A vida de Gonçalo Guedes andou sempre numa roda vida.

Neste domingo, por exemplo, apontou o golo que garantiu o triunfo de Portugal na Liga das Nações, tornando-se um herói nacional.

Por isso recuperamos agora um texto com quatro anos, para lhe contar a história do miúdo transformado em craque: o menino que aos nove anos já parecia um homenzinho e que está muito longe do protótipo de futebolista.

Convém começar por dizer que, tal como acontece com quase todos os craques, a carreira de Gonçalo Guedes também se fez de sacrifício. Neste caso, porém, os sacrifícios não se medem em sofrimento, dor ou preocupações: medem-se em quilómetros.
 
«Com ele já gastei três ou quatro carros», sorri o pai Rogério Guedes. « Fazia uma média de 60 mil quilómetros por ano, por isso estourei uma série de carros.»
 
Valeu a pena, claro que valeu a pena, e Rogério Guedes não evita que a voz fique trémula quando se recorda dos bons tempos passados na estrada. Foi uma vida dedicada aos filhos, e particularmente ao sonho do mais novo de ser jogador de futebol.
 
«Morávamos em Benavente e por detrás da nossa casa havia o campo do Benavente. O Gonçalo ou estava na rua a jogar futebol ou estava no campo a ver os mais velhos treinar. Penso que foi daí também que lhe veio o jeito para jogar futebol», conta o pai.
 
«Desde miúdo que nunca quis mais nenhum brinquedo. Andava sempre com a bola e às vezes até com mais do que uma. Era uma loucura.»


 
Por sorte Gonçalo tem um irmão dois anos mais velho, que começou a jogar numa escolinha da vila ribatejana. Era guarda-redes, aliás foi sempre guarda-redes.
 
Gonçalo ia com o irmão para a escolinha, não fazia parte da equipa porque não tinha idade, mas quando os torneios não pediam bilhete de identidade o treinador metia-o a jogar, ao lado de miúdos mais velhos um, dois, três e quatro anos.
 
«Ele era sempre o melhor e sozinho resolvia os jogos.»
 
Por isso os amigos e vizinhos insistiam com o pai: que tinha de o levar ao Benfica, que o miúdo tinha jeito, que devia estar a jogar no Benfica. Um dia Rogério Guedes convenceu-se mesmo, pegou no carro e levou Gonçalo Guedes a treinar na Geração Benfica.
 
Tinha cinco anos, quase a fazer seis.
 
«Levei-o às escolas de animação, que são anteriores às escolas de formação. Funcionavam nos Olivais. Fez um treino durante a semana, fez um jogo no fim de semana seguinte e vieram pessoas do Benfica falar comigo: queriam que ele integrasse a seleção da Geração Benfica, que é um nível mais avançado para os melhores.»
 
Foi nessa altura que começou a carreira de Gonçalo Guedes.
 
O leitor pode pensar que é um exagero falar de carreira quando se trata de um miúdo de cinco anos, mas quem o conhece garante que não é tanto assim.


 
Começou a carreira de Gonçalo Guedes e mudou para sempre a vida da família Ganchinho Guedes: sobretudo do pai Rogério.
 
«Nessa altura eu trabalhava em Lisboa. Então ia de manhã para Lisboa, quando saía vinha a Benavente buscar o Gonçalo, voltávamos a Lisboa e por volta das nove da noite regressávamos a casa. Fazia duzentos quilómetros por dia, três dias por semana.»
 
Como tinha dois filhos e nenhum era mais do que o outro, os dois jogavam no Benfica. Por isso houve alturas em que era uma maratona: levava um filho ao Seixal, ia deixar o outro aos Olivais, esperava que acabasse o treino e juntos iam depois buscar o irmão.
 
«Aos fins de semana era uma festa. Estavam todos ocupados, percorríamos esse país fora a acompanhá-los nos torneios em que participavam. Houve uma vez em que no sábado estávamos com o Gonçalo no Algarve e no domingo estávamos com irmão no Porto.»
 
A vida era organizada em função dos filhos.
 
«Os nossos fins de semana eram de acordo com as convocatórias deles. Conforme sabíamos onde iam jogar,  o programa de família para os acompanhar. Depois conhecíamos os pais dos outros miúdos e fazíamos convívios giros todos juntos.»
 
Rogério Guedes lembra-se por exemplo de uma frase que lhe ficou para a vida.
 
«Houve um fim-de-semana em que eu fui com o Gonçalo para Roma, para um torneio, e a minha mulher foi com o mais velho para outro torneio em Espanha. Era um torneio com 500 miúdos, todas as grandes equipas e o Gonçalo foi eleito o melhor jogador», conta.
 
«Eu comentei com a mãe de outro miúdo que era um orgulho. Ela virou-se para mim: vai ver que o Gonçalo ainda vai ser jogador e o meu filho vai ser engenheiro. Curiosamente agora o Gonçalo está no Benfica e o Fernandinho a acabar o curso de engenharia.»
 
Ora como está bom de ver a carreira de Gonçalo Guedes foi crescendo rapidamente. Aos oito anos trocou a escolas de animação pelas escolas de formação e fez-se federado.


 
Foi nessa altura, no primeiro ano da escola de formação, que conheceu João Barbosa: o agora treinador do Oriental, da II Liga, foi o primeiro técnico na mudança de patamar.
 
«O Gonçalo Guedes teve a sorte de passar pelas mãos de três treinadores: António Fonte Santa, Helena Costa e João Barbosa», conta o técnico do Oriental.
 
«Era um miúdo muito parecido com o que é hoje: muito focado nos objetivos dele e que liga muito pouco ao estrelato. Era um miúdo que transpirava felicidade, muito feliz a jogar futebol, muito fechado para ele, mas muito autónomo. Parecia um homenzinho.»
 
No fundo era o que já é hoje: o oposto do protótipo de futebolista. Não se ofusca com a fama, não tem tatuagens, não liga a jóias, nem sequer perde tempo a jogar Playstation.
 
Helena Costa foi a primeira treinadora de Gonçalo Guedes e lembra-se de um miúdo «muito humano, que se preocupava com os colegas, divertido e dado a maluqueiras».
 
«Lembro-me de um torneio no Norte em que ficámos numa escola qualquer. Estávamos num tempo morto e eu deixei-os ficar na brincadeira, a jogar às escondidas. Quando chegou a hora de recolher todos apareceram menos o Gonçalo Guedes»
, sorri.
 
«Perguntei-lhes pelo Gonçalo e eles dizem-me que não sabiam. E eu fiquei a pensar que era uma escola, não podia ter desaparecido. Olho para uma árvore de uns sete metros e vejo uma mancha vermelha no topo... Era o Gonçalo, que se tinha escondido no topo de uma árvore enorme. Mas ele era assim, um miúdo do campo, muito irreverente.»
 
Outra vez, num outro torneio fora de Lisboa, Helena Costa quase teve de se chatear.
 
«Ele era muito reguila para comer e eu tinha instruções do pai para o obrigar, porque ele andava a comer mal. Claro está que ele não queria comer. Então disse-lhe para no mínimo comer a fruta, que era peras. Respondeu que não gostava de peras», recorda a treinadora.
 
«Disse-lhe que se não comesse a pera, não jogava. Andou o dia todo, brincou, correu, quando chegou ao balneário disse-lhe que não jogava, que não tinha comido. Os colegas pressionaram-no a comer a pera, que ele era importante, e ele a muito custo dá um trinca e diz: afinal isto até é bom. Depois devorou a pera.»


 
No entanto, a história de que Helena Costa não esquece aconteceu quando Gonçalo Guedes já tinha 15 anos: já estava lançado na carreira de jogador.
 
«Eu estava no Qatar e falávamos por Facebook. Um dia manda-me uma mensagem a dizer: mistera - que é como me tratam -, tenho uma coisa para si», lembra.
 
«O que era? A primeira camisola da primeira internacionalização, penso que nos sub-16. Eu estava no Qatar, não tínhamos muito contacto, mas ele guardou a camisola, assinou-a e deu-ma. Isto prova o caráter humano dele, o sentido de gratidão. Era, e é, um rapaz muito brincalhão, muito divertido, mas muito dedicado a conquistar o que quer.»
 
A dedicação ao futebol trouxe boas notícias, e algumas faturas. Gonçalo foi obrigado, por exemplo, a deixar a escola aos 15 anos, depois de concluído o 10º ano de escolaridade.
 
O pai ainda o colocou em explicações, mas não dava mais.
 
«Sempre foi bom aluno, nunca reprovou. Mas aos 15 anos tornou-se impossível. Com os treinos, as seleções, era impossível. Às vezes passava uma semana sem poder ir às aulas.»
 
Foi nessa altura também, e numa tentativa de conciliar escola e futebol, que Gonçalo abandonou a casa dos pais. Durante um ano viveu Centro de Estágio, na época seguinte deixou o internato e mudou-se para um apartamento que os pais alugaram no Seixal.
 
A família nunca viveu com a corda no pescoço e não deixou por isso faltar nada aos filhos.


 
Curiosamente aos 16 anos Gonçalo Guedes assinou o primeiro contrato profissional, começou a ganhar o dinheiro dele e mudou-se de casa, para ir viver com a namorada. Frequentemente, porém, ainda vai dormir a casa dos pais, em Benavente.
 
Foi num desses dias, aliás, quando tinha 17 anos, que foi acordado de manhã: tinha de se despachar a chegar ao Seixal, para treinar e seguir com a equipa principal para o Mónaco, onde o Benfica ia jogar a Liga dos Campeões.
 
Era a segunda vez que ia ser convocado.
 
Gonçalo ligou ao pai que não atendeu, ligou à mãe da namorada que não atendeu e por isso teve de apanhar um táxi, enquanto lhe pedia que fosse o mais rápido que podia.
 
«Não ouvi o telemóvel. Devia estar a tomar banho ou qualquer coisa do género», sorri Rogério Guedes. «Não estava a contar. Ele até estava de folga. Por isso quando lhe devolvi a chamada, ele disse-me que tinha de ir a correr e que ia apanhar um táxi.»
 
Um problema que agora não corre o risco de viver outra vez: já tirou a carta de condução.

A verdade é que naquele dia o taxista voou para o Seixal e Gonçalo Guedes chegou ao plantel principal para nunca mais sair. Este ano, depois de meia época de ambientação, agarrou um lugar na equipa titular e respondeu com golos à aposta de Rui Vitória.

Ao ponto, aliás, de ter convencido Fernando Santos e conquistado um lugar na seleção. «Foi o reconhecimento de uma vida», confessou na altura, num claro exemplo de algum exagero...
 
Aos 22 anos, ainda tem toda a vida para dar.

[artigo atualizado, original de 10-11-2015]