Rui Costa não jogaria em Bolonha. Não se contivera no regresso ao balneário, depois de consumada a derrota aos pés do Perugia e, ainda no túnel do estádio, a três metros da cadeira onde agora se sentava, disse «umas quantas verdades» ao árbitro. Soubera da suspensão dois dias antes e não procuraria justificar-se na presença do jornalista. Pouco mais podia fazer do que encolher os ombros. «Não aconteceu nada de especial», jurava. «Já vi e já fiz pior». Assumia-o sem reservas, sem motivos para corar de vengonha. Procurava desculpa na «tensão», no ambiente denso que rodeia cada jogo em Itália.  
 
Sem que o pudesse evitar, a imagem dos últimos momentos da meia-final do Europeu tomavam-lhe a memória de assalto. A contestatação, os gestos, os gritos, as palavras proferidas sem critério de selecção. Seria coisa de português reagir tão mal às derrotas? Rui Costa garantia que não e até podia argumentar com um exemplo fácil: a Juventus, que não tem qualquer português, havia terminado os três últimos jogos em inferioridade numérica; tudo casos de expulsão, algumas em resultado de provações ao árbitro.  
 
Proibidos de decepcionar  
 
O tema não o incomodava. Na verdade, limitava-se a conduzi-lo à face mais agradável da sua carreira. No dia seguinte viajaria para Portugal, logo depois de assistir ao jogo de Bolonha, reclamado pela Selecção. «Neste momento, a perspectiva de vestir aquela camisola é o que tem de mais aliciante para mim», assumia. Degustava demoradamente o «estado de euforia», os doces reflexos do Campeonato da Europa e julgava-se mais idolatrado do que nunca. «Temos a felicidade de sermos uma das selecções mais amadas pelos portugueses». A ideia era o suficiente para lhe devolver o sorriso. Voltaria a ser herói e já faltavam poucas horas.  
 
Não eram devaneios, estava seguro, nem se deixaria adormecer por um sonho lindo, que não confessa. Dispensava o aviso ou o estalido seco das palmas para o despertar. Rui sabia tudo quanto dizia, de olhos bem abertos e ar concentrado, apesar de deliciado pela suave perspectiva de sentir-se novamente um deus. «Não podemos desapontar», advertiu-se. «Ninguém espera que não estejamos no Mundial». A qualificação corria bem e podia render-se outra vez à «sensação fabulosa» de vestir a camisola de Portugal. «Não podemos parar». O espírito de conquista voltava a tomar conta dele.  
 
A droga das vitórias  
 
As vagas da «onda de entusiasmo» eram enormíssimas, já haviam crescido quando Rui Costa juntou, à mesma proporção, responsabilidade ao discurso, sem se assustar com a carga, que lhe parecia assentar à justa nos ombros da Selecção. «Tudo isto aumenta as expectativas de forma elevadíssima, mas ninguém gosta de jogar sem responsabilidade». Não tinha medo. Sabia de uma agradável dependência que brotara no seio da Selecção. «Para nós, as vitórias já são como uma droga, não podemos passar sem elas».  
 
À excepção da «obrigação» de estar no Mundial, Rui dispensa-se de traçar objectivos, por serem flutuantes e inconfessáveis. «Uma vez lá», ensaia, «comportar-nos-emos como no Europeu». Ou seja: «Mesmo ficando no grupo mais forte, como aconteceu, vamos querer superá-lo e passar à fase seguinte». Depois... Depois, Rui não diz. «É demasiado cedo». Não lhe escapa uma frase sobre o título, as meias-finais ou, sequer, os quartos-de-final. Maquiavélico, divertia-se diante do receio dos outros. «Temem Portugal como temem as grandes selecções mundiais». Sentia-se orgulhoso, mas não babava.  
 
A doce divagação foi interrompida por uma memória recente. O empate da Irlanda na Luz, que mais não servia do que para demonstrar a grandeza de Portugal, para provar tudo quanto dizia. «Custou-nos ver os irlandeses a jogar como jogaram e a festejar como se tivessem garantido a qualificação». Detectava nas celebrações o respeito prestado pelo adversário, algo que os portugueses não tributariam nem na Holanda. «Ganhámos e ninguém nos viu em festa. Somos uma equipa madura e capaz, que sabe o que quer e pode ir longe». Das distâncias Rui não falou. Talvez o título, talvez um pouco menos? Sorriu, em vez de responder.