ciao Andrea, o seu contrato está aqui à sua espera.

– Boa tarde a todos, é uma honra conhecê-los.

– Vai ficar muito bem com o nosso equipamento.

– Prazer em conhecê-los, sou o Andrea Pirlo.

– Nem tem de pensar duas vezes, está aqui tudo escrito.

– Na verdade, vim aqui só para vos conhecer. Nada mais.

– Andrea, quantos filhos tem?

– Dois.

– Há uma excelente escola de inglês no Qatar.

– Eu até gostava que eles aprendessem a falar italiano.

No problem. Vamos contratar um professor de italiano. Gosta de carros?

– Siiiiim.

– Perfeito, temos uns Ferraris para lhe oferecer.

– Uns?

– E se tiver saudades de Itália, tem sempre um voo à sua disposição.

– Mas…

– O seu contrato está aqui, é válido por quatro anos.

– Obrigado mas…

– 40 milhões de euros.

[o meu empresário explicou-me que seriam 40 milhões por quatro anos, 10 por ano]

– Se 10 milhões não chegam para o Andrea, basta dizer.

– Obrigado, mas não. Quero jogar mais uns anos na Europa. E assinar por vocês significaria o fim da minha carreira internacional, Liga dos Campeões e tudo o mais. Falamos daqui a um, dois anos?

Entretanto, o meu empresário tomou conta do assunto. E subiu a parada para 11 milhões. Depois 12. Finalmente 13. Eu só queria sair dali. Quando o fizemos, olhei para o relógio e eram 21 horas e 21 minutos. Precisamente o meu número da sorte.»

Andrea Pirlo nunca jogou no Médio Oriente. Após um percurso fabuloso na Europa, optou pela MLS. Jogou de 2015 a 2017 no New York City FC.