O Maisfutebol convidou Gilson Varela para uma conversa à volta da história dele e voltou para a secretária com o bloco cheio de estórias.
 
A páginas tantas há aliás uma frase que é sintomática.
 
«Quando nos juntamos há muita palhaçada, muito riso, brincadeiras. Também há as picardias normais, pegamo-nos uns com os outros. Mas agora é um bocado diferente, sou tipo um ídolo para a minha família», conta.
 
«Tinha irmãos que antes me batiam, mas batiam mesmo a sério, e agora nem sequer me conseguem tocar. Tratam-me como se fosse um bebé. Antes, por coisas mínimas que fazia, estava logo a apanhar. Agora adoram-me. Veem-me na televisão e ficam felizes.»
 
São as casualidades da família, e sobretudo do relacionamento entre irmãos. Nesta altura convém se calhar adiantar que Gilson Varela não vem de uma família tradicional: tem 23 irmãos, dos quais apenas uma irmã é mais nova do que ele.
 
É o caçula da família, mas há muito que deixou de ser o caçula da família.
 
«Todos os meses envio dinheiro para lá, porque sei que a situação que eles passam não é muito boa. Mas eu não gosto de deixar o dinheiro nas mãos dos meus irmãos, eles não estão habituados a ter muito dinheiro. Prefiro deixar com os meus pais, sobretudo a minha mãe. Depois ela gere em função das necessidades de cada um.»


 
Natural da cidade da Praia, em Cabo Verde, cresceu com dificuldades e habituou-se a viver com pouco. O futebol abriu-lhe as portas de um futuro mais risonho. Não foi fácil, mas Gilson Varela subiu um a um os degraus da escadaria do sucesso.
 
Hoje representa o Oriental, da II Liga, o que já é uma conquista assinalável.
 
É profissional, tem um salário fixo, mais prémios de jogo, recebe em euros o que é quase uma lotaria para a realidade cabo-verdiana. Por isso ajuda a família, com todo o gosto.
 
«A maior parte dos meus irmãos não vive com os meus pais, mas depende dos meus pais para sobreviver. Há muito desemprego em Cabo Verde e tenho irmãos com 30 e tal anos que vão comer a casa dos meus pais todos os dias», refere.
 
«Isso para mim é normal, somos uma família muito unida. O meu pai sempre foi assim, a porta está aberta para todos. Eu próprio não faço distinção, seja irmão ou meio irmão.»


 
Não são todos filhos da mesma mãe, mas são todos filhos do mesmo pai. Ora quando se pergunta pelo pai, precisamente, Gilson Varela solta uma gargalhada.
 
«O meu pai é um garanhão do caraças», atira. «Tem 70 anos mas parece um miúdo de 18. É verdade. O meu pai vai viver mais 50 anos.»
 
Já para falar da mãe, o assunto fica sério: Gilson não consegue evitar que a voz trema.
 
«A minha mãe é uma mulher com um coração muito grande. Era peixeira, vendia peixe, era conhecida e respeitada no mercado por ser uma pessoa antiga, mas sobretudo por ser uma guerreira. Por exemplo, para que não nos faltasse nada, ela ia a casa das pessoas a trocar peixe por outros alimentos, fosse ovos, fosse arroz, qualquer coisa», refere.
 
«Olha, tenho vinte e tal sobrinhos e quase todos eles estão em casa dos meus pais. Uma das coisas que acho mal, os meus irmãos têm filhos e deixam-nos em casa dos meus pais. O meu pai chateia-se um bocado, mas a minha mãe não, recebe-os sempre, gosta de ficar com eles. É uma paixão muito grande que tem pela família.»
 
Gilson tem a mesma paixão pela família que a mãe, naquele respeito cabo-verdiano pelos genes. Por isso gosta de dizer que não aceita que nada falte aos irmãos, ou aos sobrinhos. Paga a alimentação e a renda dos que passam mais necessidades.
 
«Estive cinco anos sem ir a Cabo Verde, porque nos primeiros cinco anos não tinha dinheiro para pagar as viagens. Passava muitas dificuldades financeiras. Foi muito difícil, porque pensei que nunca mais fosse ver os meus pais», recorda.
 
«Mas graças a Deus nos últimos cinco meses tive oportunidade de ir duas vezes só para passar dois dias. É algo incrível, algo que não consigo explicar.»


 
Como está bom de ver, a vida de Gilson Varela esteve longe de ser fácil. Muitas vezes teve de se aventurar, de dar passos arriscados numa corda sem rede.
 
Chegou a Portugal com 18 anos, ao abrigo de uma bolsa de estudo. Viajou diretamente para Viana do Castelo para fazer o curso técnico-profissional de contabilidade. Mas até esse passo esteve ameaçado por falta de dinheiro para comprar a viagem.
 
«Não era um sobredotado, nada disso. Era um aluno esforçado. Os estudos era a única coisa que os meus pais me podiam oferecer e por isso sentia a obrigação de aproveitar.»
 
Agarrou a bolsa de estudo com as duas mãos e terminou o curso em Viana do Castelo. No entanto, e na cabeça dele, estava claro que a bolsa de estudo era sobretudo o bilhete para algo melhor: para atingir o sonho de ser jogador de futebol.
 
«Desde miúdo que tinha jeito para a bola. Atrás da minha casa tinha um campo pelado e eu passava lá o meu tempo. Aos 18 anos comecei a jogar na EPIF, que é a escola de futebol de onde saíram o Kuca, o Babanco, o Gegé, o Stopira, o Zé Luís, enfim», recorda.
 
«Por isso, quando cheguei a Viana do Castelo fui procurar clube e fui inscrito no Valenciano. No entanto tinha dois colegas que jogavam num clube da terceira divisão de Espanha, de Tui, perto da fronteira. Nem cheguei a representar o Valenciano, fui com os meus amigos e fiquei dois anos a jogar em Espanha.»


 
Pelo meio apareceu um daqueles convites que parecia embrulhado em papel de oferta, mas era engano: um empresário ucraniano convidou-o a fazer um teste no Volyn Lutsk, que era na altura um clube da liga ucraniana.
 
«Eu resolvi arriscar e fui. Acabei por ficar quatro meses na Ucrânia. Prometeram-me que me iam fazer um pré-contrato, eu esperei, esperei, esperei, até que me vim embora», diz.
 
«Na altura não tinha ainda o visto de residência para estar em Portugal, tinha apenas um papel a dizer que o pedido estava em processamento. Arrisquei e fui só com o visto passado pela embaixada da Ucrânia em Lisboa.»
 
O que gerou um grande problema.
 
«O clube portou-se cinco estrelas comigo, pagou a estadia, o hotel, as alimentações, mas para regressar tive muitos problemas no aeroporto. Não tinha documentos, mostrava-lhes o passaporte de Cabo Verde e eles não conheciam Cabo Verde.»
 
Não é nada novo, por inacreditável que possa parecer: há sistemas informáticos fronteiriços, sobretudo em países da Europa de Leste, que não reconhecem Cabo Verde.
 
«É uma coisa incrível, não sabiam localizar o país. Disse-lhes que se situava em África, que era independente, que a língua oficial é o português, enfim.


 
Nada feito.
 
Nessa altura altura valeu a Gilson Varela que não tinha ido sozinho: foi acompanhado por um senhor que conhecera através de uns primos de Lisboa, «que vivia no bairro da Boavista e que era advogado». Foi ele que fez a ponte para o entendimento.
 
«Só consegui sair quando contactaram o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, em Lisboa, que lhes disse que eu estava em Portugal, sim. Mesmo assim fui parado três vezes.»
 
De regresso à Península Ibérica, voltou à vida anterior: vivia em Viana do Castelo e jogava em Espanha, no modesto Tyde FC. Da III divisão espanhola saltou para o Vianense, mais perto de casa, e dali para o Vitória de Sernache.
 
Seguiu-se o União de Montemor, o Casa Pia e esta temporada o Oriental: finalmente os campeonatos profissionais, que lhe permitiram uma vida mais estabilizada.
 
«Neste momento o meu foco é o Oriental. Tenho 25 anos e cresci à custa da minha força. Acredito no trabalho e sei que vou agarrar esta oportunidade com unhas e dentes.»
 
Em Cabo Verde há 23 irmãos que lhe agradecem a tenacidade.