Tudo terá começado num comboio. O jovem Mohandas Gandhi, advogado, viajava em primeira classe de Durban para Pretoria. Corria o ano de 1893. O propósito da deslocação permanece desconhecido, mas não o que dela resultou. Gandhi foi compelido por um guarda a abandonar o vagão de luxo. «Esta zona é só para cidadãos brancos», ouviu o Mahatma, chocado.

Perante a ominosa ordem, sustentada nas sectárias leis de segregação racial, Gandhi viu-se obrigado a mudar para a terceira classe da carruagem. Ao lado dos negros e hindus. De nada lhe valeu estar na posse de um bilhete válido para a primeira classe.

Decidido, recusou a instigação. Manteve-se orgulhoso e imperturbável. Na paragem seguinte foi sovado e atirado para fora da composição. Passou a noite na estação de Pitermaritzburg.

«Ele terá pressentido nesse instante que uma crescente onda de injustiça e racismo tomava conta da África do Sul. Ninguém o conhecia ainda. Era um apaixonado por futebol, pois tinha vivido uns anos em Inglaterra, e por isso decidiu formar dois clubes, de forma a passar mais facilmente a sua mensagem», explica ao Maisfutebol Poobalan Govindasamy, dirigente da federação sul-africana de futebol e um investigador compulsivo de toda a vida e obra de Gandhi.

Nasceram, assim, os Resistentes Passivos FC (Passive Resisters FC na forma original). Três clubes, a mesma designação e filosofia. O nome veio inspirado nas obras do russo Leo Tolstoy, supra-referência na vida de Gandhi.

O futebol passaria a ser a principal arma no combate à discriminação racial na África do Sul.

«Um jogo era igual a uma hora de meditação»

Durban, Joanesburgo e Pretoria receberam os primeiros jogos dos Resistentes. Mais do que fundador, Gandhi era um dirigente activo e entusiasmado, explica Poobalan Govindasamy. «O que mais o fascinava era a noção que ele tinha do futebol: um jogo nobre, democrático, praticado por toda a gente. No fundo era isso que ele desejava para toda a sociedade. O livre acesso a todo o tipo de eventos.»

O projecto durou mais de duas décadas e disseminou-se pelas comunidades esquecidas, amarrotadas, subjugadas pela política vigente. «Não raras vezes os jogos tornaram-se verdadeiros comícios. Gandhi tinha o coração e a alma nos lugares certos. Apontou o caminho a seguir e foi seguido», sublinha o dirigente sul-africano, antes de uma advertência.

«Atenção: ele serviu-se do futebol, é verdade, mas também o serviu. A modalidade foi mais do que uma plataforma de comunicação para as massas. Gandhi gizou a primeira liga minimamente organizada do país e ajudou a criar outras equipas. Os jogos passaram a ser dos poucos momentos onde ele encontrava paz de espírito.»

Terão sido, efectivamente. «Para Mohandas Gandhi, um jogo era o equivalente a uma hora de meditação. E o trampolim para assomar ao patamar da sociedade ideal.» Uma utopia, como as décadas seguintes na África do Sul vieram a confirmar.

«Bafana Bafana»: uma herança de Gandhi

O primeiro desporto impactante na vida de Gandhi foi o críquete. A mudança para Inglaterra, em plena adolescência, ampliou-lhe os horizontes e levou-o ao novo mundo do futebol. «Na Índia o críquete era jogado essencialmente por ricos. Ele detestava esse lado do jogo. Talvez por isso tenha abraçado o futebol», aquiesce Poobalan Govindasamy.

Nas terras da Velha Albion participou em vários duelos, apesar da «falta de talento evidente». «Adorava jogar, mas nunca se destacou. Sempre esteve mais confortável na orientação, como se fosse um manager

Em 1915, com 46 anos, Mohandas Gandhi regressou em definitivo à Índia. O envolvimento directo com o futebol esmoreceu, embora a paixão jamais tenha desaparecido.

«Não tenho dúvidas: Gandhi foi o principal dinamizador da entrada do futebol na sociedade sul-africana. Um século depois, certamente gostaria de estar cá e ver a selecção dos Bafana Bafana composta por atletas de todas as raças.»