Quando a 4 de julho de 2001 o FC Porto comunicou a compra de Hugo Ibarra ao Boca Juniors por 8,8 milhões de euros, o país abriu a boca de espanto. O que poderia justificar que um lateral direito se tornasse a contratação mais cara da história do clube portista?

Pinto da Costa, porém, fez questão de justificar rapidamente a aposta.

«Dizem que é o melhor lateral do mundo. Se é o melhor, o segundo ou o terceiro melhor, não me interessa: o que me interessa é que foi contratado porque tem qualidade», explicou.

Ora tudo isto exponenciou a pressão em cima de Ibarra, que batia aos pontos contratações milionárias como Mário Jardel, Pena ou até Doriva: um médio que foi finalista vencido do Mundial 98. A contratação do lateral permaneceu como mais cara do clube durante anos, até que foi contratado um outro argentino, de nome Lucho González, por 10,5 milhões de euros.

Apesar das expetativas criadas, Hugo Ibarra nunca justificou, porém, o investimento e acabou por tornar-se um fardo para o FC Porto: de empréstimo em empréstimo, até a saída final.

Pelo que deixou poucas saudades.

A influência do irmão que veio da Guerra das Malvinas e perdeu a sensibilidade

Deixou, aliás, poucos motivos para se falar dele. Até agora. Até este domingo. Ibarra reinventou-se como treinador e comandou o Boca Juniors para a conquista de um título de campeão que fica na história: legitimado por uma vitória do River Plate no jogo ao lado.

«Armani defendeu o penálti. Quero dizer uma coisa: a maior instituição do mundo chama-se Club Atlético River Plate», gritou o relatador Atilio Costa Febre.

«Armani defendeu o penálti do Racing. A pura honestidade do River, o escudo acima de tudo, o nome do River lá em cima, o manto sagrado...»

Ali bem perto, a oito quilómetros de Avellaneda, Hugo Ibarra enchera a Bombonera de euforia. Ele que parece muito distante do perfil de treinador de sucesso do futebol moderno. Pelo contrário, é um homem austero à maneira de antigamente.

Vem de uma família de dez irmãos e o segundo mais velho lutou na Guerra das Malvinas. Quando regressou a casa, já não era o mesmo.

«Graças a Deus voltou e está bem, mas é muito durão. Não o vês derramar uma lágrima por nada, o que é normal: depois de tudo o que viu na guerra, sobrou-lhe pouca sensibilidade.»

Se calhar foi a ele que Hugo Ibarra foi buscar aquela forma de ser.

Natural da província da Formosa, cresceu em El Colorado, perto da fronteira com o Paraguai. Ainda criança começou a trabalhar na apanha do algodão e sempre que tinha oportunidade fugia da escola para ir jogar à bola. Foi então que o pai o proibiu de ir jogar se as notas na escola não correspondessem. «A bola não te vai dar de comer», dizia-lhe.

Desses tempos recorda os torneios que duravam o dia todo, até à noite, quando se ligavam as luzes das carrinhas para iluminar o campo. Vinham equipas de toda a província e o prémio era uma vaca viva. Quem ganhasse no fim, ficava com o animal, que no dia seguinte era transformado num típico assado argentino. «A carne que sobrava era dividida por todos.»

A porrada em Maradona no regresso de El Pibe à Bombonera

Por causa de um irmão, que era agente, começou a jogar na equipa da polícia e a partir daí nunca mais parou. Cresceu no Colon, onde vivia numa pensão sem aquecimento e sem água quente, mas com ratos a passear-se quando as luzes se apagavam.

Foi ali que aprendeu o significado da expressão «cavalo de xadrez».

«Comíamos salteado: ou almoçávamos ou jantávamos. Tínhamos de escolher o que era melhor em cada dia. Passávamos tanta fome que mandávamos os loirinhos ir fazer amizade com as miúdas do bairro, para nos darem alguma coisa de comer. Fui o único a chegar profissional daquele grupo, porque tinha um estômago de ferro e a cabeça fixada nisso.»

Depois do Colon, seguiu-se o Boca Juniors, onde se tornou um ícone. Representou o clube por três vezes, num total de nove anos. Foi três vezes campeão argentino, ganhou Três Copas Libertadores, uma Taça Intercontinental e duas Recopas sul-americanas.

«Sempre fui adepto do Boca Juniors e em criança ouvia os relatos do clube na rádio. A primeira vez que entrei em La Bombonera foi em 1995, pelo Colon, no jogo de regresso de Maradona. No Mundial 86 tinha 11 anos e Maradona sempre foi o meu ídolo. Nesse jogo dei-lhe uma pancada. No fim fui pedir desculpas e ele disse-me. ‘Não há problema, continua assim’.»

Foi um dos jogadores com mais títulos da história do Boca Juniors, até que um dia, no final de 2010, resolveu pendurar as botas. Sem homenagens nem festas de despedida.

«Não sou mediático, não gosto. Só falo quando acho necessário. Cheguei tranquilo ao clube, conquistei muitos títulos e saí tranquilo. É a minha personalidade.»

O afastamento durou pouco, porém. Um ano depois, o presidente Daniel Angelici chamou-o de volta ao clube. Para treinar as camadas jovens. Acabado de ser eleito pela primeira vez, Angelici queria os históricos do clube a transmitir aos jovens o que era o Boca Juniors.

Ibarra praticamente não teve tempo para se preparar para o cargo de treinador. Foi já enquanto trabalhava no clube que procurou adquirir as ferramentas básicas: tirou cursos, viajou, viu jogos. A boa resposta do antigo lateral direito, fê-lo então ir subindo na hierarquia do clube.

Em 2014 foi chamado para adjunto de Rolando Schiavi, um amigo que trazia dos relvados, de longa data, com quem ficou seis anos na equipa de reservas. Até que em 2020 Schiavi saiu e Ibarra assumiu a equipa. Em dois anos a resposta da equipa foi muito boa.

«A princípio não o víamos como treinador principal. Ele tinha um perfil mais de adjunto. Mas conforme o tempo de treinador da equipa de reservas ia passando, ele começou a ser visto como uma opção para a equipa principal. Fez da equipa de reservas campeã e geriu muito bem o grupo. Depois quando chegou à equipa principal, fez a especialização», conta ao Maisfutebol Tato Aguilera, jornalista do TyC Sports.

Rubens Junior, colega de Ibarra no FC Porto, corrobora completamente estas palavras.

«Eu não me apercebi dessa vontade dele de ser treinador um dia. O Ibarra não falava muito, era muito reservado. Nunca me mostrou ter alguma pretensão sobre isso. Foi uma grande surpresa quando o vi como treinador do Boca Juniors», conta o brasileiro.

«Ele era muito fechado nos treinos, estava sempre na dele. Não era de grandes conversas, muito menos brincadeiras. Só depois de nos conhecer é que acabou por ficar mais extrovertido. Com o tempo fui trazendo-o para dentro do grupo dos brasileiros, tentando que ele tivesse esse convívio com o grupo. Mas ele tinha uma personalidade forte. Ser treinador tem de ser um pouco fechado e reservado, para manter uma certa distância. E ele tinha isso.»

A zanga com Mourinho por causa de um clássico com o Benfica

A verdade, porém, é que o FC Porto foi o único clube em que Ibarra não teve sucesso. Chegou quando o treinador era Octávio Machado e a equipa trabalhava mal, segundo contou numa entrevista. O próprio Ibarra sentia-se num mau momento de forma. Até deixou de ir à seleção.

Octávio Machado saiu, chegou José Mourinho e a sorte de Ibarra não mudou. O lateral diz até que ele acabou por ser o bode expiatório do treinador português.

«O FC Porto jogou um clássico com o Benfica e o Mourinho deixou-me a mim e a outros companheiros brasileiros fora da lista de convocados. Não estávamos sequer na lista de 21, porque muitas vezes ele levava mais dois ou três jogadores para o caso de alguém ficar doente ou se lesionar durante o estádio. Então o jogo era no domingo, no sábado de manhã treinámos e à noite saímos para jantar. Tínhamos esse direito, certo?», contou ao El Gráfico.

«No dia seguinte Mourinho chamou-nos para uma reunião e perguntou: ‘O que teria acontecido se alguém ficasse doente naquela noite e eu precisasse de ti?’ Respondi que ele não me tinha chamado nem para os substitutos da convocatória, por isso não ia precisar de mim nem remotamente. ‘Assuma a responsabilidade, dê a cara. O mister é o responsável, não me venha culpar por não jogar e sair para jantar.’ Disse-lhe tudo na cara e à frente dos seus adjuntos. Foi o fim da nossa relação e nunca mais nos falamos.»

Ibarra nunca mais jogou no FC Porto. Foi então emprestado ao Boca Juniors, no qual voltou a ganhar a Copa Libertadores, ao Mónaco, no qual disputou a final da Champions, precisamente frente ao FC Porto, e no Espanhol de Barcelona.

Até que chegou a acordo com a SAD azul e branca, rescindiu contrato e voltou ao Boca Juniors em definitivo. Para continuar a ganhar títulos. Ganhar, ganhar, ganhar. Sempre ganhar.

«Estive perto de andar ao murro, no intervalo da final da Liga dos Campeões, com Rothen e Giuly. Era uma final e parecia que eles não se importavam se ganhavam ou perdiam. O Bernardi e o Morientes é que me pararam, se não eu ia para cima deles.»

Foi este carácter de durão, de um rapaz da província a quem os pais nunca foram ver jogar no Boca Juniors porque não se sentem bem na cidade grande, que fez do clube mais popular de Buenos Aires novamente campeão. Pegando na equipa a meio do ano, somando três derrotas nos primeiros seis jogos e embalando depois para uma das melhores sequências de resultados da história do clube.

Com vários jovens que foi buscar à equipa de reservas e que trouxeram uma vontade de ganhar tão grande quanto a do treinador. Para no fim celebrarem todos juntos.

«Uma pessoa parece dura até que acontecem estas coisas lindas que o futebol tem. Nessa altura tudo vem ao de cima: felicidade, tristeza, nostalgia, jogos importantes e a sensação de que tudo isto passa demasiado rápido.»