Leandro Veal nasceu no Brasil, cresceu nos Estados Unidos, jogou na NFL e agora vive na Lourinhã. «É bom, ótimo. Gosto das pessoas à minha volta, gosto dos meus vizinhos», sorri.

Mantém em Portugal a ligação ao futebol americano, a trabalhar com os Lisboa Devils, uma das equipas a competir a nível nacional, e também a ajudar no desenvolvimento do flag football, variante que será olímpica em 2028. Em semana de Super Bowl, é com a história dele que começa esta viagem pelo desporto que tem na final da NFL deste domingo um dos maiores eventos globais do ano.

E começa mesmo por aí, pelos motivos que o levaram a escolher Portugal para viver. «Foram várias razões. Visitei Portugal algumas vezes no passado, porque estava a treinar em diferentes países na Europa. E depois da pandemia decidi experimentar viver cá», conta.

A vida de desportista profissional já tinha ficado para trás. Foram sete anos na NFL, no nível mais alto de um desporto onde chegou tarde, conta. Leandro nasceu em Salvador, mas mudou-se muito cedo com a família para os Estados Unidos. Tinha cinco anos e em criança experimentou vários desportos. «Comecei a jogar futebol americano aos 16 anos, comecei mais tarde do que normalmente os miúdos começam.»

Do soccer ao draft da NFL, entre mil candidatos: «Muita ansiedade»

«Antes joguei soccer e polo aquático, também algum basebol», continua, no inglês da América em que decorre a conversa, pontuada de vez em quando com expressões em português com acento brasileiro. Quando chegou ao futebol americano, fez sentido: «Era divertido e percebi cedo que era bom naquilo. Continuava a progredir e quando dei por mim estava na universidade.» Com uma bolsa, distinguiu-se na universidade do Tennessee. «A escola que que eu frequentei era muito conhecida por produzir jogadores da NFL. Se nos destacássemos havia boas probabilidades de lá chegar. Mas não está nada garantido. O que temos de fazer é tentar.»

Entrou no draft de 2003 e, quando recorda esse momento, lembra-se sobretudo da tensão. «Muita ansiedade», ri-se: «É diferente do soccer nesse sentido. Passamos por todo um processo em que temos de ser escolhidos. Há 254 pessoas escolhidas entre mil. Só podemos esperar ser um deles.» Ele foi escolhido pelos Atlanta Falcons.

«Estive dois anos com os Falcons, depois em 2004 fui para os Denver Broncos, estive lá até 2007 e depois fui para os Tennessee Titans por três anos.» Jogando na defesa, como defensive end, fez 35 jogos na NFL, a maior parte deles com a camisola dos Broncos.

O percurso chegou ao fim de forma natural, diz. «Tive lesões, as coisas também mudaram na NFL. Não dava para continuar, tive de dizer: ‘Ok, a vida continua.’» Ainda ensaiou outra carreira desportiva, no MMA. Mais uma gargalhada: «Fui de um desporto perigoso para outro ainda mais perigoso. Se estivermos perto do perigo estamos seguros.»

A passagem pelo MMA e o trabalho com jovens, do Brasil à Europa

Mas não investiu a fundo no desporto de combate. «Depois do futebol iniciei os meus negócios. Não estava com o coração a tempo inteiro no MMA e se não vamos estar a 100 por cento em algo, é melhor não o fazermos. Por isso decidi seguir com outras coisas na vida.»

Nunca deixou de estar ligado ao futebol americano. Começou por voltar ao Brasil, onde criou um programa para jovens. «Fizemos uma fundação entre Salvador, Cuiabá e algumas zonas de São Paulo, onde desenvolvíamos jovens e lhes dávamos bolsas para irem para universidades nos Estados Unidos. Tivemos três ou quatro miúdos que foram para os Estados Unidos, jogaram futebol em pequenas universidades e formaram-se.»

Aos 42 anos, continua esse trabalho, também com várias Federações europeias, dos Países Baixos à Suécia, num papel de consultoria técnica. «É divertido para mim ver equipas e jogadores melhorarem com a minha ajuda. É a razão por que o faço. Gosto de ver isso acontecer.»

E agora também o faz em Portugal, desde logo com os Lisboa Devils. «Faço aconselhamento sobre o que queremos fazer, as jogadas, ajudá-los a ir na direção certa.»

O «casamento perfeito» com os Lisboa Devils

Uma ligação que aconteceu «por sorte», como diz Luís Rodrigues, diretor dos Devils e também jogador da equipa criada em 2013 e que foi três vezes campeã nacional. «Ninguém sabia que ele estava cá em Portugal. Foi um contacto dele, que jogou connosco, que lhe deu a conhecer os Devils», conta ao Maisfutebol: «Entrei em contacto com ele e foi um casamento perfeito. Nós estávamos à procura de alguém para trazer mais conhecimento, e o Leandro queria ajudar a desenvolver equipas e clubes em Portugal.»

É uma oportunidade especial para o futebol americano nacional, com pouca expressão e à procura de crescer, como explica Luís Rodrigues, que traça uma panorâmica do desporto em Portugal, repleta de paciência para explicar as bases do desporto a quem está por fora.

O futebol americano em Portugal é totalmente amador e vive do compromisso de quem gosta dele. Luís Rodrigues, gerente bancário e tight end nos Devils, faz parte dessa comunidade há dez anos, desde que começou a jogar em Évora, quando um amigo o levou a um treino: «Gostei da experiência, comecei a ver o jogo e nunca mais parei.»

E o que tem o futebol americano? Antes de mais a «espetacularidade», diz: «Vemos atletas que são dos maiores atletas no planeta, que aliam força a velocidade a níveis totalmente diferentes, por exemplo, do futebol normal. Vemo-los fazer uma corrida e enganar com o corpo três, quatro jogadores para marcar um touchdown. Ou fazer um passe de 50 jardas para um receiver que consegue chegar à bola e fazer uma receção que poucas pessoas conseguiriam fazer.»

Foto Tim Joshua Photography

«Mais jogo de equipa do que qualquer outro»

Depois, diz, há o lado tático. O futebol americano é «um jogo de xadrez» muito rico: «Todas as jogadas têm um propósito, todos os jogadores na jogada têm uma função. Se essa função falha a jogada falha. Eu sei que à partida o futebol americano parece muito choque, muito contacto, mas quando queremos elevar o nosso jogo tem de haver uma vertente de conhecimento de jogo e perceção tática. É muito interessante. Não é só bater forte, é saber ludibriar o defesa, fazer com que pense que vamos para o lado esquerdo e vamos para o direito, por exemplo; e do lado da defesa é ter a inteligência de ler o ataque e não se deixar cair nas ratoeiras.»

Leandro Veal, a partir da sua experiência, reforça a ideia. «De cada vez que se vê uma jogada começar, essa jogada teve muito planeamento e tem muita dinâmica. Eu joguei muitos desportos e este é o jogo mais estratégico que se pode jogar. É aquele que é mais jogo de equipa. Não há outro jogo, na minha opinião, que seja 100 por cento jogo de equipa como é o futebol americano. Não se pode sobreviver sem toda a equipa.»

Foto Tim Joshua Photography

Jogá-lo a alto nível, continua, «é a coisa ao mesmo tempo mais divertida e mais desoladora que se pode fazer»: «Mais divertida porque é algo que adoramos e às vezes não há nada mais dramático do que um jogo de futebol, pelo que pomos nele fisicamente. E mais desoladora porque aplicamo-nos muito, é tão competitivo e pode acabar num segundo.»

Super Bowl, «os Óscares» da NFL: do espetáculo ao encontro em Lisboa

Todo esse drama culmina no Super Bowl, a grande final da época da NFL. A decisão que no próximo domingo vai opor os Kansas City Chiefs aos San Francisco 49ers e que é sempre mais do que um jogo. Pelo espetáculo, este ano com o hino cantado pelo rapper Post Malone, o half time show com Usher como protagonista principal, pelos anúncios que são sempre os mais sofisticados e os mais caros do ano e com outra atração especial, a presença em Las Vegas da super-estrela Taylor Swift, que namora com um jogador dos Chiefs.

«O Super Bowl é os Óscares do futebol americano. É o maior espetáculo do ano e o maior evento», resume Leandro Veal, a antecipar a decisão deste ano: «Penso que o jogo vai ser bom. Para pessoas que vão ver pela primeira vez, acho que vai ser entretido na maior parte do tempo e que vão gostar da Super Bowl este ano.»

Os Lisboa Devils organizaram um evento para assistir ao Super Bowl no Real Sports Bar, em Lisboa, a partir das 23h de domingo. «Pode ser um bom programa para pessoas que queiram vir e acabam por conhecer um jogador da NFL, que em Portugal é algo não existente», diz Luís Rodrigues: «Estamos disponíveis para receber quem quiser ir e saber mais sobre este desporto.»

Leandro só não promete ficar até ao fim, que não estamos na América e o fuso horário português atira a festa para muito tarde. «Vou tentar, mas talvez não aguente até ao fim do jogo. Estou a ficar velho», ri-se: «Começo a pensar no dia seguinte: ‘Meu Deus, só vou dormir cinco horas!’»

Quem gosta de futebol americano em Portugal faz parte de uma comunidade, potenciada também pelo facto de a NFL ter transmissão televisiva no cabo. «Há alguns anos a ESPN America veio para Portugal e tinha jogos em canal aberto, isso ajudou bastante a criar algum seguimento. A continuação de jogos em direto em Portugal obviamente também tem ajudado bastante», diz Luís Rodrigues.

Foto Tim Joshua Photography

Quanto custa jogar futebol americano em Portugal

Nessa comunidade, há um espírito muito solidário entre quem joga, diz ainda o responsável dos Devils: «Todos temos noção de que isto é um desporto de nicho, portanto existe um grande sentido de camaradagem, de criar dentro da equipa quase um núcleo de família. Porque somos poucos, basicamente. Somos poucos os que estamos, somos poucos os que jogamos e cria-se muito esta empatia.»

A comunidade não é muito grande. Nesta altura, Luís Rodrigues estima que haja três ou quatro centenas de praticantes regulares, contando essencialmente 40 ou 45 jogadores por cada uma das equipas existentes.

É um desporto que envolve uma logística complexa e exige alguma capacidade de investimento. Um exemplo: «O custo do capacete e shoulders, que é um conjunto e é o equipamento mais caro, pode ir dos 150/160 euros em segunda mão a uns 500/600 euros em primeira mão.»

Isso reflete-se na continuidade dos praticantes. «Não é complicado atrair pessoas para jogar, é complicado mantê-las. Também por todos os gastos inerentes a uma modalidade amadora. Mensalidades, viagens, inscrições, seguros… Tudo isso envolve um custo que para muitos jogadores, ainda para mais nos tempos que vivemos, torna-se muito complicado comportar.»

Treinar até à meia-noite

Quem fica, investe muito do seu tempo livre, desde logo nos treinos em horário pós-laboral, que muitas vezes acabam perto da meia-noite. Os Devils treinam atualmente no campo do Futebol Benfica, o Fofó. «Treinamos nas janelas em que o futebol não está a treinar. O Futebol Benfica é um clube muito eclético, que também aposta muito no futebol feminino, e bem, e isso faz com que o campo esteja muito preenchido. Nós ficamos só com este horário muito pós-laboral. Começamos às 21h30, 22h e treinamos até às 23h30, meia-noite.»

São três treinos por semana, com duas competições nacionais por época. «Existem dois torneios. A Taça Fundadores, que é um torneio de pré-época e não tem caráter oficial, mas ajuda sempre. Como todas as épocas temos muita gente nova a experimentar, é sempre um bom cartão de entrada no desporto para estes rookies.» Depois, em fevereiro, precisamente por altura do Super Bowl, começa o campeonato nacional, com uma fase regular e outra de play-offs: «Somos sete equipas, quatro na zona de Lisboa mais Cascais e três no norte, duas na zona do Porto e uma em Braga. O campeonato desenrola-se até junho.»

Foto Tim Joshua Photography 

A primeira edição do campeonato nacional foi em 2009. E já teve mais equipas, mas a pandemia potenciou um retrocesso significativo. «Não tem sido fácil. Parámos dois anos devido ao covid, 2020 e 2021. Desde então até agora perdemos uma equipa, os Sharks, do Algarve, que não conseguiram manter o projeto. Mas já antes disso notou-se alguma perda de projetos. O campeonato teve o seu auge por volta de 2017/18, quando tivemos 10 equipas, que foi o máximo.»

Uma questão institucional em aberto e uma meta olímpica

Em termos organizativos, há também problemas por resolver em relação à Federação, sob a presidência de Rui Pedro Soares, que acumulou o cargo com a liderança da SAD de futebol que se separou do Belenenses, e num cenário de contestação de vários clubes. Nomeadamente os Cascais Crusaders, campeões nacionais em título, que em novembro anunciaram que passariam a jogar sob protesto, considerando que a modalidade tem «regredido visivelmente» e defendendo mudanças. «Temos tido alguns problemas a nível de estrutura na Federação. A Federação está a passar por um momento em que o presidente está a deixar a estrutura e urge a necessidade de haver novos elementos a entrar. Estamos nessa fase», diz Luís Rodrigues.

A Federação Portuguesa de Futebol Americano ainda não tem estatuto de utilidade pública e a questão institucional é particularmente relevante tendo em conta que uma das modalidades derivadas do futebol americano, o flag football, será olímpica em 2028, em Los Angeles.

O flag footbal distingue-se do tradicional, a que se chama tackle, por não ter contacto. «Temos umas fitas que ficam na zona da anca, daí o flag, em que para parar o jogador basta apanhar a fita e retirá-la», resume Luís Rodrigues: «Não é tão fácil como parece. É mais virado também para o passe, tem menos corrida.»

Pode ser mais atrativo para quem quer começar, diz. Por várias razões. «Joga-se num campo mais curto, o que é excelente para os jovens poderem experimentar, porque em termos de cansaço é menos campo que tem de ser coberto.» Além disso pode ter equipas mistas, juntando rapazes e raparigas: «Tivemos neste ano algumas equipas mistas no campeonato e chegaram bastante longe.»

Em Portugal existe flag football «há alguns anos» e um campeonato que teve este ano 12 equipas. «Estava mais centrado na zona do Porto, com uma muito boa equipa, o Porto Hammers, já com participação em alguns torneios em Espanha, que ganhou este ano o campeonato.»

«Durante os anos covid parou e voltou este ano, um pouco também na onda de ter ganho mais importância com os Jogos Olímpicos», diz Luís Rodrigues. Os Devils também têm uma equipa, num projeto que começou agora a ser dinamizado.

Foto Tim Joshua Photography

Flag football «é a melhor oportunidade para Portugal»

Leandro Veal está envolvido no projeto de desenvolvimento nacional do flag football. «O objetivo é criar uma seleção nacional», conta, revelando que começou por se envolver com a modalidade antes de saber que viria a ser olímpica: «Eu fiz muito flag football no Brasil, mais numa lógica comunitária de pôr miúdos a fazer coisas divertidas. Nunca tinha feito com adultos e foi aqui que me disseram que vai ser um evento olímpico. Isso é fantástico. Dá a Portugal uma boa oportunidade.»

É nessa variante, acredita Veal, que Portugal tem «hipóteses mais fortes» de crescimento. «Por várias razões, uma delas é termos muitos atletas. O tackle football é diferente, porque leva tempo a desenvolver todas as posições, envolve muita coisa. E Portugal está muito para trás. Ainda vamos desenvolver o tackle football aqui, mas acho que o flag football, por agora, é a grande e a melhor oportunidade para aproveitar todos os atletas que temos em Portugal.»

«O próximo passo», continua, «é potenciar o interesse»: «Quem está no desporto sabe que tem de envolver a juventude, tem de ter miúdos entusiasmados, porque são o futuro. Tem de se treinar os tipos mais velhos para passar o conhecimento aos mais novos. É onde Portugal está agora, para que quando chegar 2028 tenhamos jovens a aparecer. Temos quatro anos para o fazer, é esse o objetivo, potenciá-lo no próximo par de anos.»

Campos para captar jogadores e ver os ramos da árvore crescer

Uma das estratégias passa por organizar eventos de apresentação da modalidade. Leandro Veal vai orientar neste sábado em Lisboa um desses camps, um treino de conjunto no campo do Rugby São Miguel, com várias equipas da cidade e aberto a quem quiser participar. «O nosso objetivo é ter mais dois ou três camps na primavera e verão, em zonas diferentes. Convidar jovens e mais velhos para, por um lado ensinar flag football aos mais jovens e depois os mais velhos trabalharem para criar a seleção nacional.»

Juntar o seu futebol ao trabalho com jovens é o que lhe continua a dar gozo. «Quando finalmente se vê um jovem evoluir e atingir aquilo que estava a tentar fazer, quando volta e conta como correu... Gosto de ver isso acontecer. Vou muito ao Brasil e quando volto dou treinos lá e os tipos que eu treinei agora treinam jovens. É como uma árvore que lança ramos.»