Do passado vivem os museus. E o Ajax até tem um vasto palmarés, que inclui quatro títulos de campeão europeu, mas não quer ficar agarrado à fama. O emblema holandês tem uma das melhores formações do mundo, e não é de agora, mas para que o proveito seja igual à fama, e perante alguns sinais de estagnação, avançou para uma reestruturação.
 
Johan Cruijff foi desafiado a delinear o projeto, e apresentou um relatório que, desde logo, defendia a contratação de referências do clube para a estrutura. Com o comando técnico da equipa principal entregue a Frank de Boer, o Ajax recuperou Van der Saar para a direção do marketing, recrutou Marc Overmars como diretor para o futebol e entregou a formação a Wim Jonk.
 
Ruben Jongkind não partilha o passado futebolístico destes nomes, mas há dois anos juntou-se também ao «staff». É o Responsável pelo Desenvolvimento de Talentos do Ajax, e esteve na quarta edição do Fórum do Treinador, organizado pela Associação Nacional de Treinadores de Futebol (ANTF).


 
Em Santarém apresentou os traços gerais do «Plano Cruijff», que foca muito o trabalho individual. «Acreditamos que conseguimos melhores jogadores se os desenvolvermos dessa forma. Cruijff costuma dizer que nunca viu um plantel inteiro a estrear-se na equipa principal. Chegam lá individualmente», destacou.

As equipas deram lugar aos grupos, os técnicos deram lugar aos mentores
 
O objetivo é «formar três jogadores por ano para a equipa principal». «Passámos do coletivo para o individual. Mudámos do ganhar para o desenvolver. Em Portugal focam muito a vitória, e esse é também um caminho, e o futebol português tem formado muitos jogadores de sucesso, mas nós pensamos de outra forma», disse Jongkind. «Queremos colocar o jovem ao centro, e criar um mundo à sua volta, para que possa crescer», resumiu.
 
O conceito de escalão competitivo (sub-9, sub-10, sub-15, etc) foi relegado para um plano secundário. A formação do Ajax baseia-se agora em três grupos: dos oito aos doze anos, dos treze aos dezasseis e dos dezassete aos dezanove (elite).
 
E nesse sentido os treinadores deram lugar a mentores. Cada um é responsável por dez jogadores, dentro do grupo em que está inserido. Se tivermos como exemplo o grupo mais jovem, cada mentor tem dois jogadores de oito anos, e outros tantos de nove, dez, onze e doze anos.
 
Os treinos continuam a ser definidos pelo escalão, pela idade, mas uma vez por semana o mentor orienta uma sessão em que junta todos os jogadores à sua responsabilidade. Jogadores com quatro anos de diferença, a treinar em conjunto.
 
Seguindo a mesma lógica, os treinadores (ou mentores) não acompanham sempre os jogos da mesma equipa. Vão rodando, e a seguir trocam ideias.
 
«Mais olhos analisam melhor», defendeu Ruben Jongkind, em Santarém. «Assim o mentor trabalha mais tempo com o jogador», lembrou, avançando com um exemplo: «Vamos imaginar que um jogador muda de escalão e fica um ano inteiro com um treinador com o qual não tem uma boa relação. Isso pode colocar em causa a sua evolução.»
 
Por isso nenhum mentor tem apenas uma equipa. E cada jogador tem apenas um mentor, é certo, mas vários treinadores.
 
No grupo mais velho, o de elite (dos 17 aos 19 anos), o enquadramento é ligeiramente diferente. Existem três mentores para todos os jogadores: um para a vertente física, um para o plano técnico e tático, e outro para a componente escolar.
 
«Os estudos são importantes não apenas para que tenham um diploma, mas também para serem melhores jogadores», afirmou Jongkind.

Novas formas de pesca desportiva
 
Perante esta rotatividade é evidente que os resultados desportivos assumem reduzida importância. «Se o melhor jogador dos sub-17 deve ir aos sub-19, vai. Se perdemos, é igual. Este ano chegámos a jogar com jogadores sub-15 na equipa sub-19. E até continuámos a ganhar. É preciso coração para este atrevimento», afirmou.
 
Na formação do Ajax promove-se um «ambiente preparado, no qual não existe medo de perder». Nem nos treinadores (mentores!). «Os nossos sub-16 perderam muito este ano, pois vários jogadores já estão integrados nos sub-18 e nos sub-19. É igual para nós, não criticamos», garantiu o dirigente holandês.
 
O plano de reestruturação da academia do Ajax sugere também um aprofundamento da relação com os clubes mais pequenos, quarenta, dos arredores de Amesterdão. Essa é uma via que outros emblemas seguem, e por isso é importante estabelecer ligações sólidas.
 
«O peixe não é tão gordo, mas há mais pescadores. Temos a concorrência de PSV, Feyenoord, Utrecht, e até clubes ingleses pescam nos nossos rios. Temos de alimentar os peixes, que estão nos clubes amadores», explicou Ruben Jongkind.
 
Tendo em conta a concorrência, o dirigente do Ajax defendeu um recrutamento diferente: «Eu recomendo pescar antes dos 10 anos. E por vezes pescamos na terceira equipa de um escalão. São jogadores que nasceram na segunda metade do ano, mais pequenos, mas com habilidade técnica. Podes ter um jovem nascido em janeiro e outro em dezembro, e tens um ano de diferença no desenvolvimento. Procuramos nas mesmas equipas, mas noutros escalões», confidenciou.
 
Jongkind disse ainda que «sem futebol amador não há futebol profissional», garantindo que o Ajax «sente-se responsável pelo futebol amador». «Estamos a trabalhar com a federação para aumentar a compensação económica aos clubes que cedem jogadores. Quinze mil euros pode ser muito para eles, e um jogador pode dar muitos milhões depois ao Ajax», assumiu.
 
Para além da vertente financeira, a ligação contempla ainda a partilha de conhecimento, com treinos das equipas de menor dimensão orientados por responsáveis do Ajax.
 
E se o «peixe não está tão gordo», como diz Jongkind, é também um sinal dos tempos. «O futebol de rua está a desaparecer, pelo que temos de compensar. Antigamente treinavas três vezes no clube e depois ainda jogavas muito tempo na rua. Umas vinte horas por semana», lembrou o dirigente.
 
Uma vez por semana os jogadores do Ajax treinam num contexto de «futebol de rua». Isso mesmo é promovido também junto dos clubes amadores. «Há sempre um parque de estacionamento para jogar».
 
E uma vez por semana os jovens do Ajax jogam também futsal. A ideia passa igualmente por promover os jogos em espaço reduzido, desenvolver a técnica. É um regresso às origens, tal como o futebol de rua.
 
O Ajax não quer viver do passado, mas insiste nas boas heranças.