*enviado-especial a Brasil

Foi exatamente há 60 anos (4 de julho de 1954) que a Alemanha emergiu como grande potência do futebol mundial, vencendo a Hungria, em Berna, numa final de Campeonato do Mundo que, sem exagero, mudou o rumo à história do desporto. A curiosidade histórica é apenas mais uma, num jogo dos quartos de final cheio de piscadelas de olho ao passado. A começar, claro, pelos três antecedentes em Campeonatos do Mundo: a França venceu o primeiro, no jogo de atribuição de terceiro e quarto lugares, em 1958, mas a Alemanha saiu por cima nos dois últimos, meias-finais consecutivas, em 1982 e 86, que deixaram a geração Platini para sempre à porta de uma consagração que só chegou em 1998, pela cabeça de Zidane.

O França-Alemanha de 1982, especialmente, é uma espinha atravessada na memória dos franceses. Mas só dos adeptos e jornalistas: dos 46 jogadores que constituem as duas seleções, só quatro (Klose, Weidenfeller, Evra e Landreau) eram nascidos em 1982. Dito de outra forma, como sempre nestas coisas, a história tem peso para quem vê de fora, mas quase nenhum para quem anda lá dentro.

Foi isso mesmo que lembrou Didier Deschamps, na conferência de imprensa desta quinta-feira: «Não há qualquer pressão extra por esse passado, além da excitação natural de jogar uns quartos-de-fnal de um Mundial. A história é o que é, vamos tentar que esta nova etapa seja o melhor possível para nós», resumiu, fugindo a um tema que tinha abordado com mais profundidade na conferência anterior, há dois dias.

Nessa altura, Deschamps lembrou-se de si como adolescente, esmagado pelo dramatismo e a crueldade do jogo de Sevilha: «Eu tinha 14 anos, e foi um grande momento, emotivo e triste. É por jogos como esse que o futebol é mágico: marcou uma geração e a história do futebol francês. Mas se os meus jogadores não eram nascidos, querem que eu lhes fale de quê?», concluiu. O capitão, Hugo Lloris, também foi pragmático: «Por mim, os jogos vivem-se no presente. Claro que há uma história entre estas seleções, mas queremos escrever a nossa própria história amanhã», resumiu.

Também Joachim Löw tentou limitar as referências ao passado, que do lado alemão se fazem pelo 60º aniversário do «milagre de Berna». Ainda assim, o técnico admitiu que a coincidência da efeméride lhe tinha sido lembrada pelo presidente da federação, Wolfgang Niersbach: «Sim, sei que o jogo de Berna foi a 4 de julho, mas o que interessa agora é que temos de enfrentar uma equipa de topo, que joga ao mesmo nível que nós, num estádio mítico», resumiu.

A França cresce, a Alemanha duvida

O foco no presente, e na trajetória das duas equipas neste Mundial, parece sublinhar uma aproximação de valores entre França e Alemanha – há dois meses, ninguém teria dúvidas em apontar os alemães como claros favoritos. Agora, depois do que a França mostrou, e a Alemanha deixou por mostrar, a seguir ao jogo com Portugal, ninguém pode ter muita certeza no desfecho do único jogo destes quartos-de-final sem representantes da América.

Depois de uma qualificação in extremis para a fase final (reviravolta no play-off com a Ucrânia), a seleção francesa tem exibido uma consistência cada vez mais apreciável. É verdade que, até ao momento, ainda não teve um teste com uma equipa de topo, como a que vai enfrentar amanhã. Mas a solidez do trio do meio-campo formado por Cabaye, Matuidi e Pogba, pede meças a qualquer outra seleção – e coincide com o mar de dúvidas que rodeia a formação alemã neste setor, em especial com o clamor público que, na Alemanha, pede o regresso de Lahm à posição de lateral. «Uma coisa é a opinião pública, outra a opinião publicada», responde Löw, que garante não ser influenciado, mas não deixa de entreabrir a porta a ajustes no meio-campo, depois do péssimo início de jogo com a Argélia.

A unanimidade em redor de Neuer

Se Lahm divide opiniões, Neuer faz a unanimidade: nas conferências desta quinta-feira, ninguém foi mais elogiado, por companheiros e adversários, do que o guarda-redes alemão. «Para nós, Neuer é outro jogador de campo. Face ao nosso sistema, precisamos de alguém que limpe passes de 60 metros quando a defesa está subida. Para se jogar assim, é preciso ter as sensações de um médio, a noção do espaço, da distância. Neuer tem isso tudo e podia jogar no meio-campo», garantiu Löw. Uma ideia confirmada por Toni Kroos, quase com as mesmas palavras («é o nosso 11º jogador de campo, não há melhor do que ele») já depois de Lloris ter deixado o elogio absoluto, classificando o alemão como «o guarda-redes mais completo do Mundo».

Mas se Neuer tem sido obrigado a brilhar, é porque a Alemanha tem mostrado alguma incapacidade para controlar os seus jogos, o que aumenta a incerteza sobre as opções a tomar por Deschamps na definição do onze. Atirando todo o favoritismo para os alemães, o selecionador francês parece abrir caminho a uma equipa mais prudente. Se o regresso de Sakho à defesa, por troca com Koscielny, é quase uma certeza, ficam dúvidas sobre se a dupla Giroud-Benzema é para manter ou se o avançado do Arsenal não vai ceder o seu lugar a Griezmann, como aconteceu na meia hora final diante da Nigéria.

Do lado alemão, a recuperação de Hummels pode fazer com que Boateng volte para a direita, mantendo-se a dúvida sobre a utilização de Lahm como lateral ou médio centro. Caso regresse à posição de base, o mais provável é que Khedira – importante na vitória sobre a Argélia, no prolongamento, complete o trio do meio-campo com Schweinsteiger e Kroos. Mas seja qual for a arrumação, uma coisa é certa: no Maracanã, cuja relva voltou a ser criticada por Deschamps, a partir das 17 horas portuguesas, (13 no Rio), vai continuar a escrever-se uma história com, pelo menos, 60 anos.